segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A MAÇÃ DA VIRTUDE

Os avós preservavam uma sidra na estante, como um objeto de decoração em cima da televisão. Uma sidra fechada reservada para numa ocasião especial. Um troféu da intimidade que coroava a sala da residência em Guaporé (RS), despertando a curiosidade das visitas.

Não se tratava de nenhum champanhe chique, inacessível a quem vivia contando os trocados, mas uma garrafa honesta, simples, dada de presente por amigos e elevada ao céu das expectativas.

A vó sempre passava um paninho nela toda manhã enquanto encerava de lustra-móveis o resto da madeira. Existia no rótulo o desenho de uma maçã, espécie de único Apple da vida analógica do interior.

Cada dia poderia ser o dia ilustre da abertura da bebida. Não sei o que poderia desencadear a festa. Somente os avós guardavam os requisitos para a decisão.

Seria nascimento de mais um neto? Aposentadoria? Cura de uma doença familiar? Milagre econômico?

Eu, menino, esperava. Logo quando me acordava durante as minhas férias lá, verdadeiro Sítio do Pica-pau amarelo, corria para ver se os avós haviam feito a sua comemoração secreta.

Nada, nadinha, por vários verões. Ela resistiu em seu lugar de honra sem ter a rolha estourada. Não duvido que o produto já tinha passado da data de validade há muito tempo.
Atravessei uma esquisita melancolia pelo seu não aproveitamento. Parecia que meus avós nunca encontravam a felicidade para abrir a sidra. Não achavam um pretexto significativo. Eu vivia constrangido pela tristeza da rotina, distante de um sobressalto alegre para brindar os cálices.

Até que percebi, quando morreram, quando embrulhávamos os pertences dos dois em caixas de papelão, quando segurei o recipiente verde na mão para alisar o carpete das letras, já enrugado, que estava profundamente enganado. O sumo fermentado não precisava ser usado – o seu sentido residia em criar expectativa. Ele fornecia esperança, gerava futuro, conservava um algo a mais para a folhinha do calendário. Todo dia era feliz porque havia uma sidra na estante para ser aberta.

Eles não beberam o seu conteúdo, mas beberam a esperança até a última gota.

Publicado em Jornal Zero Hora em 31/10/2017

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