Brinquedo de verdade unicamente no aniversário e nas datas festivas.
Extravasava minha infância com brinquedos de mentira. Na época, criança significava o que havia de mais avançado em lixo reciclável. Acolhia produtos, potes e latas para criar cidades em miniatura e povoar minha imaginação. Tudo o que acabava para os pais ressuscitava em minhas mãos. Não foi uma vez que a mãe me entregou uma embalagem de sabonete: olha que bonito, quer ficar?
Eu ficava e embrulhava o olfato. Gostava de receber os frascos dos perfumes, minha oferenda predileta. Ainda mais que vinha o refil para borrifar, potente como uma pistola de piscina. Eu chegava a gastar o perfume paterno no ar para logo ganhar o recipiente. Apressava seu uso. Não existia banheiro mais cheiroso do que o nosso.
Sobrava um resto de fragrância, cerca de um milímetro dos cinquenta iniciais, justa a medida que o canudo não alcançava. Eu me encarregava de misturar com xampu e água. E passava no pescoço e nos pulsos para ir à escola. Confiava que tinha restaurado o conteúdo. Não me constrangia de ser só vapor. Transbordava a seco. Forçava as narinas a descobrir o espírito do vidro, a fingir que nada mudou desde a compra.
Mantinha uma caixa especial com os perfumes que nunca terminavam. Quando atingia a seca, recarregava da torneira e voltava a fingir pólen. Meu quarto era um free shop mais barato do mundo.
Acho que sou o igual na vida pessoal. Um pouco de cheiro e trato de encher o resto. Conservei a herança. Sofro muito diante de posturas secas e anti-românticas. Armo os olhos a surpreender e ser surpreendido e depois sereno as frustrações.
Deliro que sou desnecessário, talvez seja. Incomoda-me a minha gula, o nível de exigência, já cogito que devo ser louco, daqueles perfis inclassificáveis, em que a carreira não é mais importante do que o namoro. Posso aguentar a semana inteira trabalhando, desde que partilhe um final de semana de juras mútuas. Não pretendo descansar, e sim trabalhar a delicadeza. Se fosse para estar sozinho, não pagava a pensão e terminava preso.
O que me comove são os programas em comum: assuntar coladinho, despistando os problemas e repetindo as declarações óbvias por todo sábado e domingo. Sou um retardado afetivo, que me diga que me ama sem parar. Pelo menos, não conheci um retardado acabrunhado.
Não vejo maior arrebatamento do que alguém perguntando o que desejo fazer. Curtir a sequência de agrados até dormir com profunda nostalgia e levantar com desgosto diante do alarme. Quem não acorda ranzinza na segunda-feira não foi feliz no final de semana.
Mas o relacionamento está em baixa. Permitimos a companhia desde que nosso par não invente de existir e atrapalhar. Somos capazes de nos dedicar mais aos amigos do que à própria mulher. Nem percebemos, são distrações imaginárias. Se surge uma fresta de duas horas no serviço, não ventilamos a possibilidade de telefonar para a namorada e convidá-la repentinamente ao cinema ou a um motel. Geramos tarefas nas tarefas para justificar o tempo tomado. A indiferença é involuntária, até moderna, charmosa, atraente. Tenho consciência do meu perecimento, exalo antiguidade, ando curvado sobre a vaidade como um animal pré-histórico. O individualismo é apelidado de independência e qualquer um que ameaçá-lo será comparado a Fidel. Ninguém mais confessa que se vestiu para o outro, por exemplo. A gente diz que se veste para nos agradar e pronto, que se dane o mundo.
Eu acredito sinceramente que, ao morrer, não terá sido em vão se minha mulher confessar que não houve quem a divertisse tanto. É mais uma crença idiota.
Meu perfume acaba e abasteço o pote novamente. Só eu sei que é água. Mesmo dentro do relacionamento, grande parte do amor permanece platônico.
20 comentários:
somos iguais, pena que exceções :s sempre espero ansiosa tuas crônicas, tu me descreve melhor que eu mesma ousaria tentar descrever.. Obrigada por não me fazer sentir tão fora desse planeta, no mínimo somos 2 ;) beijããão...
Não vejo problema em desperdiçar perfume para ser feliz na reposição mesmo que por água. A finalidade é o que importa.
O fim de semana foi ótimo e a segunda, por conseguinte, está ranzinza. Mas nesse minuto fico inconformado com o individualismo disfarçado de independência.
Ao menos agora sei que sou platônico de qualquer maneira: antes, durante e depois.
Teu melhor texto de sempre. Agora deve se aposentar, porque melhor e mais humano que isso não sei se dá.
abs
bah tchê! Sempre se superando! Adorei o texto! =)
Ah, quero um "retardado afetivo, que me diga que me ama sem parar"...Por onde será que ele anda? Ahahahaa. Você é excelente!!
Mano,
você é um vivente retardado mesmo. Isso é ótimo. Mas já cobrou da amada o que ela deve dizer, hein?
Paz e bom humor, blogueiro.
Walmir
http://walmir.carvalho.zip.net
Que tristeza! O pior é a solidão subsequente à consciência.
Perfeito!
A primeira parte da crônica: "Biografia de uma árvore", "Terceira sede", "Cinco Marias", "Um terno de pássaros ao sul"... Matei a saudade desse teu lirismo triste, amoroso e inocente que embora se esconda, nunca morre.
beijo
Débora Tavares
é um tipo de homeopatia, fabrício. criaste uma água-benta, talvez.
M. Refatti
Pois eu fazia também meus brinquedos, principalmente no quintal de minha casa...E sofro ainda com posturas secas...
Uma página boa de ler. Gostei muito.Parabéns.
Um abraço
"Subsequente à consciência",kkkkkkk..seja mais clara por favor.
Estava lendo (e relendo) agora alguns de teus textos, rindo muitos com alguns, e pensando na razão da existência do meu com outros, sério essse lugar aqui é maravilhoso, um bom lugar pra quem quer se perder ou se encontrar. Obrigado pelos os seus textos :*
DEPOIS DESSA, JÁ ME CONSIDERO UMA RETARDADA AFETIVA!!!
E O MELHOR: MEU FILHO AMA PERFUME. E O DELE (PRIMEIRO INCLUSIVE), ESTÁ ACABANDO...
EM MENOS DE 1 SEMANA, DECIDI E MUDEI MINHA AQUI...
E AINDA COM A FELICIDADE DE CONTINUAR ENSINANDO MEU FILHO QUE PARA SERMOS FELIZES, É SIMPLES E NÃO CUSTA NADA, BASTA AMAR, DEMONSTRAR E PARTICIPAR. O DINHEIRO PRECISAMOS PARA COMEMORAR!
"Subsequente à consciência". Significa: Perceber que é um retadado afetivo e achar-se sozinho no sentimento. Notar qualquer coisa em si que não se encontre à volta e passar à depressão.
Poxa, dá pra escrever mais simples, tipo: Depois que eu vejo isso, fico muito mal. Fica melhor que "Subsequente à consciência", que é tão pedante quanto o meu comentário.
abs
Gugu... Dadá...Gugu... Dadá
Sou uma retardada afetiva abandonada
Gugu... Dadá...Gugu... Dadá
Estou a procura de outro retardado.
nem eu conseguiria me definir tão bem! gracias!
beijos
Yvette
Nossa ainda hj falei, me arrumei toda pensando em ti, é realmente sou tbm uma retardada afetiva!
Amei o texto!
Me vi no texto. Em todas as linhas.
Também gosto de manter meu 'vidro de perfume' cheio, mesmo que de água. Não tem coisa melhor que desejar mais o amor, a todo instante, do que tudo mais que nos engole na correria diária.
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