quarta-feira, 25 de agosto de 2010

JÁ ESTAVA CASADO NA FESTA DE SOLTEIRO

Arte de Cínthya Verri

É fácil descasar.

Agora os casais se separam para depois discutir. Não mais discutem para se separar. Não desenvolvem a quebradeira emocional, o jogo de ameaças, as negativas falsas. Aquelas horas a fio de madrugada para desenterrar uma confidência. Não arranham os discos estacionando a agulha numa única faixa. Não provocam novos juramentos e lamentos desesperados de perdão. Surge uma infidelidade, uma frustração, a parte ofendida nem pede explicações: fecha a conta.

Abandona a casa e busca seus pertences na portaria na semana seguinte. O síndico é o padre das separações, vive consagrando divórcios. No altar, o sacerdote entrega alianças. Na portaria, o síndico entrega as chaves. O corvo não usa mais preto.

Segunda chance e repescagem são atitudes reacionárias. Moderno é virar a cara e partir para outra. Não importa se é verdade, impressões funcionam como fatos. Mesmo que sejam fatos, a vergonha de um engano supera o passado de acertos.

Sentenças como “pisou na bola” e “fez a maior mancada” bastam para explicar o sumiço. Poderá se arrepender e insistir que não terá resposta. Ninguém mais quer perder tempo com namoros. Reatar é um desperdício, é insistir no erro. Ou se acerta de primeira para sempre ou não existe reedição. Amor hoje só tem primeira impressão.

Eu percebi isso quando fui convidado para uma festa de solteiro. Esperava um trago interminável, uma loucura de som alto, os vizinhos chamando a polícia. Ansiava por uma noite animal, o apartamento abaixo como um zoológico. Seria uma data fadada ao esquecimento, para preservar os segredos. Imaginei que os padrinhos chamariam garotas de programa, que estariam nuas cobertas apenas por casacos de pele, imaginei que metade dos convidados entraria em coma alcoólico e a segunda metade dormiria no banheiro.

Mas não havia prostitutas, muito menos bagunça. Virou um churrasco de família, com pouquíssimas piadas e excessivo nervosismo. Desconfio que os presentes rezavam pelo término do encontro, antes que viesse uma surpresa desagradável e um imprevisto que despertasse os dilemas do corpo. Observavam o relógio da cozinha, apreensivos, com receio que alguém surtasse e abandonasse a sobriedade.

Incrivelmente o sogro participava do jantar. Como aprontar diabruras e taras contra a memória de sua filha? Ajudava a espetar a carne com o avental do seu time de coração. Só faltava a sogra trazer a salada.

Badalou meia-noite e o noivo ligou para a noiva para sair num bar. E os amigos dos noivos telefonaram para suas namoradas para ir junto. As mulheres pareciam que estavam de tocaia atrás da porta — chegaram tão rápido.

Foi um aquecimento para o romance, não um inferno a compensar o céu, não a desforra da cumplicidade, não a catarse final que antecipa o casamento.

Todos encontraram seus casacos na saída — antigamente ninguém achava suas meias.

Igual pasmaceira nos chás de panela. Até crianças são permitidas. Não enxergará provas sádicas entre as amigas, concursos de vexames, não se paga mais stripper para rebolar na mesa. Antes as madrinhas levavam vibradores, novidades eróticas, brincavam com os costumes, cuspiam caroços de azeitonas pelas janelas. É tudo comportado, adequado, adulto. Onde se colocou a diversão da véspera? As homenagens são escolhidas com segurança, não se fala de antigos relacionamentos e de atrapalhadas na faculdade para não gerar indiscrições. Loucas e histéricas não são convidadas, logo elas, imprescindíveis, que inflamaram as festas como DJs das gafes.

Experimenta-se um pânico moralista, vá que ele ou ela descubra intimidades e mude de ideia. Os noivos sofrem o período de delação premiada. Não arriscam troça nenhuma, acovardados em suas fantasias.

Porque é muito, muito fácil descasar.



Crônica publicada no site Vida Breve

25 comentários:

Papodibuteco disse...

ESPETACULAR ESTE TEXTO!!!!!!!!!!!! PARABENS!!!!

@papodibuteco

Fabiana Farias disse...

Gente, eu acho super difícil desnamorar, descasar. Acho que só com um apocalipse!
Acho que sou meio moderna/antiquada.
O texto é ótimo.

Priscila Zavagli disse...

Sou recem separada, mas as DRs sem fim que culminaram para tal!

Anônimo disse...

Achei esse bem engraçado, especialmente na parte do síndico :) O mundo anda tão louco, antes, que eu me lembre, as pessoas conversavam umas com as outras, agora tudo é semântica, cada um falando sozinho. A seleção de uma cor, um vídeo, uma foto, uma frase e lá se foi a relação. Se a conversa só se dá pelo indizível, não é de estranhar que o "descasamento" aconteça do modo como você descreveu. Bem legal esse texto!

Sylvia Tavares disse...

"Ninguém mais quer perder tempo com namoros. Reatar é um desperdício, é insistir no erro. Ou se acerta de primeira para sempre ou não existe reedição. Amor hoje só tem primeira impressão."

Ufa! falou TUDO. E as antiquadas como eu só sofrem.

Carola disse...

Só me separei depois de umas 20 repescagens... rsss! Mas é que aí num tinha jeito mais né, tudo já havia perdido o sentido.

Pior é o uso de palavras, frases e filosofias de power point! Aí não, aí é de descasar na hora, sem dó! Hahahahahaha!

Muito bom, como sempre!

George Dantas disse...

Assim como a Sylvia Tavares, sou a favor do compromisso, que era tão valioso antigamente! A frivolidade impera hoje em dia! É uma pena!

Pri disse...

Estou numa fase de DR no desnamoro, num volta ou não volta, num será q vale a pena "insistir no erro"...

Tuka Siqueira disse...

Tenho disto isto com muita frequencia, as pessoas não se comprometem mais umas com as outras, casamentos longos como o meu (18 anos) são coisas ultrapassadas, caretas até. Hoje fala-se até em casamento onde os conjuges moram em casas separadas, cada um na sua com suas manias e "casamento" só nas horas boas, com os dois de acordo e bom-humor, sem reclamações e nem inconveniências. Mas o que é o casamento sem "compartilhar"? Que tipo de realacionamentos são esses em que só estou junto do outro quando ME convém?

. disse...

Facílimo descasar!
Uma delícia esses textos.

ana disse...

Concordo com a Tuka e com o Fabrício. Eu também vivo um casamento de muitos anos e posso garantir que o bom disso é que com as discussões noite à dentro nos levam a um autoconhecimento e ao conhecimento do outro só alcançado com anos de terapia. Os casais que se separam logo nas primeiras brigas não sabem o que estão perdendo. Ficar junto é uma aventura maior do que qualquer novo amor.

Rodrigo Rocha disse...

Fabro, a troca das meias perdidas pelos casacos comportados foi impagável! Grande texto... e adorei o plano de fundo do blog! Abs!

Ana disse...

Acho complicado descasar, mas burocracia não tem mais. Sou casada há trinta anos...é mole? Muito bom o texto, como sempre. Abraços.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rita disse...

Adorei o sofrimento da delação premiada! E todo o resto! Excelente, como sempre!
Abraços

Laura Próspero disse...

Outros tempos ... já estou num sarcófago ? Quero insistir no erro até acertar !
Primeira visita no blog, bravo !
Laura

Larissa disse...

Acabei de me separar...justo eu que sempre fui MUITO contra isso, vi que infelizmente, foi um erro...mas quem sabe o que é certo ou errado em relacionamentos...mas enfim...
Gostei do texto...é bem verdade! Infelizmente...

Layla Barlavento disse...

Conviver é que teimamos em dificultar...

Beijos na alma!
Layla Barlavento
culpadowalter.blogspot.com

Oria Allyahan disse...

Risco, arrisco, rabisco... meus dedos são lapes de cor a desenhar mil fantasias. Excesso de moralidade so atrapalha.

Interessantes reflexões as suas!

Abraço!

Rodrigo Braga disse...

Texto sempre original, bem escrito e cheio de ironias.

Parabéns!

Sandrinha Fernandes disse...

Muito bom ..........ahhhhh como é difícil amar......deveria ser tão fácil, pq no fim tudo se complica?

Dalva M. Ferreira disse...

Instituição falida? Sei lá...

Anônimo disse...

excelente escrita.Mas, como dizia o poeta:
"..que seja feliz em quanto dure"
viver um dia de cada vez. encarar os problemas e
lembrar sempre que nunca haverá um relação perfeita.Somos essencialmente imperfeitos. trocar de mulher é apenas trocar de problemas.Conviver com outra pessoa nunca foi fácil. abraços.

Wonderwoman disse...

è o tempo dos padrões, quem ousar sair da linha, nunca mais será visto entre os mortais.
O que aconteceu com a rebeldia e a loucura? Viro Casualfriday? quem não se encaixa, vira ET
http://wonderwoman-bra.blogspot.com/2010/08/daqui-do-outro-planeta.html
adorei o texto!!!

Unknown disse...

Maturidade na escrita - e na vida - são claramente refletidas em seus textos. Do absurdo, você tira lirismo e consciência; princípios estes que fazem do cronista, os melhores, um ser atemporal, ou histórico, passível de análise pelas gerações futuras.

Obrigado pelas belíssimas palavras.

Dorly Neto