Arte de Eduardo Nasi
Minha mãe saía para trabalhar e eu ficava sozinho em casa até o anoitecer.
Antes de se despedir, ganhava as instruções de arrumar o quarto, aquecer a comida, tomar banho e realizar os temas da escola. Mas havia sempre aquela advertência mais severa, dada no abraço e beijo de tchau:
— Não abra a porta para ninguém! Ninguém, viu? Ninguém!
Numa dessas tardes desamparadas, a campainha tocou. Era minha tia Cléia. Já havia identificado pelo som meloso de seu timbre:
—Adorável sobrinho…
Toda tia carrega no perfume e na adjetivação. Toda tia é exagerada, o que soa involuntariamente cínico.
Espiei pela janelinha e não abri a porta.
Ela insistiu:
— Vejo você mexendo na cortina, meu adorável sobrinho, sua mãe me mandou aqui.
— Não posso, respondi. Não posso abrir para ninguém.
Ela gritou, esperneou, produziu escândalo, chamou os vizinhos, só que não cedi. A mãe depois veio reclamar que sua exigência não valia para quem era da família.
— Ninguém é ninguém!, bati o pé.
Lembrei de minha teimosia quando vi um gandula brigando com o jogador da Alemanha, nas oitavas de final da Copa do Mundo, em partida contra a Argélia, em Porto Alegre.
O atacante Kramer pediu a bola para aquecer no intervalo da prorrogação. Gesto natural, já que seria a próxima substituição do técnico Joachim Löw. Menos para o gandula. Na puberdade de seu bigodinho, enfrentou o número 23 da seleção germânica. Nem aí para a hierarquia do momento, ou para a importância do jogo tenso e dramático, sob o risco de ser decidido nos pênaltis.
— Não, impossível, só posso dar a bola dentro da partida — explicou o gandula.
Ele não falava alemão, o alemão não falava português. A linguagem que vingou foi a da coerção. Kramer teve que arrancar com violência a bola das mãos do adolescente.
O guri ainda tentou lutar em vão, reaver o objeto de sua estima. Em represália, ensaiou correr ao campo, porém recuou pelos assobios da torcida.
Eu me identifiquei com seu gesto. Mesmo se Joseph Blatter solicitasse a bola, ele negaria. Aquele homenzinho de capuz e tênis colorido recusaria com convicção qualquer infração à ordem recebida. Não abriria exceção para presidente da FIFA, tia, carteiraço, privilégios. Não estava em campo para interpretar a lei, e sim para executar tarefas até o fim. Custe o que custar.
Para a maioria dos torcedores, sua ação terminou sendo alvo de deboche, acolhida como falta de senso e burrice. Gerou longas vaias e risos. Não segui a hola de bullying. De pé, rompi a gozação, aplaudi isoladamente, bati palmas com força.
A obediência é tão rara, tão incomum, tão inesperada hoje em dia. Eu me alegrei ao testemunhar a ingenuidade comprometida com a palavra, a missão sendo cumprida à risca. Como é bonita a responsabilidade amadurecendo em um menino.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
2/7/2014
Um comentário:
Já fui desses. Até pensei que era a inocência transbordando. Exagero. Falta de jogo de cintura daquele menino do mato. Que bom que vi seu texto. Me senti bem!
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