domingo, 12 de maio de 2013

SEMPRE TEM ESPAÇO NO AMOR

Arte de Fraga

Tinha sete anos quando meu pai saiu de casa.

Foi minha maior solidão.

Concluído o almoço, ia ao seu armário mexer nas roupas que ficaram do divórcio.

Reconstruía o pai na cama de casal.

Por ordem, colocava a boina, a camisa de linho, a gravata sobre a camisa, a calça, o cinto, o carpim e os sapatos.

Era meu quebra-cabeça em tamanho natural.

Conversava longamente com seu traje estendido no lençol, imaginando que meu pai sesteava.

Um dia minha mãe me pegou falando com os tecidos.

– O que você está fazendo, Fabrício?

– Nada, passando roupa. Brincando de passar roupa.

Eu brincava de ser filho, no fundo. Brincava de saudade. Brincava de reconciliação.

Lembrei dessa cena da infância ao separar metade de meu armário para uso de minha namorada.

Nunca tive problema em ceder território. Prefiro oferecer as prateleiras. Não sou fã do vazio.

Retirar minhas coisas é me selecionar. Não sofro com o ato, não é nenhuma renúncia.

É a alegria de mostrar que a minha vida estava incompleta mesmo, que ela veio me preencher.

Enfrentei várias mudanças nos meus 40 anos.

Já partilhei quarto com dois irmãos, onde tinha direito a somente três gavetas para encaixotar a minha tralha. Como é que comprimia a adolescência em pequena cômoda? E ainda sobravam frestas para esconder os gibis.

Depois ganhei um quarto sozinho e espalhei as roupas e ocupei todo o compartimento. Tampouco compreendia como guardava tudo em três gavetas e em seguida faltava espaço com o armário inteiro livre. Aquilo me intrigava. Redobrei atenção nas aulas de Física, porém a poesia é que solucionou o desafio.

Na vida adulta, após morar sozinho e acompanhado, solteiro e casado, fui entendendo que tenho mais espaço na estreiteza. Eu me organizo melhor na generosidade. Eu me penso melhor quando divido. Eu me cuido melhor quando alguém está comigo.

Não tenho interesse em ganhar um closet, desfrutar de um quarto aos casacos ou aos sapatos.

Independência é conviver feliz dentro da intimidade.

A ambição é deixar que minhas roupas casem também com as roupas dela, que nada fique isolado e casmurro, perdido e avulso.

Hoje estiquei a blusa da namorada na cama.

Melhor sentir saudade na presença do que na ausência.

Vou fingir que estou passando roupa de novo.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 12/05/2013 Edição N° 17430

7 comentários:

sonia disse...

você é um dos poucos homens que nasceram com uma alma feminina, sensível, enfim...uma alma de artista. Qual a mulher que não se sentiria rainha ao seu lado?!

ana disse...

Muitos  pensam que escrever é simplesmente expressar os sentimentos ,
poucos sabem que escrever é fazer com que as próprias palavras tenham sentimentos...

Raquel Cunha disse...

Não me canso de ler você! E não dá pra dizer mais nada! Minhas palavras ficam vazias depois de ler as suas.

claudia disse...

alsoesse texto me emocionou tanto...por vários motivos, me trouxe muitas lembramças. chorei.
amo demais sua sensibilidade.

Yara Oliveira disse...

chorando aqui, pensando em tan coisas lendo esse texto...

sidcley disse...

Sou pai de duas filhas e as vezes paro para pensar como seria se estivesse separado de minha mulher. Então lembro que embora meu pai nunca tivesse saído de casa, a muito tempo que não estava em minha vida...Indiferente para comigo.

Renatinha Breier Porto disse...

"Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu (...)" ... exatamente como já preconizava o gênio Chico em Eu Te Amo! Ou seja, dois gênios generosos... Te adoro, guri!