quarta-feira, 17 de março de 2010

BOLSA-LADRÃO

Arte de Tereza Yamashita


Sofri um assalto na frente do edifício da namorada. Onze e meia da noite. Eu me atrevi a buscar a identidade esquecida na mesa da sala. Dois ladrões encostaram seu carro e apontaram um 38 para que não me mexesse. Ensaiei uma ré quando identifiquei o par suspeito de faróis na traseira. Não tive chance de nenhum movimento brusco. Um deles se aproximou ferozmente e me ordenou para abrir a janela e sentar ao lado. Desci do carro para não ser levado. Ele girava o revólver em minha cabeça. O cano como parafuso. Eu o observei lentamente: o boné, os olhos esbugalhados, a barba rala. É um pesadelo facial de que vou me lembrar ainda que reúna todas as forças para acordar.

A dupla arrebatou meu Cross Fox e desapareceu. Comecei a festejar a série de sortes dentro do azar. Fui colecionando o que poderia acontecer de pior. Se meu filho Vicente estivesse no banco de trás. Se os dois testemunhassem a minha namorada abrindo o portão — que ficou pela metade. Se a namorada decidisse descer com sua cachorra — ela partiria correndo para a rua. Se contasse na hora com a minha carteira e cartões de crédito. Se portasse meu celular mais avançado com nomes e e-mails. Se ele se assustasse com qualquer movimento da vizinhança e me ferisse como castigo.

Ainda me via abençoado porque somente roubaram o veículo e sai ileso.

Conversando com um amigo depois do acidente, ele me deixou angustiado, cheio de remorso. Advertiu das imprudências e censurou minha completa ausência de treinamento: não poderia olhar no rosto do criminoso e desobedeci suas ordens. Mais: disse que o assalto foi um milagre. Zombei dos meliantes ao não carregar dinheiro no bolso, necessário para as cervejas da fuga. Lamentou que escapei ao serviço militar na adolescência e, por isso, rompi a hierarquia. Frustrei o trabalho de coleta dos bens.

Quase chorava, minha vontade era voltar à cena do crime e pedir desculpa, deixar uma oferenda de flores e uma caixa de chocolates na rua.

No meio dos conselhos, confidenciou que guarda 197 reais em sua carteira, na hipótese de ser assaltado. O rolo de notas hiberna no fecho ao lado da niqueleira. É uma quantia que ele não toca nem usa para outro fim — seus filhos sabem e não devem desfalcar, qualquer que seja a emergência.

O amigo preserva o volume há três anos. Três anos aguardando um roubo.

O destino é sagrado, imutável. É para não irritar o trombadinha muito menos apanhar de graça. Sua obsessão atinge às raias da perfeição, a verba não é agrupada aleatoriamente, mas dividida caprichosamente em uma nota de cem, outra de cinquenta, uma de vinte, duas de dez, uma de cinco e uma de dois. Separou todas as cédulas disponíveis no Banco Central. Os números são quebrados para não ter o nariz ou as costelas quebradas. Tem lógica severa de não contrariar nenhuma das expectativas do agressor. Seu cuidado é tamanho que ele se preocupou com o troco para o crack.

Contrariou a perspectiva, não seria incomodado pelo assaltante, dada a realidade inevitável do encontro, mas se prevenia para não desagradá-lo. Preparava-se para não ofender o sacrifício e a paciência daquele sujeito armado. Não desejava que ele perdesse tempo e se aborrecesse com coronhadas e perguntas irrelevantes. Ao invés de contratar um segurança ou um guardinha, o amigo gerencia o caos com uma linha de crédito. Criou uma imprevisível propina do bem. Disciplinou o medo como um verdadeiro homem de família.

Antigamente destinávamos parte do salário para uma poupança, com o propósito de comprar uma casa ou cuidar da educação das crianças. Agora existe a reserva econômica para assalto. Dos nossos ganhos mensais, direcionamos uma comissão ao bandido. Já aceitamos que não haverá viaturas, reforço de policiais, vigilância; aceitamos que os presídios estão lotados, que os regimes são mais abertos do que amizade colorida, que o governo não mudará a insegurança. Na minha infância, os ladrões arrancavam bolsas, hoje podem receber em casa, desde que mantenham seus comparsas matriculados na escola.

Decidimos resolver, sozinhos, o problema para manter — pelo menos — a própria vida e as reuniões do condomínio. O negócio não tem fim, cada vez mais sofisticado. Logo abriremos uma conta-sequestro e apenas entregaremos o cartão e a senha.

— É para o senhor, economizei durante uma década.



Crônica publicada no site Vida Breve

21 comentários:

Cida disse...

É Fabrício, graças a Deus nada de mal aconteceu com VOCÊ!!!
Como se dizia antigamente: "Vão-se os anéis e ficam os dedos".
Menos mal...
Em uma época, aqui em BH, eu também já tive essa paranóia de ter o "dinheiro reservado pro ladrão"... Tristeza das tristezas"!...Agora não mais, mas em compensação, só ando na rua "antenada" 100%.
Realmente, hoje em dia, INFELIZMENTE, não dá mesmo prá se distrair e contar com a sorte.
Mas como você mesmo disse, ainda bem que o seu filho não estava no carro... Quanto a isso amigo, pode ter certeza que você ganhou sózinho na Mega Sena!
Um grande abraço e fique com Deus.

Cid@

Marina G. disse...

Graças a Deus não aconteceu nada a você, milagre mesmo.
Já fui assaltada duas vezes: após a primeira, decidi carregar sempre o do bandido de um lado e o meu do outro; na segunda, por azar - mas não muito - não tinha o do bandido, ele levou meu relógio que não era caro e meu celular que depois ao fugir dos policiais um deles largou a mochila e no final recuperei meu celular (só aconteceu porque era velho, se fosse novo teria ido, como da primeira vez, rs).
Geralmente separo uma quantia pequena pro bandido, um agrado para que não me mate.
É realmente um absurdo, quando criarem a conta-sequestro acho que serei uma das primeiras a abrir uma pra mim e com adicional para minha mãe, ou não.

Abçs.

@andyfeijo disse...

Que bom que vc saiu ileso.
E sou sua fã, vc é sensacional!

Mayara Roldo disse...

Infelizmente é o que nos resta! Temos sempre que andar com a carteira prevenida para não levar uma surra! Adorei o post, beijos!

Karin Wichrowski disse...

Que bom saber você bem e "inteiro"!Este tipo de "sorte" não é para qualquer um não...Achei seu pensamento certo,ver as boas coisas do momento ruim,mas você realmente se arriscou ao encarar o "meliante".Quanto a esta prática do seu amigo,sei de muitas pessoas que fazem isto,não na carteira,mas em outro lugar para "sacar" rápido o dinheiro e se livrar da situação,caso ela ocorra.Mas ficar esperando todos os dias que ocorra é demais!Eu moro no Rio de Janeiro,imagina se eu não fosse viver em função de esperar ser assaltada... Tento não "dar bobeira",mas não deixo de fazer coisas ou ir a alguns lugares porque posso ser assaltada!Qualquer lugar é lugar para acontecer um infortúnio, e eu acho sim válido você agradecer por tudo o que não ocorreu e "poderia" se o famoso "se" tivesse acontecido!Bem vindo à vida novamente!Sucesso,sorte e inspiração!Beijão

Anônimo disse...

Que bom, acima de tudo, que voce consegue ver o lado bom e os mals q nao ocorreram com voce nem com aqueles que sao tao importantes em sua vida... Sua falta de egoismo te faz uma pessoa especial dotada d'um coracao magico! Que continues assim...
E, qto a preparativos: sei la, acho td isso inutil e meio infantil.. cada assaltante e' um ser unico e suas reacoes nao vao jamais depender da "reserva especial" pra eles(as) e sim dos planetas acima se alinhando pra protejer ali naquele momento a vitima.
Paz pra voce e q a memoria e estoria desse assalto nao te assombrem no fututo, mas sim te lembrem sempre do quao sortudo eres.
Jander

Isadora disse...

É Fabrício, infelizmente, no final de tudo o que resta é agradeçemos por não ter nos acontecido nada.
Vivemos tão paranóicos e alguns chegam ao cúmulo descrito por você. Ter uma reserva para caso de assalto de urgência.
Cada um tentando se defender como pode e enquanto isso a Polícia... está onde mesmo?
Um beijo,
Isadora

Anônimo disse...

Continue vivo Fabricio! Grande post e reflexão!

Estefani disse...

Fabrício,

Infelizmente... é essa raça medíocre que anda tomando os noticiários, acabando com a vida de gente inocente e roubando, pra troca de nada. Me revolto com o que anda acontecendo. Mas como já dizem que vaso ruim não quebra fácil, são alguns se quebrando, enquanto outros já são modelados a pronta entrega.
E isso aí moço, fico feliz que tenha saido bem de tudo isso que lhe aconteceu.

Beijo,

Estefani

Ramiro Conceição disse...

Pô, cara, ainda bem que o final, digamos, foi feliz. Carro se compra. A nossa cara não! Há três anos, vivi o mesmo por aqui, em Vitória, ES: recém-chegado de Sampa; trabalho novo; namorada nova; lua, cidade, passeio: tudo novo. De repente, o drama: “É um assalto! Passe a grana!”. Ainda bem que, logo, o danado se mandou.
Por um instante, mudo, rezei em pensamento, agradecendo que - embora fosse noite - testemunharia um belo amanhecer do mundo.

Leandro Lima disse...

Fabrão, são nesses horas que eu digo que Deus existe de alguma forma. Que levem o Cross Fox, mas que deixem você por aqui pra continuar escrevendo suas divindades. Ah, Deus sabia que os meninos precisam de você por aqui... Seria mais que um desastre se algo de ruim acontecesse.
Força!

s2_leidy disse...

Me enquadro na "classe"? dos que levam na bolsa o celular do bandido e sinto MUITA saudade da época que não precisava me preocupar tanto.

Ramiro Conceição disse...

Veja (urg!), caro poeta, analisando mais profundamente a tua crônica, penso-sinto que padeces de uma profunda questão metafísica não resolvida na essência do teu ser. Qual foi a causa fundamental do assalto? O teu retorno à casa da namorada (suponho que seja a Cínthya) na busca desesperada por tua identidade deixada, esquecida, num momento de volúpia, em cima ou embaixo de qualquer coisa (por exemplo, embaixo do fogão da cozinha; ou embaixo do pedaço de pizza de muçarela - de acordo com a nova grafia proposta pelo filólogo Milton Ribeiro).
Porém, qual é a questão existencial fundamental? Utilizas o sabonete-bolso-traseiro de tuas calças qual navio cargueiro de teus documentos!!
Ora, isso não se faz. Por quê?
Elementar meu caro Watson, quando tua namorada coloca as mãos sobre as tuas nádegas poéticas, qual o principal fenômeno a acontecer? Ora, a ejeção de seus documentos em qualquer plaga da casa.
Então a tua reação automática, na ausência de qualquer volúpia, é retirar os teus documentos do bolso e deixá-los em qualquer lugar e, assim, esquecê-los quando de tua poética saída estratégica da casa da namorada (que deve ficar uma verdadeira arara!).
Ora, como resolver tal profundo problema metafísico? Simples.
ADOTAR O USO DE UMA POCHETE PRETA!!! Com tal solução miraculosa,o senhor, caro poeta Carpinejar, poderá testemunhar, em qualquer destes programas evangélicos - em rede nacional - sobre o teu avivamento qual nova criatura humana.

Falei e disse tudo que desdisse... Sem mais para o momento,


CABOCLO RAMIRO,
aquele pai-de-santo que resolve qualquer parada; desde que tudo esteja em movimento preferencial, em direção a saída do terreiro, antes da chegada da polícia.

Moisés de Carvalho disse...

CUIDE-SE BEM AI , MEU POETA !
QUE OS DEUSES O PROTEJA EM SEUS CAMINHOS!
GRANDE ABRAÇO !

AlphaMale disse...

que bom que tu estás bem. Mas sabe o que é mais frustrante???
Que eles tem direitos como esse: http://www.previdenciasocial.gov.br/conteudoDinamico.php?id=22

No Brasil vale mais a pena ser preso que conseguir um emprego.

Anônimo disse...

SE errou, admita. Fugiu e se escondeu ao invés de enfrentar o ladrão! Porque não distraí-lo com uma boa conversa e de repente dar uma dedada no olho??? hã??? Seu filho teria ficado orgulhoso, e vc satisfeito consigo. Mas não... peidou na farofa e entregou o carro de mão beijada, sem luta, frEEEscooo! Vc desonra todos os seus conterrâneos GAÚCHOS TCHÊ! sHAME ON YOU!

Adélia Carvalho disse...

Pois estamos mesmo caminhando para isso, infelizmente!
Bom que saiu em segurança Fabro, não é boa coisa te imaginar nesse situação.
Abraços.

\/ndre\/ disse...

Depois que li o que o Caboclo ramiro escreveu aí em cima, me imagino lendo no cardápio da Pizza Hut:

"piça de muçarela"

Argh!

JPM disse...

Nas rodovias pagamos pedágio para os cidadãos de bens e nas cidades, para não levarem nossa vida e podermos continuar a contribuir com a "competência patrimonial" dos cidadãos de bens, pagamos pedágio à bandidagem. O que prova que a vida do consumidor-contribuinte nada vale, nem para a ralé e nem para os donos do poder.

Rouxinol disse...

É lamentável tal acontecimento, Fá!
Mas mais lamentável ainda é a poupança que seu amigo fez aguardando um assalto....
Aonde vamos parar???
(indignada)!!!!

Beijosssssssss

Sariane disse...

"Na minha infância, os ladrões arrancavam bolsas, hoje podem receber em casa, desde que mantenham seus comparsas matriculados na escola." Frase desnecessária: preconceituosa, desrespeitosa com as pessoas que vivem dignamente, mesmo que com a ajuda do governo, e uma tremenda desconsideração com as crianças, filhas de assaltantes, que, inevitavelmente, não pediram para estar em tal condição. Compreensível para quem está no pós-traumático, mas brochante pra quem é tua fã e (ainda) acredita que um outro mundo é possível...