sexta-feira, 12 de março de 2010

CERA QUENTE

Arte de Cy Twombly


Casal feliz não tem amigos. Não tem testemunhas. Eu não caracterizaria de felicidade, é desinformação. Ninguém sabe da intimidade deles para definir o quanto estão ou não contentes.

Meu amor é brigado. Passa a imagem de tormenta, de crise, de luta, mas corresponde a uma convivência normal, de altos e baixos. Anormal é uma relação sem nenhuma anormalidade.

Não guardo pena de mim ou de minha namorada, mas dos amigos que seguram velas. Há sempre mais cera do que fogo.

Vivo pagando mico. Eles têm que suportar a bi-polaridade do amor. Uma coisa é segurar a vela no início do namoro, outra é segurar o próprio bolo com a teimosinha acendendo e apagando a cada sopro ou vento da janela.

Num dia cinzento, ligo para chorar que me separei, suspiro o uísque, fumo os soluços. Sou um suicida perigoso. Exijo cumplicidade, imunidade poética, obcecado em comprovar que não havia jeito de continuar. Falo mal à beça da namorada, destrato e subestimo o passado. Eles concordam.

No sol seguinte, fico condicionado a telefonar na maior desfaçatez e comunicar a reconciliação. É extremamente constrangedor. Contornei o que julgava irreparável, reabri o que anunciava como definitivo. Sou o salvador do suicida. Mudo o tom e a esperança. Falo bem à beça da namorada, elogio e exalto o futuro, reconheço o tanto que ela me apóia, descortino argumentos favoráveis e destaco a resistência da união que supera a mortalidade infantil das ameaças. Eles concordam.

Depois de publicar o retorno no Diário Oficial, eu me penitencio. Já estava na hora de entender: o par que apronta escândalo na despedida permanecerá junto. Perigosa é a separação seca, abrupta, cansada de explicações.

Às vezes, acho que não tenho que ceder, que amigo que é amigo providenciará um desconto e ouvirá a história pela enésima vez com o interesse da novidade. Na maior parte do tempo, acho que cometi bobagem e meus confidentes estão de saco cheio. Eu me afogo no raso. Talvez necessite mudar, vejo que engrandeço a vida a ponto de recusar uma mísera contrariedade e me vingo com o exagero.

A angústia é uma falsa urgência. Todo casal separado deveria não fazer absolutamente nada dentro do prazo de cinco dias. Não decidir movimentação alguma, permitir o corpo esfriar o desaforo, talvez entrar numa clínica ou num spa para desintoxicação vocabular.

O que acontece é cômico. Não transcorreu uma manhã do tumulto, vem uma sanha do remorso, uma conspiração maquiavélica a destruir os antecedentes. O amor se torna um crime impronunciável e mergulhamos numa mobilização desenfreada para limpar a memória, o computador e apagar as pistas. As fotos do orkut são excluídas, as senhas trocadas, as telas de proteção e os porta-retratos desaparecem, os livros afrouxam a costura sem a página da dedicatória, as cartas recebem a visita do picotador de papel. Até o chaveirinho mimoso, comprado no Brique da Redenção, é removido da argola das chaves.

Quando os dois voltam, sacrificou-se metade da memória. É aquela flutuação de fantasma na primeira semana. Uma impressão de que somos facilmente substituíveis e descartáveis.

Não se conservou nem o número no celular e experimenta-se a perversidade de perguntar de novo. O que foi construído durante meses entra numa caixinha para a caridade.

Qualquer morto depende de 24 horas antes de ser enterrado. O mesmo é indicado aos relacionamentos. Confie na ressurreição, não apresse a cova, poderá ser apenas mais um buraco no jardim.

43 comentários:

O Neto do Herculano disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
O Neto do Herculano disse...

Sou um mau cristão, talvez por isso não confie muito na ressurreição; no entanto não apresso a cova: sei que o cadáver de qualquer relacionamento tem seu tempo de descrédito, lágrimas e funeral.

Anônimo disse...

Belíssimo texto! Incrível! Ultimamente, todos teus textos têm "casado" com o momento em que estou vivendo atualmente.
Parabéns!
Tu és fantástico!

Fabio Rocha disse...

Perfeito. É assim mesmo... :)

Pri S. disse...

Morri de rir aqui! Essa mania de não curtir o luto antes de esvaziar o armário do morto realmente estraga! Tendo a relação acabado ou não.

Eu fazia isso seeeempre que um relacionamento acabava. Não aprendia nunca! E espero não ter a chance de ver se faria diferente hoje em dia... rs Bjos!

Ingrid disse...

Enterro incansavelmente dia a dia.O defunto se levanta. Não morreu, está vivo, mas jogo de novo no buraco na esperança que por lá fique. Mãos cansadas de cavar...

Lucia C. disse...

Maravilhoso o texto, parabéns! Eu me identifico muito com o que dizes, te leio sempre e te sigo no twitter. Abraço :)

Nayane disse...

Fabrício acompanho o teu blog e já podia prever que essa historia, por enquanto, não teria um final "trágico" como anunciava. Às vezes os nossos sentimentos vão além das nossas palavras e ações... tudo de booom. Amo teu blog!!!

Roberta Martins disse...

fabro, até os meus 25 anos eu costumava apagar as memórias num piscar de olhos, e na lua seguinte já estava apta ao novo par, que engano, que perverso. hoje, dou um tempo. não apenas por confiar na ressurreisão mas para deixar que o corpo esfrie, esqueça, retorne à si mesmo, descanse do outro.

um abraço.

Larissa Bettú disse...

Parabéns!
Teus textos são daqueles que pertencem à extinta espécie que conseguem, em uma mesma frase, arrancar de mim lágrimas de alegria e de dor, concomitantemente.
Agradeço a minha amiga Débora por ter apresentado teu blog a mim.
Torço para que sigas sendo bem como és: surpreendente e verdadeiramente humano.
Outra vez, parabéns!

Abraço.

Angel disse...

Seguindo uma indicação do Fábio (http://dabusca.blogspot.com/) vim conhecer o seu blog. E, de cara, leio a realidade tão bem escrita. Quem nunca viveu as idas e vindas de um relacionamento? Tanto como um dos envolvidos quanto como um dos amigos. Parte bem chata, diga-se de passagem, essa de ser o melhor amigo de um dos... rs.

Parabéns pelo blog.

Abraços!

Unknown disse...

Não se deve definir pessoas mas considero vc como um mago das palavras, aquele que consegue fazer do léxico, istrumento de alívio,castigo, consolo e redenção. Admiro muito isso e sigo acompanhando seu trabalho cada vez mais. Parabéns por decifrar a alma com tamanha simplicidade...como deve ser. Um abraço. Luciane Lopes http://lucianeaotearoa.blogspot.com

Augusto Amato Neto disse...

Querido Carpina,
É tão bom quando fala por mim a ponto de economizar o que eu nem sei por em palavras a essa altura. Obrigado!
Augusto
PS: alta probabilidade de ter de me aguentar em Maio >>> Sampa >>> Oficina!

Suellen Rubira disse...

É exatamente assim que penso. Amor nasce de um dia para o outro mas demora para morrer...

7algumacoisa.blogspot.com disse...

visite meu blog!

Vanessa Dantas disse...

Matou a pau! Já tuitei! Beijo.

juliana disse...

Fabuloso te ler, é exatamente como nos sentimos qdo terminamos um relacionamento.
Bjossssssss.

Leandro Lima disse...

Perfeito!
"Perigosa é a separação seca, abrupta, cansada de explicações."
"O amor se torna um crime impronunciável e mergulhamos numa mobilização desenfreada para limpar a memória, o computador e apagar as pistas. As fotos do orkut são excluídas, as senhas trocadas, as telas de proteção e os porta-retratos desaparecem, os livros afrouxam a costura sem a página da dedicatória, as cartas recebem a visita do picotador de papel. Até o chaveirinho mimoso, comprado no Brique da Redenção, é removido da argola das chaves."

Obs.: Mantive o chaveirinho... Foi o que restou.

Cléo De Páris disse...

nunca foi tão oportuno achar palavras no mundo como hoje foi achar as suas. ontem "enterrei" um amor, imprudentemente talvez. no meu blog também. vamos ver o que terá a dizer o tempo.gostaria que lesse. http://pueril.zip.net/ Desamparo XV

Isadora disse...

Amei muito o texto. Adorei a parte dos cinco dias sem fazer absolutamente nada!!!!
O visitei por indicação de uma amiga e fiquei muito feliz.

Um beijo,
Isadora

s2_leidy disse...

Quem aprende a dar "tempo ao tempo" consegue perceber o verdadeiro sentido de um relacionamento.

Maria Tereza disse...

isso quer dizer que já teve reconciliação? rs..

Beatriz disse...

muitas vezes uma separação pode ser uma reconciliação consigo mesmo.
maravilhoso o texto.

Joise Simas disse...

Magnífico! Isso é o decifrar do término de um relacionamento! Admiro esse poder que tens de ler nas entrelinhas dos sentimentos mais ocultos. Tenho todos os livros escritos por ti e leio todas as postagens de seus blogs e isso, querendo o não, me faz uma pessoa mais pé no chão com relação a a certo assuntos e isso é muito bom. Parabéns e obrigada, Carpinejar!!!

Rafaelle disse...

Me surpreendo sempre que visito o teu blog, fantástico!. Vc consegue desenhar a vida com palavras perfeitamente.Parabéns pela volta!. Acho que vcs fazem um belo par e eu já estava sentindo com pesar de não ler o " Matando Carpinejar"

beijos,

Rafaelle

solfirmino disse...

“Pinta-se o amor sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos [...], nunca chega à idade da razão. Usar de razão e amar são duas coisas que não se ajuntam. A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor quando conquista a alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração que não houvesse fraqueza no juízo.”
(Padre Antonio Vieira)

Ramiro Conceição disse...

Caro Fabro, bisbilhotando o blog da Cínthya e o seu, chego à conclusão de que o amor entre a médica e o poeta não morreu; apenas saiu para um breve passeio; porém, de agora em diante, será necessária uma real viagem – mesmo que seja ao impossível! Assim, aos dois, desejo felicidades e infelicidades, mas enamoradas!!



APOTEOSE
by Ramiro Conceição



Se não crês em mim tal qual amigo
então não me vês; mas um inimigo
que carregas dentro e que te devora,
que está a te furtar nesse teu agora.

Amar é não semear carências.
Ah, essas farpas da existência!
Dos rascunhos, nasce a poesia.
Dos fracassos - a nossa alegria.

Trocar amigos por inimigos
é do mar roubar, com o mal, o sal
numa noite d’estrelas embrulhadas.

Pra provar que sou amigo, te digo
que amar é crer na difícil hipótese:
é ver no escuro — uma apoteose.

Unknown disse...

Amigos as vezes servem como valetas ou vasos sanitários onde jogamos todas as mágoas das relações frustradas. Quando se abre uma brecha para um ouvido amigo, abre-se também o direito a palpites e caretas quando colocamos o rabo entre as pernas e engolimos tudo que deixamos sair na hora da raiva. Tem o ônus e o bônus, sempre!!

Kleyton bastos disse...

Não canso de ler seus textos.
Parabéns!

Unknown disse...

Olá

gostei do blog e desta crônica ela me faz refletir alguns pontos bem importantes mas o principal é que notamos que quando somos levados pelo "calor da emoção" ou pela "instantaniedade da fúria" não somos levados pra bons caminhos e nem fazemos boas escolhas com estes referenciais.

o fato é que quem consegue conter-se? a mágoa vem e se agiganta diante de nós e ficamos loucos, cegos, brutos e ignorantes e depois de passada a turbulência só nos resta a condescedência da vergonha e do arrependimento.

Um abraço.

Mayara Roldo disse...

ADOREI o texto, como sempre. Acho que é meu primeiro comentário aqui, mas acompanho teu blog há tempo. O texto estava uma delícia, adorei tudo que transmitiu. Beijos!

Luna Sanchez disse...

Quando não se tem mais a vontade de fazer da briga um show, ainda que particular, é que é o fim, mesmo.

Nem bom nem ruim, isso é apenas o ciclo da coisa.

ℓυηα

mãe de lara disse...

Tantas verdades em um único texto..

Muito bom, Beijos.

Mile Corrêa disse...

Quem mais sofre na história toda?
Os pobres amigos! rs
ÓTimo texto!
Você se supera a cada dia
nos seus textos, hein!
Beijos

Tatiana disse...

Muito fã sou! Fã das palavras que cortam a alma! Parabéns pelo trabalho, me amarro profundamente.

Cida disse...

Amei descobrir seu blog, quase que por acaso!

Lavei a alma lendo seus escritos (Você consegue a façanha de: escrever bem, e fazer a gente rir)
Coisas mais do que difíceis... Pode crer!

Volta e meia coloco uma frase sua lá no meu "mosaicos". Mas em todas coloco a autoria, viu?...rsrsrs

Logo no início do mosaicos, cheguei a colocar alguns poemas meus, mas com o passar do tempo, acabei me focando em imagens e frases e me firmei nesse formato, que a mim, se mostrou muito prazeroso.

Se algum dia você estiver com insônia ou qualquer coisa do gênero, de uma passadinha lá... te garanto que vai achar alguma coisa prá ouvir pelo menos. Tenho uma seleção de músicas até bem boazinhas. E aí, quem sabe você pegue no sono mais rapidinho... pense nisso, tá?

Meus ascendentes, assim como os seus, também eram italianos... será que foi por isso que virei fã de suas frases (e agora do seu blog)?...:-)

Bem Fabrício, vou voltar outras vezes (com toda certeza), pois gostei bastante daqui.

Tudo de ótimo prá você e tenha um bom domingo.

Cid@

Marcelo Ulguim disse...

Hahaha! Muito bom! Muito original! Quem já não passou por isso?

Anônimo disse...

Também sigo este roteiro e anuncio aos amigo a separação um monte de vezes. Até pago o mico de ouvir "de novo?". Só que, um dia... "Perigosa é a separação seca, abrupta, cansada de explicações", vc diz; e eu penso que esta, a perigosa, é apenas a chave de outro do soneto passional. As outras são como "não percam as cenas dos próximos capítulos". Mas a novela, pra mim, acaba como havia sido anunciado. Espero que não seja assim para você.

Anônimo disse...

eu confio e muuito na ressuscitação! Só vivo tendo "a primeira vez q a gente se encontrou" haahaha!

Ivi Medau disse...

Nossa, judiação dos amigos!
Cansei os ouvidos de alguns e ouvi: " faça alguma coisa e pare de reclamar!". Sendo assim, notei que na verdade não estava buscando somente por amparo e sim que a solução caísse do céu.
Desde que entendi isso, seguro o ímpeto de ligar.

Um beijo!

Fabiana Barbosa de Souza disse...

Dizer que vc escreve muito bem e de forma a surpreendente é óbvio, mas necessário. É raro encontrar pessoas com a sua sensibilidade e com a capacidade de colocá-la em palavras como você, por isto merece toda a valorização e reconhecimento. Fico sedenta de vontade de fazer seus workshops... pena ser tudo tão longe...
Me delicio de longe com suas palavras. Amei o texto.
bjs

Adélia Carvalho disse...

Em todo fim temos a certeza da impossibilidade da reconciliação e em todo recomeço temos a certeza da impossibilidade de manter-nos afastados da maravilha de estar juntos. E os amigos: concordam tanto na ida quanto na volta!rsr...adorei. Abraços.

Alice Lopes disse...

Certeza que vc parece alguma parte minha que deixei descansar por aí! Essa incansável mania de sorver até a ultima gota cada pingo de vida... enfim, não é mais caso só meu!

Parabéns pelos textos, estão incríveis!