segunda-feira, 15 de março de 2010

DALAI LAMA JÁ FOI TENSIN GYATSO

Arte de Otto Dix


Bisbilhotava uma loja de artigos esportivos. Nenhum vendedor veio em minha direção. Corri para caçá-lo no fundo dos corredores e não desperdiçar muito tempo. Experimentava meu curto intervalo de almoço, que cada vez mais tem a duração de um café com bolachinhas Maria. Entre as araras de camisetas de times, enxerguei um senhor com a cor salvadora de atendimento, toquei levemente em suas costas, já com a bola da Copa do Mundo nas mãos:

- O preço, por favor?
- Não sei...
- Não poderia verificar...
- Não sou da loja, está me confundindo.
- Desculpe.
- Desculpa nada, vai se foder.

Eu não tinha culpa se ele saiu de casa com uma camisa polo laranja e entrou numa loja em que todos os vendedores tinham camisa polo laranja. Não fui tão cego assim. A pressa nos iguala. Mas ele ficou enfurecido, ofendido, por pouco não mordia as minhas próprias bolas. Uma confusão singela, absolutamente justificável, assumiu uma proporção de briga de trânsito. Levantou os braços tatuados para me empurrar e lavar a honra.

Ainda era um careca com rabo de cavalo. É triste um sujeito que tenta negar a calvície pelas costas. Não tem como levar a sério uma reputação com aquela trança raquítica, mais próxima de uma rédea do que de uma crina. Mostra que é avarento. Homem que não aceita perder cabelo nunca será generoso.

Tudo bem, estou me vingando agora. Como o lado mais fraco da história, eu apenas me afastei, abandonei a compra e a futura baixa no cartão de crédito. Não me habilitei a encher as mãos com as balinhas de morango oferecidas no caixa. O desconforto permaneceu no bolso, como um tíquete do estacionamento que não poderia perder.

É costume ecoar como agressão a troca de um cliente por um funcionário, superando em desavença aos atos de errar o nome ou intuir a gravidez numa conhecida. Não alcanço qual é a humilhação. Há debaixo disso um preconceito de classe enraizado, um medo de ser menos que forma o recalque. Ninguém quer ser faxineira. Nem a faxineira. Ninguém quer ser vendedor. Nem o vendedor. Lavador de prato no Brasil é ralé, uma submissão. Um lavador de prato nos Estados Unidos, mesmo clandestino, é chique, uma escolha.

Eu me enganei em farmácias, locadoras, supermercados, sex shop, sempre a mesma reação estapafúrdia. Uma vez abordei uma jovem de babados brancos jurando que trabalhava como garçonete e desconfio que me colocou em sua lista negra. E sumi com a sorte do bar lotado, torcendo para que ela não fosse a dona do lugar.

Não somos perdoados por não antever que o desconhecido é um procurador de justiça ou a desconhecida é uma atriz famosa. Tomá-los por outro não é uma gafe, não é uma distração, representa uma ação de dano moral. Uma injúria em último grau. O anonimato no país é uma difamação. Não vigora compreensão nem no primeiro contato. Temos que adivinhar o alto escalão de cara. Como se a carreira estivesse impressa nos traços físicos. Na rua, a sensação é que somente passeiam pessoas jurídicas.

Insuportável receber a censura típica da soberba:

- Sabe com quem está falando?

Certo que não ficarei para ouvir a resposta.

Aceitar o engano é cristão. Aceitar que não seria desagradável ser o engano é budista. A simplicidade não ofende.

Mas talvez embaralhei as figuras de propósito. O gaúcho mantém um argentino provocador por dentro, pulando no alambrado e puxando briga.

45 comentários:

Annïe disse...

Acho que vivemos numa sociedade onde a necessidade de autoafirmação se tornou algo primordial. A partir do momento em que alguém se revolta ao ser confundido com um terceiro, é quase que um atestado de falha quanto à essa necessidade. Eu entendo esse tipo de comportamento em adolescentes e jovens adultos, naquela fase de que precisam mostrar que são únicos e dotados de capacidades sobrehumanas, que tudo podem. Mas também compreendo o medo de cair no ostracismo, ao tornar-se mais velho, e não ser reconhecido por ninguém. Ainda bem que nem todos são assim.

Beijos!

Anônimo disse...

Para nossa sorte, não tem como errar se estivermos diante do Mike Tyson ou do Maguila. Os outros tipos, tiramos de letra!

Anônimo disse...

hahahah cácácá!! To me tremendo de rir - Muito hilário. Imaginei o cara que vc descreveu e o acesso de risos aumentou. A única coisa que não gosto desse blog é que todo mundo que entra sempre tenta escrever alguma coisa profunda, até quando vc conta piada.

abs

\/ndre\/ disse...

Ai, anônimoaíemcima, tenha dó!
Deixe de ser anônimo...ou será que voce se confunde entre os feijões despropositalmente?

Tem um chapéu que serviu di-rei-ti-nho...

Maria Tereza disse...

hahahahaha... Várias vezes já paguei esse mico de confundir pessoas com vendedores. E a reação foi exatamente essa. Hilário, vc! =)

Ariadne Lima disse...

Sou jornalista e lido com esse tipo de coisa o tempo todo. E me revolto a cada vez. Por que alguém que se considera poderoso não pode se identificar em um evento, por exemplo? Porque os grandes cerimoniais precisam que suas funcionárias andem com um "carômetro" para identificar as caras "importantes"? Não consigo assimilar certos protocolos e, se algum dia conseguir, por favor, me chamem de volta à realidade.

Polly disse...

A melhor forma de ler um post: assunto sério com abordagem cômica. Adorei. Você já disse tudo. Parabéns.
P.S.: Acho que, no final das contas, todos nós temos um complexo de superioridade. Do mais humilde ao mais soberbo.

Anônimo disse...

Carpi. conheço uns 3 caras, nesta função e assemelhada e certamente é um deles que peitou você. Espero que ele seja teu fã e venha te ler, e compreenda o idiota que é.

Sérgio disse...

Concordo, concordo. Já fui confundido com vendedor de livraria, funcionário de locadora de vídeos e garçom, mas, ao contrário do resto das pessoas envolvidas nessa situação, achei tudo muito engraçado. Confesso que senti uma vontadezinha de assumir o cargo, vestir a camisa e confirmar "Pois não, em que posso ajudá-lo?". Assumir novas identidades me fascina.

ana disse...

Acho que falta educação para o povo brasileiro. Nos Estados Unidos diriam : Sorry, unfortunately I'm not. (Desculpe, infelizmente não).

ana disse...

Eles diriam: Desculpe , infelizmente não sou o vendedor.

Cecília disse...

Sabe o que é engraçado? Ser confundido com o garçom ou com o vendedor é uma ofensa. Agora, ser tido como uma ameaça em potencial pelos estabelecimentos comerciais, tudo bem.

Explico: Sabe quando vamos a farmácia, e o remédio, se for mais caro, é posto dentro de uma embalagem de segurança - que só abre no caixa? Aquilo sim, pra mim, é um desrespeito. Pressupõe que o consumidor é um ladrão em potencial.

Tudo bem que as farmácias são vítimas de furtos recorrentes. Mas eu sou honesta e quero ser tratada como cliente. Não como possível bandida. Os empresários que se virem para garantir a segurança de seus empreendimentos sem sacrificar minha dignidade.

Daí, quando me dão aquele saquinho, eu não aceito. E vejo que as pessoas fazem cara de impaciência ao verem minha reação, como se eu fosse "cri cri" ou quisesse aparecer.

Engraçado como o anonimato ofende. A humilhação, não.

Ramiro Conceição disse...

Tenho um sonho habitual em que sou confundido com o presidente do Bradesco. O pesadelo é que o danado sempre termina antes que eu meta a mão na grana. Dessa maneira, chego à conclusão de que sou um masoquista incurável.

Anônimo disse...

Sra Vandrev,

Primeiro vamos corrigir seu penteado:

Ai(Aí), anônimoaíemcima, tenha dó!
Deixe de ser anônimo...o(O)u será que voce(Ê) se confunde entre os feijões despropositalmente? (Confundo-me, é isso.) (Despropositadamente ficaria mais bonitinho...)

Tem um chapéu que serviu di-rei-ti-nho...
(Suas cores estão mal arranjadas, eu não deixaria me emprestar SEU chapéu. Com relação à tentativa abstrata de me encontrar em sua roupa, não conheço o corpo a que vc se refere, faltou coesão textual para completar a ofensa...)


Apalpadas no seio (-;

Juliana Zancan disse...

Fabrício, te mandei um email sexta feira, recebeste?
Se não puderes responder (ou não quiseres) tudo bem, só gostaria de saber se recebeste ou leste ele...
mas... se quiser responder, vou adorar!
Venho sempre aqui e nunca comento, pressa talvez, não sei, mas adoro, leio sempre e sempre.
Parabéns por nos encher de orgulho (nós gaúchos) a cada vez que escreves!
Obrigada!

\/ndre\/ disse...

Ao Anônimo Anônimo:

Adorei.

(Falo das apalpadelas no seio , é claro!)

Não quer o meu chapéu? Já sei: voce é o cara do rabo-não-crina de cavalo!

Anônimo disse...

Humildade é ser o que é, nem mais nem menos. Reagir mal ao engano é se achar mais que os outros, como se nunca errasse.
Parece que vivemos rodeados, há um bom tempo, de E.Ts impolutos: é proibido ser humano.

Abraço e parabéns pela postagem!

Cida disse...

Ri demais, pois já passei algumas vezes por essa situação (tanto de ser confundida, como em confundir...)
Quando meu marido está comigo, ele ri tanto da minha gafe, que eu só falto "voar" nele...rsrsrs

Acho que as frases: "Me desculpe, eu me enganei", e a outra: "Tudo bem, isso acontece", são tão fáceis de serem faladas, que não entendo, de forma alguma, porque as pessoas não as usam mais vezes.
Penso que é porque algumas pessoas pensam da seguinte forma: "Se posso complicar, para que é que eu vou simplificar?"
Acho que é por aí...
Um grande abraço

Cid@

Anônimo disse...

Sra Azul,

Deu a dica! - sr. Não-rabo-de-cavalo. Tá aí o boné!

Ainda assim não vou usar..

Mas, Se jogar óleo, fizer massagem antes do banho, eu deixo. (-^

Silva Júnior disse...

Muito bom a percepção e o relato...esses dias passei por uma situação semelhante e o sujeito se sentiu menosprezado, como ocorreu com o mencionado..Porém esse é o Brasil propagado, e verado, pelos holofotes da mídia..ou seja, mais vale o que você tem($) do que aquilo que você é... Assim, a humildade, o caráter e a educação ficam reféns do poder financeiro e muitos só são "gente" perante aqueles da mesma classe...e isso tem nome: arrogância.. Abraço e parabéns pelo blog

jeferson queiroz disse...

...e Tenzin Gyatso já foi Lhamo Dhondrub.

\/ndre\/ disse...

Ao (já tou achando uma simpatia!!!)Anônimo Anônimo


(Não me confunda-funda-fun:)

Com massagem a ofensa é bem mais cara! 8D

Paulodaluzmoreira disse...

Divertida a história. Mas essa história de Estados Unidos... As noções dos lugares que cada um ocupa e merece na sociedade são diferentes, mas não são mais igualitárias ou desiguais que no Brasil.

Anônimo disse...

Srta Lil-ás,

Se (há) Pró-funda que o atrito a torna molhada..

Sssssshaaaam!

Anônimo disse...

Anônimo disse...
Reparando..

Se (há) Pró-funda que o atrito a torna(rá) molhada(dinha)..

Sssssshaaaam! rsrs

Tiago Medina disse...

É impossível respeitar um careca cabeludo, ponto.

\/ndre\/ disse...

Ao (cada vez mais) Anônimo Anônimo:

Me molha...
Meu molho!
Estou é de olho
no Seu Pimpolho.

(Ronca, ronca, roncolho?)

(Fiquei com a vontade de um repolho...)

Rolaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!

Manam-manam
tchu-tchu-tchurúru...

Ivi Medau disse...

Eu já passei por uma situação semelhante à estas.Deixei que uma senhora subisse no ônibus antes de mim.
Pra que? Pra ouvir dela: " Você está me achando com cara de velha? ".
É verdade,as pessoas se sentem ofendidas.

Um beijo, querido!

Anônimo disse...

Tiago Medina,

Você é meio burro. É impossível respeitar um MEIO burro. Para que a afirmação em coma de papiro histórico? O Fabrício faz isso, mas com a bandeira de boate gay, bordada na cozinha da infância dele, perfumada. Sabemos que é fofoca de parente!

\/ndre\/ disse...

Melhor ser meio burro do que um cavalo de meias.

Rodrigo Rocha disse...

hahahahahaha! Bom poder rir com a história e com os comentários! Gente divertida... Mas assim, já me confundiram também... Era numa livraria... Na mesma hora, passei o livro pelo leitor de preços, duas vezes, e disse: "Deve estar errado, ontem estava bem mais caro..." Pronto! Mais um livro vendido, e mais um leitor feliz! hahaha Abs!

Anônimo disse...

MAnan, manan

teu olho!

GRacinhá

Assinnnnnnnn ta

Minha porção, bule norte,

com três,

pernas sem

roncolho.

Anônimo disse...

Bom, já que conversou na língua selvagem, diz que é assim... DALI SALVADOR, quem sabe dele um quadro por vc?

\/ndre\/ disse...

Só Jesus salva.

De palmas.

Ui.

E bem dadas.

E na alça, quem (te) pega?

Deborah disse...

"É triste um sujeito que tenta negar a calvície pelas costas."
Ri alto!!! Muito bom!

Anônimo disse...

De palmas,

Abrindo a calça,

Quem me pega

pode tu brega.

De joelhos

de boca laça

A luz!

E vira a taça.

Ivan Bueno disse...

Olá, Fabrício.
Muito boa a postagem e o tema abordado. Já me vi nesta situação diversas vezes, tando do lado de quem confunde como no lado de quem é confundido.
Quando confundo, peço desculpas e sigo, mas percebo exatamente o que você apontou: o desconforto das pessoas em serem confundidas com vendedores, garçons, balconistas, atendentes etc. Qual a humilhação? É alguma ofença real? Não, mas aí é que está: é uma ofença do delírio que essas pessoas carregam de serem mais, de serem superiores à "ralé" (bem entre áspas, mesmo).
Experimente não chamar um médico de "doutor"... É ofensa! E ai do funcionário dele que fizer isso. Já ouvi de uma médica "Que absurdo, a fulana (secretária dela) está me chamando de Débora na frente dos meus pacientes". Débora era o nome dela, mas ela queria DOUTORA... E cadê o doutorado? E se tivesse doutorado? Tente isso também com os engravatados do Judiciário, a começar pelos advogados, com os empresários que se acham etc. É tudo um grande complexo de inferioridade confundido com o de superioridade, pois no final das contas os dois complexos são um só.
Estando agora eu do outro lado, o de quem é confundido, simplesmente respondo que não trabalho alí ou até já me vi dando a informação (por sabê-la) sem nada esclarecer (por desnecessário). Em algumas ocasiões até cheguei a brincar, ao ser abordado como vendedor, dizendo "Oba, meu curriculum foi aceito. To empregado!", mas isso depende de você olhar na cara da pessoa pra ver se ela está preparada pra ser leve, brincar, encarar a vida com um ar menos sisudo.
Outra grande verdade é que os brasileiros que saem do país reclamando que aqui não tem emprego, lá fora topam trabalhar de atendente, vendedor, garçon, baby sitter (babá), faxineiro etc. Se topassem aqui, também, talvez tivessem emprego. Mas, ah, e o orgulho ferido. Preferem levá-lo junto, de passaporte e tudo, para o "mundo civilizado".
Grande abraço.

Ivan Bueno
blog: Empirismo Vernacular
www.eng-ivanbueno.blogspot.com

Ivan Bueno disse...

Errata:
Onde está escrito "ofença" (no comentário acima), pelo amor de deus, leiam OFENSA, que é pra não ofender a Lingua Portuguesa. (rs...)

egosatira disse...

"A pressa nos iguala" .

\/ndre\/ disse...

Ai, cefaléia!

Na vaga
(em voga)
a viga mestra rui.

De fato,
de quatro
obra, sim
cobra a-não.

Ora, pois, dirte-ei:
antes de ouvir estrelas
fique na mão.

Anônimo disse...

Geléia

Indigesta,

Acha que não se empresta!

Mas vaga vazia

De quatro oferecia -

a sobra -

à cobra de sobra.

Antes de sepultar as grelhas,

Recolha o dedão.

\/ndre\/ disse...

A cobra,
de sobra,
vestiu um porém.

(Um espelho lhe faz refém?)
(Ou vazio lhe é o harém?)

- Vêde, Meu Amo, não há abraço fora do tom...
só espaço!

Então eu passo.

(Oh, tédio!)

À porta do paraíso
nem rosto,nem nome,
(só fome!)
mostravam seu laço.

Anônimo disse...

Refém de espelho,

Não tem harém.

Nada sobra além de si,

Só.

Não tem com quem,

à porta do paraíso,

laçar a fome, revezar o nome,

entrar sem rosto.

\/ndre\/ disse...

tiquetaque
tiquetaque
tiquetaque
tique...

...tóinnnnnn!

Mostre o seu
que o meu já lhe é história.

Adélia Carvalho disse...

Também guardo dolorida essas agressões dificies de compreender. Mas você diz bem, é o medo de ser tomado como um inferior que provoca no outro a necessidade de exaltar sua superioridade, mesmo que através de uma arrogância que invevitavelmente o inferioriza.