quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O BARULHO É NO ANDAR DE CIMA

Arte de Tereza Yamashita


Enfrento alguns defeitos básicos.

Um deles é derramar água quando coloco a fôrma de gelo de volta. Vou empoçar a cozinha e molhar os pés.

São décadas cumprindo vagarosamente os passos da pia até a geladeira e sempre desequilibro na última hora, seja ao abrir o congelador, seja ao procurar uma fresta entre as comidas e o pote de sorvete. A ordem é frágil. Atinjo o cume, finco a bandeira e um desmoronamento de neve termina com a paz.

Não é saudável minha insistência, porém odeio fracassar. Não tem sensação pior do que se enganar e mentir aos outros para tentar se convencer.

Talvez não faça questão de sair de uma crise e goste realmente do pessimismo. São hipóteses para fugir das certezas desagradáveis.

Já sondei fazer um curso ou assumir a função de garçom nas férias para efetivar o equilíbrio. Duas coisas se deve ensinar ao filho para evitar frustrações sexuais no futuro: amarrar o tênis e guardar o gelo. O resto ele aprende sozinho.

Durante a contratação pela universidade, agendaram com incrível antecedência o teste psicotécnico. O RH garantia um privilégio e concedeu duas semanas de preparação. Ou seja, uma quinzena para exercitar minha paranoia e refinar o bruxismo.

Não posso esperar muito tempo senão apodreço. Acalentei pesadelos por noites seguidas em que o teste admissional seria caminhar com a bandejinha cheia por todo o campus. Acordava gelado.

Não ria de mim, aquilo não é fácil, é um dos mais horrendos crimes da civilização, ao lado dos buracos da camada de ozônio. É a força do Inconsciente Coletivo pesando os braços.

Antecedentes devem puxar nossa espinha. Reencontramos nas vértebras os arrepios dos condenados injustamente pela Inquisição enquanto caminhavam para o cadafalso.

Eu me vejo próximo da tosse de Giordano Bruno, primo do suspiro de Joana D’Arc.

O problema não é meu, ninguém deseja renovar a bandeja — na maioria das vezes, encontro a morrinha com duas ou três lascas. O familiar usa e devolve como se não houvesse nenhum desfalque. É a maior cara-de-pau.

Deixa o suficiente para seu uísque de madrugada, e só. Claro que descobriremos os tabletes vazios tarde demais, no momento de receber visitas e retornar do mercado com as garrafas quentes do refrigerante.

A generosidade do casal não está nas atitudes ostensivas que fazem parte do repertório de provocação e que permitem flagrantes como trocar o papel higiênico ou não largar a toalha molhada na cama ou manter seca a tampa da privada.

Generosa é a substituição do gelo, uma ação sem sabor e transparente como a água. Discreta, qualquer um pode disfarçar e fingir desinteresse.

Contrariar pequenas preguiças traz sobrevida amorosa. Repondo as pedras, asseguramos a longevidade da relação.


Crônica publicada no site Vida Breve

11 comentários:

Cristiano. disse...

Essa metáfora do gelo, como uma ação cotidiana mostra bem que a relação é construída na constância das ações pequenas, e não somente nas grandes (e esporádicas) demonstrações.

Anônimo disse...

Já peguei muitas vezes a bandeja de gelo vazia, as vezes me causava indignação, mas com o tempo aprendi que atenção, gentileza e percepção vem acompanhas de hábitos e as vezes precisamos exercitar para então enterdemos.Adorei o texto, eles sempre me fazem ver o que já era esperado, e também o novo reinventado. Um abraço

Anônimo disse...

Adoro teus textos."Contrariar pequenas preguiças" é um conselho cristalino para os relacionamentos já embaçados pela rotina das cobranças.

Anônimo disse...

começo a desacreditar no meu relacionamento.
ó céus.

Kiki disse...

São questões de planejamento que os homens, que tão frequentemente se gabam do poder de organização não são capazes de executar. As pequenas coisas que demonstram atenção são sempre planejadas. E respondendo em forma de metáfora:
Abra a geladeira, abra espaço, encha a forma e vá devagar. Aos poucos se descobre o tanto de gelo que diferencia uma poça de água no chão e o êxito na tarefa!

Boa sorte à todos nós!

Augusto Amato Neto disse...

Contrariar pequenas preguiças nem sempre é o suficiente para dar longevidade a um relacionamento. Ao menos dessa vez, para mim, não foi..

Dalva M. Ferreira disse...

Tenho muito medo de você. No duro.

Alê Periard disse...

Encher a garrafa de água também é o supra sumo da gentileza.

Danilo Gomes disse...

Seu simbolismo e poder de percepção do óbvio (o mais difícil de se perceber) e melhor ainda, o talento de escrevê-lo de forma poética me deixa assombrado e admiro cada vez mais seu trabalho.
Parabéns Carpinejar.

Ivi Medau disse...

Incrível como já me senti péssima por derrubar a água da bendita forminha!
Oque é mais lindo em você é que está atento aos detalhes, ao que passa despercebido pela maioria.
Isso é encantador!

Beijos

Adélia Carvalho disse...

São tantos equilíbrios necessários que dá preguiça tantas vezes, mesmo....