domingo, 7 de abril de 2013

O ACASO FACILITA O AMOR, MAS NÃO DECIDE


Arte de Fatturi


Nosso primeiro encontro foi num café. Mas não aceitamos mentiras.

O café era eufemismo de pina colada e uísque. Trocamos a cafeteria pelo bar da frente.

O garçom não captou a mudança de humor.

Atravessamos a rua já de mãos dadas.

Antes mesmo de sentar, antes mesmo de conversar, nos beijamos na escadaria.

Um beijo longo como se fosse o corrimão da rua inteira.

Jamais beijei uma estranha sem palavras. Jamais beijei assim, com o beijo sendo a própria palavra.

A realidade nos favorecia. A realidade nos apressava. A realidade nos queria próximos.

Uma série de sortilégios se acumulou em nossos ombros.

Você se apresentou como marinheira. Minha ex-esposa tinha uma marinheira tatuada na perna e sempre brincava que só a largaria para ficar com a marinheira. A marinheira era exatamente o desenho de seu rosto.

Você tremia, eu ria.

Tremer é rir silencioso.

Nossa pele concordava com o toque. A intimidade sabotava as perguntas.

Dei meu anel de caveira. Entortei o ferro em forma de coração. Você colocou na carteira. Fui mexer em sua identidade. Não se olha bolsa de mulher, muito menos a carteira. Não sei o que passou pela minha cabeça, mas mexi, invadi e achei um bloco com sua letra. Nele, descrevia profecias de uma cartomante que visitou há três semanas. Pretendia conferir os presságios, por isso anotou, por isso guardou entre os documentos.

Afora doenças e preocupações com a saúde dos familiares, ela me retratava perfeitamente: alto, claro, careca, com filha adulta, tatuagens e acessórios, estável financeiramente, e com uma mão diferente da outra (as unhas pintadas), que seria o homem de sua maturidade, que você iria casar e morar junto.

Eu via o futuro antes mesmo do presente. Novamente o beijo antes das palavras.

Naquela semana, escrevi crônicas usando cartas de tarô. E antecipava que amaria uma Sacerdotisa e me nomeava como o Louco. Como que pode tamanha sincronia?

As últimas horas pareciam pressentimentos de nossas vidas entrelaçadas.

Tudo tudo gerava sentido para nossa união. Minha mania de segurar os potes pelas tampas, sua mania de respirar pela boca, minha mania de colocar os travesseiros por debaixo dos lençóis, sua mania de gritar para espantar os mosquitos como se eles escutassem, minha coleção de pinóquios, sua coleção de ovelhas.

Falamos de Pink Floyd, que você e eu ouvíamos na adolescência, banda que mais abalou nossas convicções. Não é que o quarteto do pub encerra sua apresentação tocando Dark Side of the Moon.

Nossa estreia surgia antiga, inverossímil, ensaiada.

Contei que dividia o destino amoroso em três telefones: o preto, o vermelho e o amarelo. O preto é quando forçamos o amor pela carência. O vermelho é quando o amor é agradável e fingimos urgência. O amarelo é a linha que todos temem: quando toca, é o amor raro, louco, acima de nossas vontades.

Na manhã seguinte, depois de não dormir, mandei rosas e lírios amarelos para seu trabalho, com um bilhete: Atenda!.

Nosso primeiro encontro foi sublime.

Mas as coincidências nunca serão nada sem a coragem. A trama de acasos nos ajudando nunca fará diferença sem a coragem. Os avisos dos astros nunca serão contundentes sem a coragem.

Sem a coragem, não existiremos.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 7/04/2013 Edição N° 17395

13 comentários:

Milene disse...

Vibrante!! Não existiremos sem a coragem, sem confiar no destino e se atirar em seus braços..

Nati Pereira disse...

Se não arriscarmos não tem como sermos felizes. Beijos


Mundo de Nati
@meuamorpravoce

Anônimo disse...

O amor não se explica se vive,é o desejo de estar sempre perto,é algo que nos transforma,é com muita paciencia que espero meu grande amor e sei que ele virá.

Graça Taguti disse...

Belíssimo texto. O amor arfa, exsuda de si próprio enleios mudos, trançados nas latências de bilros cúmplices. Assim deve se processar a vida. Com selos. Beijos sucessivos e imorredouros. A despeito da vida (e das ampulhetas fajutas...)

Graça Taguti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Graça Taguti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Aline. disse...

Seus textos são todos : Um tapa na minha cara !

Me falta coragem Fabrício !
São tantos sinais esperados e quando
sinalizam, negados.

Lindo texto.

Danielly Andrade disse...

Estou em uma fase completamente coragem. Algo que não tinha faz tempo. Só que o lado opsto abandonou o barco para viver uma nova fase em sua vida!

sarinhapk disse...

Perfect!! Como sempre...

Anônimo disse...

...e como quase tudo o que vc escreve, soa muito bem aos meus "ouvidos", sentidos ... Que "leem" atentamente e acompanham toda a riqueza de detalhes de sua descricao...Assim sigo como o Bob em seu mundo fantastico Imaginando, dando cor, textura e cheiro a cada historia fascinante que vc compartilha :-)

Obs. E a Alemanha, faz parte desse destino dos seus telefones coloridos?

Um abraco do Allgau,
Marianna

tamy disse...

É incrível como, às vezes, nos falta tanta vergonha na cara que se faz necessário ler um texto de um estranho para absorver as palavras que os amigos e conhecidos nos dizem repetidas vezes! Precisamos nos expor ao acaso e ter coragem de vivencia-lo. Texto sensacional!

Anônimo disse...

seus textos sao envolventes!!

Anna Paula disse...

Lindo!!!!!
É hoje que eu passo mal!!!