Ela troca o objeto de esconderijo toda semana. Às vezes esconde tão bem que tarda a achar. O conteúdo vale a fortuna acumulada de três gerações. Trata-se do livrinho de receitas da família, alma da empresa “Anette Ruas”. A verdadeira bíblia do açúcar, com os segredos portugueses de 40 tipos de confeitos, sustenta uma fábrica de 15 funcionários e gera uma produção de 5 mil produtos por dia. É óbvio que a história acontece em Pelotas, cidade que é sobrenome de doce, onde até existe legislação para evitar a concorrência desleal.
Nas vitrines pelotenses, não vale colocar brigadeiro grande para ganhar a preferência do cliente. Doce de festa precisa ter até 40 gramas e o de confeitaria não pode ultrapassar 70 gramas. O melhor negrinho é sempre o menor, do tamanho de uma unha e que se desmancha na boca. O terceiro município mais populoso do Estado, a 250 quilômetros de Porto Alegre, leva a sério a atmosfera pecadora de claras, gemas, chocolate e massas. Isso explica a preocupação obsessiva de Anette em proteger suas fórmulas.
– Minha biografia são as receitas.
– A confusão é a essência do caderninho, a vida no meio da vida – explica.
O caderno esnobou a amizade da borracha. Um sacrilégio impensável é passar a limpo as informações.
– Assim como é impossível viver sem palavrão na intimidade – compara.
O prazer reside na simplicidade. As rasuras enganam curiosos e dificultam a localização dos tesouros. A receita de quindim, a mais importante, está no rodapé da página, como se fosse secundária.
– Quem escreve bonito demais não cozinha bem – esclarece.
Segundo Anette, não convém separar a vida pessoal da profissional. Ela abriu o negócio em 2001, no casarão do avô Pedro, após desemprego do marido, Renato, no comércio de couro. Assumiu o legado cultural iniciado pela madrinha Nilza há 50 anos. O que veio como um socorro das finanças acabou justificando a precocidade gustativa na infância.
– Debaixo das acácias, aos nove anos, eu colocava chimia de pêssego nos tachos e ouvia as estórias da avó Conceição e da mãe Maria Lopes. Cozinhar é lembrar o quanto já fui amada – confessa.
O amor influencia a rotação das panelas e das mais altas estrelas. Não é lenda: uma noite romântica melhora a qualidade do confeito. José Antonio, 18 anos, espera que o nome das guloseimas lhe ajude a arrumar a primeira namorada. Já traçou o plano de carreira na fábrica. Começar por beijinho de coco, enfrentar o olho de sogra para terminar bem casado.
O doce exige mesmo romance, já que é feito um por um, com paciência artesanal. Pamela Furtado Armindaliz, 21, bate o cartão um pouco frustrada com a maravilhosa recepção do seu trabalho. Ela pinta os bombons durante horas para serem devorados em segundos.
– Devo entender que não é um enfeite. Quanto mais saboroso, mais rápida a despedida – lamenta Pamela.
Anette dedica a manhã e a tarde ao paraíso da glicose. Nas folgas noturnas, é de se esperar que fique longe do fogão. Que nada. Seu lazer é fazer figos em calda.
– O doce é meu coração calmo – suspira.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 40, 19/03/2011
Porto Alegre, Edição N° 16644
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4 comentários:
Como sempre, me pego viajando nas linhas dos textos, vivendo em Pelotas e me deliciando com os detalhes dos detalhes, que tornam a leitura sempre muito agradável. Características evidentes do Carpinejar. Adorei!
Teus textos adoçam minha alma sempre...
Este me fez sentir a possibilidade dos pasteis de Belém...MAGIA PURA!
Obrigada por tudo, Fabrício!
Puxa, poeta! Que texto lindo! Que história interessante de se saber. E o caderno está surrado pacas, dá pra ver seu uso de anos e anos. Quantas histórias dessas há por aí (e por aqui)? Abraços.
Que doce!
http://bernardoececilia.blogspot.com/
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