sábado, 19 de março de 2011

A FANTÁSTICA USINA DE DOCES DO ESTADO

Anette ao lado da filha Cristiane. Fotos de Genaro Joner.

Um caderninho escolar surrado, sujo de comida, é o maior patrimônio de Anette Ruas, 53 anos. Mais sigiloso do que agenda de adolescente, mais importante do que inventário de morto.

Ela troca o objeto de esconderijo toda semana. Às vezes esconde tão bem que tarda a achar. O conteúdo vale a fortuna acumulada de três gerações. Trata-se do livrinho de receitas da família, alma da empresa “Anette Ruas”. A verdadeira bíblia do açúcar, com os segredos portugueses de 40 tipos de confeitos, sustenta uma fábrica de 15 funcionários e gera uma produção de 5 mil produtos por dia. É óbvio que a história acontece em Pelotas, cidade que é sobrenome de doce, onde até existe legislação para evitar a concorrência desleal.

Nas vitrines pelotenses, não vale colocar brigadeiro grande para ganhar a preferência do cliente. Doce de festa precisa ter até 40 gramas e o de confeitaria não pode ultrapassar 70 gramas. O melhor negrinho é sempre o menor, do tamanho de uma unha e que se desmancha na boca. O terceiro município mais populoso do Estado, a 250 quilômetros de Porto Alegre, leva a sério a atmosfera pecadora de claras, gemas, chocolate e massas. Isso explica a preocupação obsessiva de Anette em proteger suas fórmulas.

– Minha biografia são as receitas.

Mas não espere letra arredondada de caligrafia. A encadernação está acabada, com algumas folhas soltas e recheada de códigos, asteriscos e anotações apressadas. Os filhos de Anette, quando pequenos, aproveitaram a distração materna com as panelas e desenharam caretas, nuvens e sol entre o modo de preparo da queijadinha e do camafeu. Telefones de eletricista e pedreiros e outras emergências aparecem de repente, sem nenhuma explicação.

– A confusão é a essência do caderninho, a vida no meio da vida – explica.

O caderno esnobou a amizade da borracha. Um sacrilégio impensável é passar a limpo as informações.

– Assim como é impossível viver sem palavrão na intimidade – compara.

O prazer reside na simplicidade. As rasuras enganam curiosos e dificultam a localização dos tesouros. A receita de quindim, a mais importante, está no rodapé da página, como se fosse secundária.

– Quem escreve bonito demais não cozinha bem – esclarece.

Segundo Anette, não convém separar a vida pessoal da profissional. Ela abriu o negócio em 2001, no casarão do avô Pedro, após desemprego do marido, Renato, no comércio de couro. Assumiu o legado cultural iniciado pela madrinha Nilza há 50 anos. O que veio como um socorro das finanças acabou justificando a precocidade gustativa na infância.

– Debaixo das acácias, aos nove anos, eu colocava chimia de pêssego nos tachos e ouvia as estórias da avó Conceição e da mãe Maria Lopes. Cozinhar é lembrar o quanto já fui amada – confessa.

O amor influencia a rotação das panelas e das mais altas estrelas. Não é lenda: uma noite romântica melhora a qualidade do confeito. José Antonio, 18 anos, espera que o nome das guloseimas lhe ajude a arrumar a primeira namorada. Já traçou o plano de carreira na fábrica. Começar por beijinho de coco, enfrentar o olho de sogra para terminar bem casado.

O doce exige mesmo romance, já que é feito um por um, com paciência artesanal. Pamela Furtado Armindaliz, 21, bate o cartão um pouco frustrada com a maravilhosa recepção do seu trabalho. Ela pinta os bombons durante horas para serem devorados em segundos.

– Devo entender que não é um enfeite. Quanto mais saboroso, mais rápida a despedida – lamenta Pamela.

Anette dedica a manhã e a tarde ao paraíso da glicose. Nas folgas noturnas, é de se esperar que fique longe do fogão. Que nada. Seu lazer é fazer figos em calda.

– O doce é meu coração calmo – suspira.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 40, 19/03/2011
Porto Alegre, Edição N° 16644
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4 comentários:

Grace Kelly Cano disse...

Como sempre, me pego viajando nas linhas dos textos, vivendo em Pelotas e me deliciando com os detalhes dos detalhes, que tornam a leitura sempre muito agradável. Características evidentes do Carpinejar. Adorei!

TÂNIA CAVALHEIRO disse...

Teus textos adoçam minha alma sempre...
Este me fez sentir a possibilidade dos pasteis de Belém...MAGIA PURA!
Obrigada por tudo, Fabrício!

Webston Moura disse...

Puxa, poeta! Que texto lindo! Que história interessante de se saber. E o caderno está surrado pacas, dá pra ver seu uso de anos e anos. Quantas histórias dessas há por aí (e por aqui)? Abraços.

Cecília Sousa disse...

Que doce!

http://bernardoececilia.blogspot.com/