Enfrento alguns defeitos básicos.
Um deles é derramar água quando coloco a fôrma de gelo de volta. Vou empoçar a cozinha e molhar os pés.
São décadas cumprindo vagarosamente os passos da pia até a geladeira e sempre desequilibro na última hora, seja ao abrir o congelador, seja ao procurar uma fresta entre as comidas e o pote de sorvete. A ordem é frágil. Atinjo o cume, finco a bandeira e um desmoronamento de neve termina com a paz.
Não é saudável minha insistência, porém odeio fracassar. Não tem sensação pior do que se enganar e mentir aos outros para tentar se convencer.
Talvez não faça questão de sair de uma crise e goste realmente do pessimismo. São hipóteses para fugir das certezas desagradáveis.
Já sondei fazer um curso ou assumir a função de garçom nas férias para efetivar o equilíbrio. Duas coisas se deve ensinar ao filho para evitar frustrações sexuais no futuro: amarrar o tênis e guardar o gelo. O resto ele aprende sozinho.
Durante a contratação pela universidade, agendaram com incrível antecedência o teste psicotécnico. O RH garantia um privilégio e concedeu duas semanas de preparação. Ou seja, uma quinzena para exercitar minha paranoia e refinar o bruxismo.
Não posso esperar muito tempo senão apodreço. Acalentei pesadelos por noites seguidas em que o teste admissional seria caminhar com a bandejinha cheia por todo o campus. Acordava gelado.
Não ria de mim, aquilo não é fácil, é um dos mais horrendos crimes da civilização, ao lado dos buracos da camada de ozônio. É a força do Inconsciente Coletivo pesando os braços.
Antecedentes devem puxar nossa espinha. Reencontramos nas vértebras os arrepios dos condenados injustamente pela Inquisição enquanto caminhavam para o cadafalso.
Eu me vejo próximo da tosse de Giordano Bruno, primo do suspiro de Joana D’Arc.
O problema não é meu, ninguém deseja renovar a bandeja — na maioria das vezes, encontro a morrinha com duas ou três lascas. O familiar usa e devolve como se não houvesse nenhum desfalque. É a maior cara-de-pau.
Deixa o suficiente para seu uísque de madrugada, e só. Claro que descobriremos os tabletes vazios tarde demais, no momento de receber visitas e retornar do mercado com as garrafas quentes do refrigerante.
A generosidade do casal não está nas atitudes ostensivas que fazem parte do repertório de provocação e que permitem flagrantes como trocar o papel higiênico ou não largar a toalha molhada na cama ou manter seca a tampa da privada.
Generosa é a substituição do gelo, uma ação sem sabor e transparente como a água. Discreta, qualquer um pode disfarçar e fingir desinteresse.
Contrariar pequenas preguiças traz sobrevida amorosa. Repondo as pedras, asseguramos a longevidade da relação.
Crônica publicada no site Vida Breve
11 comentários:
Essa metáfora do gelo, como uma ação cotidiana mostra bem que a relação é construída na constância das ações pequenas, e não somente nas grandes (e esporádicas) demonstrações.
Já peguei muitas vezes a bandeja de gelo vazia, as vezes me causava indignação, mas com o tempo aprendi que atenção, gentileza e percepção vem acompanhas de hábitos e as vezes precisamos exercitar para então enterdemos.Adorei o texto, eles sempre me fazem ver o que já era esperado, e também o novo reinventado. Um abraço
Adoro teus textos."Contrariar pequenas preguiças" é um conselho cristalino para os relacionamentos já embaçados pela rotina das cobranças.
começo a desacreditar no meu relacionamento.
ó céus.
São questões de planejamento que os homens, que tão frequentemente se gabam do poder de organização não são capazes de executar. As pequenas coisas que demonstram atenção são sempre planejadas. E respondendo em forma de metáfora:
Abra a geladeira, abra espaço, encha a forma e vá devagar. Aos poucos se descobre o tanto de gelo que diferencia uma poça de água no chão e o êxito na tarefa!
Boa sorte à todos nós!
Contrariar pequenas preguiças nem sempre é o suficiente para dar longevidade a um relacionamento. Ao menos dessa vez, para mim, não foi..
Tenho muito medo de você. No duro.
Encher a garrafa de água também é o supra sumo da gentileza.
Seu simbolismo e poder de percepção do óbvio (o mais difícil de se perceber) e melhor ainda, o talento de escrevê-lo de forma poética me deixa assombrado e admiro cada vez mais seu trabalho.
Parabéns Carpinejar.
Incrível como já me senti péssima por derrubar a água da bendita forminha!
Oque é mais lindo em você é que está atento aos detalhes, ao que passa despercebido pela maioria.
Isso é encantador!
Beijos
São tantos equilíbrios necessários que dá preguiça tantas vezes, mesmo....
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