quarta-feira, 1 de setembro de 2010

BONEQUINHA DE POUCO LUXO

Arte de Cínthya Verri


Entrei no banheiro do aeroporto quase de olhos fechados, tateando as paredes após experimentar contenção de camelo.

Escolhi o vaso da ponta esquerda, para não embaraçar os vizinhos. Na real não escolhi nada. Com o ambiente lotado, peguei o primeiro vago.

Na hora em que abri a braguilha, gelei. Não é que não encontrei meu pau. Não é que tive nojo da poça em meus pés, coisa natural em WC masculino.

Enxerguei uma boneca no mictório. Uma Barbie me mirava com sua atitude sorridente de gueixa. Agachada, como que depilando as pernas no chuveiro.

O que fazia ali? Arrisquei puxá-la pela gola, mas faltou coragem. A garota já estava ensopada.

Busquei reprimir o jato, observei ao redor para localizar algum canto alternativo: apenas a pia. Fracassei no exercício de ioga. Respirei cachorrinho, respirei gato, respirei tamanduá, mas o controle escapou e urinei longamente. Tentei em vão não acertar sua cabeleira, não estragar sua pintura, reduzir a artilharia em sua pele branca.

Por um triz não chorei, lembrei dos caprichos de minha filha conduzindo seu carrinho de bebê no pátio. Senti que traí a minha paternidade.

Quem colocou uma boneca no mictório? Quem dobrou a pequena no porta-malas imundo? Quem sequestrou a beldade e a lançou no ralo artístico de Duchamp? Quem apresentaria tal grau de perversão? Especulei ser obra de um misógino recente e amador, um corno vingativo, homem amargurado, arrebentado pela infidelidade de sua mulher. Pegou um dos símbolos femininos para mijar em cima. Rompeu o fair play entre os sexos. Agiu como um psicopata de loja de brinquedos.

A Barbie atendeu aos rituais de um vodu. Não encontrava outra explicação. Um sujeito optou pela magia negra, a exorcizar os enganos e desventuras do casamento. No lugar da farofa e da cachaça, da galinha morta na esquina, da macumba prendada, invadiu um dos santuários masculinos e atirou a virgem no vulcão.

Ele sabia que não existia modo de resgatá-la, a peça sobraria vulnerável diante do pelotão apressado de fuzilamento. Empreendeu um plano diabólico, intencionado a humilhá-la em público e escandalizar os frequentadores dos voos. Ainda era a Barbie com roupa de gala. Seria menos ofensivo se fosse a esportista, acostumada a rapel e esportes radicais.

Aquilo me transtornou, gerou azia e impotência. Talvez escutando Fagner redescobriria que existe algo pior na vida e retomaria a honra.

Eu me culpava por esguichar na Barbie. Uma atrocidade indesculpável para seguir em frente na convivência doméstica. Um trauma sem perdão. Já queria me confessar, alugar um padre, contribuir com entidade beneficente.

Julgava o caso perdido, a mesma dimensão de um acidente aéreo.

Corri, suado, para a sala de embarque. Trocando as pernas, atabalhoado. Sentei próximo da porta, ansioso pelo chamado da companhia, para distrair o ressentimento nas nuvens. Foi quando acompanhei uma senhora recriminando o filho, uma menina miando desesperada de canto, um pai encabulado com a família histérica.

A mãe sacudia o menino:

— Onde você pôs a boneca de sua irmã? Onde?




Crônica publicada no site Vida Breve

32 comentários:

Anônimo disse...

Moral da história, imaginamos tudo, menos o óbvio. Claro,o óbvio não merece que percamos nosso tempo com ele.

Um abraço, Carpinejar.

George Dantas disse...

As vezes a gente viaja não é mesmo? hehe

Kauana Maria Neves disse...

Ótimo.

http://borboletacarnivora.blogspot.com/

Heloo Fontinelly disse...

eu simplesmente adorei o texto. A mania do ser humano de fantasiar coisas e não pensar nas possibilidades mais simples.

O Neto do Herculano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
O Neto do Herculano disse...

Há muitas bonecas perdidas pelas noites das grandes capitais - talvez, um dia, elas também esoonderam o brinquedo da irmã.

Anônimo disse...

Pelo amor de deus... vc contou aonde a boneca estava, não é?? para ao menos tentar salvá-la de tão cruel e humilhante destino, kkkkkkkkkkk

vanvader disse...

Eu mijaria na Barbie com gosto!

Beni de Oliveira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Beni de Oliveira disse...

Nossa imaginação é foda haha, genial!

Anônimo disse...

Voltei para dizer q é uma história tão deliciosa de ler q fico esperando uma continuação... tipo a mãe salvando a desafortunada boneca para a menininha parar de sofrer, kkkkkkkkkkk

Parabéns continue carpinejando!!!!!!!

T haís. disse...

Haha, uma ação de praxe entre irmãos!
Por este e por outros que tu estás onde estás! Parabéns!

Carola disse...

Aiii que dó da menininha!!! Hahahahahhaha!!! Me imaginei perdendo assim (sim, pq ela perdeu MESMO a boneca né) meu ursinho favorito, que me acompanhou a infância (e adolescência! rss!), eu ficaria desolada!! Que sorte não ter tido irmão, só irmãs! :D

Oria Allyahan disse...

Eu já vi pessoas fazerem coisas horríveis com a Barbie, das mais comuns as mais bizarras. Mas crôooonica, essa, pra mim, é novidade. Sem dúvida, elas inspiram...

Magnífico! Adoreeeeeei...!!!

^^

Maria Tereza disse...

Cara, vc é surpreendente! Ri demais! =D

M.Maia disse...

Nossa , otimo texto ,
a gente costuma imaginar cada coisa e quando vê era totalmente outra , kk : D

maurício disse...

e o Fagner? rsrsrsrsrs. mto bom!

Ixra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ixra disse...

(corrigindo)

Puxa, Fabrício, não me leve a mal, mas excetuando o bom humor, tenho achado seus últimos textos tão ruins...
O que aconteceu com aquela Literatura? Ficou na "caixa de sapatos"?

Abraço e força aí...

Michele disse...

Ser humano é complicado!! Porque damos asas à imaginação só quando não necessita? Geralmente quando encontramos algo de que não gostamos, imaginamos trocentas coisas. O mal desperta mais fácil que o bem, FATO!

HUGOSALUM disse...

Um brinde a imaginação, Um brinde a sua imaginação... Quantas coisas podemos criar de um simples moleque irritado com a irmã que se vinga dela jogando sua boneca no wc. Ótimo.

Isabel Dasp disse...

Sensacional!!! Bemmm coisa de irmão vingativo!!! Adoro absolutamente tudo que escreves!

Homero disse...

O banheiro masculino é realmente um templo masculino. Me lembro bem na infância que ao correr dos tapas de qualquer menina o destino era sempre o banheiro, impenetrável, espaço restrito pra elas. O menino foi genial, vai ver ela bem que merecia ficar sem a boneca. rs

www.homeroeu.blogspot.com

Lari disse...

hahahahahah ri muito!
"Seria menos ofensivo se fosse a esportista, acostumada a rapel e esportes radicais." ahahaha
tadinha da Barbie! irmãozinho peste!hahaha
que constrangedor encontrar a Barbie sofrendo no mictório!
Beijos, Fabro! continue inventando e escrevendo!!

Silmara Franco disse...

Não tem onomatopeia que dê conta da minha gargalhada.
Inventa?

Batom e poesias disse...

Isso é maravilhoso! No escritório "trabalhando",tento segurar a gargalhada.

"Tadinho" do Fagner!

Quaquaráquaquá.

bj
Rossana

Dani disse...

o problema é que a gente vê nas Barbies um desejo incontrolável de perversão. é perfeição demais para nós, mortais. isso incomoda a vaidade humana.

corrompemos tão facilmente as nossas virtudes. e nem percebemos.

adorei o texto!

miados do Beco.

:)

Lucia Alfaya disse...

É por essas e outras que caio na gargalhada quando me perguntam se não é ruim ser filha única.

Júlia Zuza disse...

Seu blog é o meu preferido. Não tem como vir aqui e sair do mesmo jeito.
E quem diria que Barbie, banheiro e irmãos dariam uma história tão boa?

@AnjaCaiuba disse...

Xixi na barbie!
Bah! Sacrilégio!
Tava legal!
:))

Anônimo disse...

ahaha... Carpinejar, você é um tipo muito estranho, mas eu gosto. É autêntico. Fala o que sente (pensa) e foda-se quem não gostar. É por aí...

Beijo intenso,
Mikaela.

Valéria disse...

Faz pouco tempo que conheço o blog , mas virou uma especie de vício , quando penso ,penso em quem entenderia meus pensamentos, penso em você.
E tenho vindo ler e reler seus textos, envio a amigos, ex-namorados, pretendentes, como quem diz : 'Vocês precisam ver por esse lado'.
Uns relutam, mas os que vem a ler se apaixonam também, os rapazer ficam um tanto mordidos, não sabem como se portar diante de uma pessoa que entende tão bem o universo feminino, o universo!
Nunca deixe de postar seus pensamentos ! Por favor! rsrsr
beeeeijo