Arte de Eduardo Nasi
Tenho um amigo que faz locução. Ele engoliu um ventríloquo. Encontra cinquenta variações de uma única frase.
“Tome café torrado do Paraná” torna-se uma esquizofrenia em nossos tímpanos.
Repete de um modo, de um novo, e não termina de inventar uma nota diferente.
Nunca reconheço sua locução na rádio, no cinema, na televisão. É um Zelig fônico. Um ectoplasma da garganta.
E quando reconheço, reconheço errado: não foi ele que realizou o trabalho. É tão outro que nunca sei quando é ele. Ou imita tão perfeitamente os outros que não identifico mais os outros e acho que tudo é ele.
Renato nasceu com os tons de verde nas cordas. Sua voz troca de roupa como um sabiá.
Como explicar seu dom? Seu filho pequeno diz que ele escova os dentes das palavras.
Pode ser mesmo.
Mas não há talento que também não seja maldição.
Ele sofre na hora de gravar comerciais.
Os diretores de criação enlouquecem nosso bardo.
Ele fica trancado quatro horas num estúdio para acertar a atmosfera de duas frases como “Oi Gente. Tome Solitel”.
São inúmeras ordens e contraordens, sugestões e palpites sucessivos.
Somente o operador de áudio tem pena de sua incansável compaixão.
Ninguém sabe como é para falar. O cliente pressiona o publicitário que pressiona a execução das tarefas, e ambos se extraviam em bajulações poéticas.
A equipe da agência busca orientar o Renato:
— Quero uma voz introspectiva, mas para fora.
— Como?
— Uma voz tímida, mas expansiva.
— Não entendi.
— Um tom sufocado que está liberto.
— Pode explicar?
— Algo cult, mas que seja Faustão.
— Não captei…
— Um desespero cheio de esperança
— Pode dar um exemplo?
— Não consigo definir… É muito sutil.
— Seria como uma muçulmana de burka e biquíni?
— Sim, perfeito. Entendeu o espírito. Vamos gravar?
— Tô dentro, mas tô fora.
— Viu? Pegou moral! Grande Renato! Você é um dos nossos.
E Renato lê do jeito que deseja, sem pensar em nada:
— Oi Gente. Tome Solitel!
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
Um comentário:
Perfeito...
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