“Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que, 50 anos depois, os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto...”
Comecei a ler A Casa dos Espíritos, sua obra preferida, mãe. Tem sua assinatura no início, anotações pelos cantos, trechos sublinhados. Você queria que lesse... Insistiu. Meu nome é uma homenagem à personagem, né?
Quando íamos para escola na semana passada, lembro que comentou que Isabel Allende decidiu escrever uma carta para o avô doente e saiu todo um livro. Que loucura.
Na semana passada, você existia. Que loucura... Sempre usei a palavra para algo alegre, que loucura triste, como a loucura é triste.
Acordei de manhã com a ideia de que o tempo é a única liberdade. Achei a frase inteligente e guardei para o nosso próximo reencontro.
Pensei que teria tempo para mim, que poderia deixá-la de lado pela adolescência, dar mais atenção aos amigos, curtir as festas, namorar de montão, zapear pela internet e, ao final, a gente se encontraria para uma conversa animada sobre segredos. Como filmes de reconciliação entre mãe e filha, de abraços miados e choros.
Mas não brigamos e não fizemos as pazes.
Eu me enganei: não existe tempo ideal, existe tempo daquele jeito sem jeito, como vier.
Pegava no meu pé quando recebia torpedo no jantar. O barulho do torpedo me agitava, eu já me posicionava a olhar e a responder e você implicava: Agora não!
Como mesmo você chamava o torpedo? De soluço do celular. Isso, dizia que meu celular estava soluçando.
Aquele “agora não” me engasgava, era muito autoritário. Gostava de decidir o que, como e quando. Que saco.
Agora eu posso e você não.
Vontade é dizer: agora não, mãe, não morre, agora não morre.
Você se irritava demais porque roubava suas roupas de noite, sem permissão. Sabe que nunca mais entrei em seu armário? Não consegui mais puxar uma blusa, não tenho coragem. Nossa casa é um cemitério, nem preciso sair daqui para visitá-la, mãe. Vejo você em qualquer canto. Um fantasma apareceria menos vezes do que você, mãe. Você é uma ausência. Mais do que um fantasma. Uma ausência. Não houve um corpo para enterrar, desapareceu. Sumiu de repente.
Está em tudo e em nada. Não posso ouvir uma campainha, um interfone, sem desconfiar de um milagre, porra, um milagre, um erro de digitação de Deus. Senhorita, não era Mendes na lista, mas Medes. Uma letra diferente e você estaria viva.
Estou adulta depois que a companhia aérea confirmou seu nome no desastre. Adulta com 15 anos, caralho. Odiava palavrão, aguenta. Caralho!!!!
Por que, mãe? Por que me obrigou a crescer, estou com raiva de crescer para aguentar a dor.
Por que ninguém cresce sem dor? Por que não se cresce na alegria? Parece que a alegria só nos torna infantis. Explica, vai? Explica que estou ouvindo.
É estranho que você tenha sido sorteada pela tragédia após vencer azar, desgosto, privação. Logo você que brigou contra a ditadura, não é justo.
Que liberdade é essa? Eu apenas tinha a liberdade para não entender você, liberdade para não a escutar, liberdade para virar as costas.
Não parei para ouvi-la, você enfrentou a prisão quando jovem, eu sofria um pavor de que você tivesse sido maltratada. A vontade era gritar: Cala a boca, não pedi para saber!
Você sentava na sala, os olhos em um ponto fixo do teto, discursando sobre a barra pesada dos anos 60 e 70, havia censura, propaganda estúpida, muito estudante expulso da faculdade, amores despedaçados, porões secretos e sujos, sumiço de gente. Lembrava-se do rio Araguaia, dos acampamentos no mato, da identidade falsa, da paranoia... Eu me trancava no quarto para não ouvir. Para me irritar, você encostava seu rosto na porta e aumentava o volume do noticiário da garganta.
Não pedi para saber, conhecia bem onde terminaria: lembrava e logo cobrava, justificando que a liberdade de hoje custou caro, custou o sonho de muitos colegas, que eu não podia desperdiçar. Emputecida porque não tirei meu título eleitoral, que não guardava a noção do que é expressar a opinião e votar, sei lá, naquela hora parecia minha diretora da escola, não minha mãe.
Você foi torturada?
Está neste momento junto de tantos amigos que desapareceram? O que você pensou durante a queda? O que você estava pensando? Rezou por mim? Doeu?
Depois que se foi, eu puxava conversas antigas, asneiras, recados, recolhia lista de mercado do balcão da cozinha, abria contas, cartas, limpei suas gavetas, para buscar um sentido, uma aviso, um pressentimento. Mas não se é educado ao morrer, não se diz com licença. Saímos porta afora sem avisar. Não se desculpou por ter ido, não posso me desculpar por permanecer.
Em sua última frase, disse que comprou uma lembrança. Você morreu e não sei qual é a lembrança. Você morreu e eu somente me importava com a lembrança: o que será que ela comprou?
Fui fria e estúpida para me proteger. Comprar uma lembrança entendo que é comprar a memória entendo que é comprar a saudade entendo que é comprar o que não tive. Você comprou tudo o que estou escrevendo nesta carta. Linha por linha. Comprou parcelado. Dia a dia. Sou sua lembrança do avião.
Pretendia ser livre, mas não há como ser livre sem alguém para contar a própria liberdade. Liberdade foi feita para se declarar livre. É uma vaidade: sou livre.
Eu jurava que liberdade era lutar contra seus desejos. Lutar contra sua caretice de quarto arrumado, de responsabilidade, de escola. Essa aporrinhação de educar e respeitar. De não sentar de pernas abertas, de reparar que as camisas envelhecem nas golas, de comer devagar.
Deixa falar, transei com 14 anos, perdi a virgindade com o André. Foi ruim na primeira vez, foi mais ou menos na segunda, na terceira eu já tratei de melhorar, não iria esperar que ele tomasse uma atitude.
Está rindo, hein?
Bala, palha, fogo. Do que mais sinto falta é de quando você falava para exigir camisinha do namorado. Saudade do cuidado.
Fique tranquila. Não vou engravidar e morrer para minha filha.
Eu não tinha pensado que você não teria tempo para falar comigo.
O tempo é a única liberdade, mãe. Quando nos falta tempo.
“Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia.”
Eu deveria escrever um livro, mas acabei fazendo uma carta.
Conto inédito
Publicado na Revista Bravo!
Março de 2011, Ano 13, Nº. 163
SAIDEIRA, Ps. 96-98
Comecei a ler A Casa dos Espíritos, sua obra preferida, mãe. Tem sua assinatura no início, anotações pelos cantos, trechos sublinhados. Você queria que lesse... Insistiu. Meu nome é uma homenagem à personagem, né?
Quando íamos para escola na semana passada, lembro que comentou que Isabel Allende decidiu escrever uma carta para o avô doente e saiu todo um livro. Que loucura.
Na semana passada, você existia. Que loucura... Sempre usei a palavra para algo alegre, que loucura triste, como a loucura é triste.
Acordei de manhã com a ideia de que o tempo é a única liberdade. Achei a frase inteligente e guardei para o nosso próximo reencontro.
Pensei que teria tempo para mim, que poderia deixá-la de lado pela adolescência, dar mais atenção aos amigos, curtir as festas, namorar de montão, zapear pela internet e, ao final, a gente se encontraria para uma conversa animada sobre segredos. Como filmes de reconciliação entre mãe e filha, de abraços miados e choros.
Mas não brigamos e não fizemos as pazes.
Eu me enganei: não existe tempo ideal, existe tempo daquele jeito sem jeito, como vier.
Pegava no meu pé quando recebia torpedo no jantar. O barulho do torpedo me agitava, eu já me posicionava a olhar e a responder e você implicava: Agora não!
Como mesmo você chamava o torpedo? De soluço do celular. Isso, dizia que meu celular estava soluçando.
Aquele “agora não” me engasgava, era muito autoritário. Gostava de decidir o que, como e quando. Que saco.
Agora eu posso e você não.
Vontade é dizer: agora não, mãe, não morre, agora não morre.
Você se irritava demais porque roubava suas roupas de noite, sem permissão. Sabe que nunca mais entrei em seu armário? Não consegui mais puxar uma blusa, não tenho coragem. Nossa casa é um cemitério, nem preciso sair daqui para visitá-la, mãe. Vejo você em qualquer canto. Um fantasma apareceria menos vezes do que você, mãe. Você é uma ausência. Mais do que um fantasma. Uma ausência. Não houve um corpo para enterrar, desapareceu. Sumiu de repente.
Está em tudo e em nada. Não posso ouvir uma campainha, um interfone, sem desconfiar de um milagre, porra, um milagre, um erro de digitação de Deus. Senhorita, não era Mendes na lista, mas Medes. Uma letra diferente e você estaria viva.
Estou adulta depois que a companhia aérea confirmou seu nome no desastre. Adulta com 15 anos, caralho. Odiava palavrão, aguenta. Caralho!!!!
Por que, mãe? Por que me obrigou a crescer, estou com raiva de crescer para aguentar a dor.
Por que ninguém cresce sem dor? Por que não se cresce na alegria? Parece que a alegria só nos torna infantis. Explica, vai? Explica que estou ouvindo.
É estranho que você tenha sido sorteada pela tragédia após vencer azar, desgosto, privação. Logo você que brigou contra a ditadura, não é justo.
Que liberdade é essa? Eu apenas tinha a liberdade para não entender você, liberdade para não a escutar, liberdade para virar as costas.
Não parei para ouvi-la, você enfrentou a prisão quando jovem, eu sofria um pavor de que você tivesse sido maltratada. A vontade era gritar: Cala a boca, não pedi para saber!
Você sentava na sala, os olhos em um ponto fixo do teto, discursando sobre a barra pesada dos anos 60 e 70, havia censura, propaganda estúpida, muito estudante expulso da faculdade, amores despedaçados, porões secretos e sujos, sumiço de gente. Lembrava-se do rio Araguaia, dos acampamentos no mato, da identidade falsa, da paranoia... Eu me trancava no quarto para não ouvir. Para me irritar, você encostava seu rosto na porta e aumentava o volume do noticiário da garganta.
Não pedi para saber, conhecia bem onde terminaria: lembrava e logo cobrava, justificando que a liberdade de hoje custou caro, custou o sonho de muitos colegas, que eu não podia desperdiçar. Emputecida porque não tirei meu título eleitoral, que não guardava a noção do que é expressar a opinião e votar, sei lá, naquela hora parecia minha diretora da escola, não minha mãe.
Você foi torturada?
Está neste momento junto de tantos amigos que desapareceram? O que você pensou durante a queda? O que você estava pensando? Rezou por mim? Doeu?
Depois que se foi, eu puxava conversas antigas, asneiras, recados, recolhia lista de mercado do balcão da cozinha, abria contas, cartas, limpei suas gavetas, para buscar um sentido, uma aviso, um pressentimento. Mas não se é educado ao morrer, não se diz com licença. Saímos porta afora sem avisar. Não se desculpou por ter ido, não posso me desculpar por permanecer.
Em sua última frase, disse que comprou uma lembrança. Você morreu e não sei qual é a lembrança. Você morreu e eu somente me importava com a lembrança: o que será que ela comprou?
Fui fria e estúpida para me proteger. Comprar uma lembrança entendo que é comprar a memória entendo que é comprar a saudade entendo que é comprar o que não tive. Você comprou tudo o que estou escrevendo nesta carta. Linha por linha. Comprou parcelado. Dia a dia. Sou sua lembrança do avião.
Pretendia ser livre, mas não há como ser livre sem alguém para contar a própria liberdade. Liberdade foi feita para se declarar livre. É uma vaidade: sou livre.
Eu jurava que liberdade era lutar contra seus desejos. Lutar contra sua caretice de quarto arrumado, de responsabilidade, de escola. Essa aporrinhação de educar e respeitar. De não sentar de pernas abertas, de reparar que as camisas envelhecem nas golas, de comer devagar.
Deixa falar, transei com 14 anos, perdi a virgindade com o André. Foi ruim na primeira vez, foi mais ou menos na segunda, na terceira eu já tratei de melhorar, não iria esperar que ele tomasse uma atitude.
Está rindo, hein?
Bala, palha, fogo. Do que mais sinto falta é de quando você falava para exigir camisinha do namorado. Saudade do cuidado.
Fique tranquila. Não vou engravidar e morrer para minha filha.
Eu não tinha pensado que você não teria tempo para falar comigo.
O tempo é a única liberdade, mãe. Quando nos falta tempo.
“Barrabás chegou à família por via marítima, anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia.”
Eu deveria escrever um livro, mas acabei fazendo uma carta.
Conto inédito
Publicado na Revista Bravo!
Março de 2011, Ano 13, Nº. 163
SAIDEIRA, Ps. 96-98
16 comentários:
Li o conto na Bravo!, durante uma viagem de ônibus, às vezes acho que para mim bastaria uma carta, mas insisto em escrever um livro.
Também li o conto no ônibus, indo para o trabalho, e ADOREI! :)
Adorei! Mais contos, mais contos! :)
lindo!sou filha e tenho filha,as vezes tenho tempo de brincar com o tempo, outras tantas não tenho tempo de mim. eterna vigilancia para ter tempo presente com minha fiha. tks!
Legal. Espero que não se ofenda com o legal. Desculpa se digo, a única implicância que tenho é com as referências à ditadura. É algo pessoal meu, não gosto. Mas o plot é maravilhoso.
E não, apesar do que você perguntou ontem no evento do União, não tenho nada contra carecas.
ótimo conto!
Adorei o conto!! Seu blog é uma ponto de parada obrigatório nesse mundinho virtual...
nossa. Em mim doeu. Mas gostei do conto, muito.
Gostei muito desse post,prometo voltar.
Lindo conto... daqueles que deixa um nó na garganta que torna difícil voltar a se concentrar no trabalho o resto do dia...
"Na semana passada, vc existia". Também fiquei com um nó na garganta.
Simplesmente PERFEITO! Me identifiquei bastante com algumas palavras... A parte que mais me doeu e me fez lembrar do meu pai, foi: "N posso ouvir uma campainha, um interfone, sem desconfiar de um milagre, porra, um milagre, um erro de digitação de Deus. Senhora, não era Mendes na lista, mas Medes. Uma letra diferente e você estaria vivo..."
Carpinejar consegue, como grande artista que é, observar as peculiaridades do cotidiano experimentado por mães e filhas (e pq não filhos tb?!). A pujança do conteúdo a partir das trivialidades irônicas de Carpinejar provocam um estado de consternação mesmo em quem aparentemente "nunca perderá" o pai e a mãe, como é meu caso. Um texto belíssimo que toca a consciência, muda a rotina e provoca mudanças efetivas na forma de tratar os pais. Uma ótima leitura para o dia das mães!
Parabéns!
O último comentário desse post é de 2011 e veja como a arte não se deteriora com o tempo. Eu, em pleno 2015, lendo e aplaudindo sua obra. Vi hoje aquele careca feio na Fátima Bernardes e, logo que você começou a falar, suas palavras sábias fizeram com que eu o considerasse o careca mais bonito que eu já tinha visto e fosse pesquisar por "Fabrício Carpinejar" no Google, para ver o que mais o careca bonito tinha para me mostrar. Parabéns! Pode anotar meu nome na sua lista de fãs.
Muito lindo e sensível! Li no livro mas vim aqui ver se teria mais alguma informação. Gostei demais do Me ajude a chorar. Cortei cebola em muitas páginas.
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