Meu amigo se separou.
E ria e conversava com todo fermento da noite. Não vi nenhuma careta. Nenhuma cara amarrada. Nenhuma marca de suicídio. Um homem aberto ao convívio. Quem o observava não cogitaria que dividiu um táxi com sua mulher e cada um partiu para a um canto diferente da cidade. Não imaginaria que ele se distanciou da esposa de cinco anos. Não se apontaria coisa alguma de diferente nele, sem resquício de mal-estar na gola, sem qualquer dobra a mais em sua camisa xadrez. Levantava o chope com a mesma envergadura. Preocupava-se com o rumo dos temas com igual zelo. Comentou filmes, destilou cotação de livros, elegante na ironia e contido na crítica. Aparentava a boemia engraçada de uma sexta-feira. Nem mais vontade de beber, nem menos.
Não havia cansaço de uma longa refrega, olheiras de preocupação, bafo de ofensas. Estava até de dentes escovados, cheiroso inclusive — e eu que jurava que não se tomava banho num divórcio.
A impressão é que esqueceu um compromisso, extraviou uma tarefa, sei lá, a chave da porta do edifício, algo substituível, não um namoro, um casamento, um destino. Sugeria um desapego, uma frieza, fiquei em dúvida se podia confiar nele, não havia feito barbaridades como quebrar cabides e porta-retratos, não havia protagonizado um ataque de piromaníaco com as cortinas, não sumiu com imagens e cenas em seu computador. Como que meu amigo não estava sofrendo? Como não chorava, não reclamava de sua companhia, não condenava o desenlace?
Não vislumbrava um filete de sangue que atraísse os vampiros das fofocas. Ou seja, nós, os colegas do balcão, ansiosos por tragédias, boquiabertos, salivando por detalhes, escárnios, pela exposição desenfreada de sua vida íntima.
Não saiu um palavrão, uma filha da puta de sua boca. Meu amigo não falou nada. Não se debruçou na toalha, não palitou as veias, não esbofeteou seus olhos com guardanapos.
Justamente porque estava sensível demais. Excesso de sensibilidade nos leva à insensibilidade. O extremo é negação.
A despedida era muito recente para gritar e sacudir os braços em oração muçulmana. Ainda não respirou lonjuras, não experimentou a quebra de ritmo, não descontou um par de talheres na hora de pôr a mesa. Não existia um dia de travesseiro e de cama vazia. Não engasgou no ato falho, não emudeceu no constrangimento das gavetas, mantinha a espera de um pedido de desculpa.
Desespero em demasia é tranquilidade. Não processamos, não digerimos, estamos conectados em pensamento com as últimas palavras, revisando os diálogos com a esperança de intervir na ilha de edição ou de retomar as filmagens.
Demoramos a nos separar, mais ainda em nos descobrir separados.
Aceitei que estava realmente divorciado um mês depois do fim, ao buscar o filho no antigo apartamento. Encontrei as tolhas molhadas no corrimão da escada-caracol. Eu que sempre levava para cima quando subia ao escritório, eu que sempre estendia o jogo no varal do terraço. Toda manhã, como uma senha, um rito de bom-dia.
Enfrentei a saudade, contive o ímpeto da falta. Confesso que a imobilidade doeu mais do que um movimento abrupto. Se realizasse o ato banal, vestiria novamente os fantasmas.
A casa não era mais minha. Os hábitos não eram mais meus. Não tinha mais obrigação com o passado. Sequei o rosto com os próprios punhos.
E ria e conversava com todo fermento da noite. Não vi nenhuma careta. Nenhuma cara amarrada. Nenhuma marca de suicídio. Um homem aberto ao convívio. Quem o observava não cogitaria que dividiu um táxi com sua mulher e cada um partiu para a um canto diferente da cidade. Não imaginaria que ele se distanciou da esposa de cinco anos. Não se apontaria coisa alguma de diferente nele, sem resquício de mal-estar na gola, sem qualquer dobra a mais em sua camisa xadrez. Levantava o chope com a mesma envergadura. Preocupava-se com o rumo dos temas com igual zelo. Comentou filmes, destilou cotação de livros, elegante na ironia e contido na crítica. Aparentava a boemia engraçada de uma sexta-feira. Nem mais vontade de beber, nem menos.
Não havia cansaço de uma longa refrega, olheiras de preocupação, bafo de ofensas. Estava até de dentes escovados, cheiroso inclusive — e eu que jurava que não se tomava banho num divórcio.
A impressão é que esqueceu um compromisso, extraviou uma tarefa, sei lá, a chave da porta do edifício, algo substituível, não um namoro, um casamento, um destino. Sugeria um desapego, uma frieza, fiquei em dúvida se podia confiar nele, não havia feito barbaridades como quebrar cabides e porta-retratos, não havia protagonizado um ataque de piromaníaco com as cortinas, não sumiu com imagens e cenas em seu computador. Como que meu amigo não estava sofrendo? Como não chorava, não reclamava de sua companhia, não condenava o desenlace?
Não vislumbrava um filete de sangue que atraísse os vampiros das fofocas. Ou seja, nós, os colegas do balcão, ansiosos por tragédias, boquiabertos, salivando por detalhes, escárnios, pela exposição desenfreada de sua vida íntima.
Não saiu um palavrão, uma filha da puta de sua boca. Meu amigo não falou nada. Não se debruçou na toalha, não palitou as veias, não esbofeteou seus olhos com guardanapos.
Justamente porque estava sensível demais. Excesso de sensibilidade nos leva à insensibilidade. O extremo é negação.
A despedida era muito recente para gritar e sacudir os braços em oração muçulmana. Ainda não respirou lonjuras, não experimentou a quebra de ritmo, não descontou um par de talheres na hora de pôr a mesa. Não existia um dia de travesseiro e de cama vazia. Não engasgou no ato falho, não emudeceu no constrangimento das gavetas, mantinha a espera de um pedido de desculpa.
Desespero em demasia é tranquilidade. Não processamos, não digerimos, estamos conectados em pensamento com as últimas palavras, revisando os diálogos com a esperança de intervir na ilha de edição ou de retomar as filmagens.
Demoramos a nos separar, mais ainda em nos descobrir separados.
Aceitei que estava realmente divorciado um mês depois do fim, ao buscar o filho no antigo apartamento. Encontrei as tolhas molhadas no corrimão da escada-caracol. Eu que sempre levava para cima quando subia ao escritório, eu que sempre estendia o jogo no varal do terraço. Toda manhã, como uma senha, um rito de bom-dia.
Enfrentei a saudade, contive o ímpeto da falta. Confesso que a imobilidade doeu mais do que um movimento abrupto. Se realizasse o ato banal, vestiria novamente os fantasmas.
A casa não era mais minha. Os hábitos não eram mais meus. Não tinha mais obrigação com o passado. Sequei o rosto com os próprios punhos.
Crônica publicada no site Vida Breve
41 comentários:
Nossa, perfeito! Enxerguei nesse texto o fim do meu casamento...
Ai....
Excelente! tamanha sensibilidade. Parabéns
Dói. Mas passa.
Que texto lindo! Muita sensibilidade e encanto literário.
Ainda bem que nunca casei! Levar fora de namorada é mais tranquilo, não implica tantos detalhes, não envolve tanto compartilhamento de vida.
Abraço.
Eu diria que divórcio é algo insuperável! A vida segue, amamos novamente, mas lá no fundo, num cantinho bem escondido fica aquela dorzinha pelo sonho/vida que não deu certo.
Vou fazer 5 anos de separada, e a antiga "rotina" que tanto reclamamos ainda me faz falta!!
Com você achei que havia apenas aquelas músicas para escutar,
quando para nós não havia mais baile para dançar.
Tínhamos somente uma história de sempre,
depois descrente, não vi mais semente.
O futuro se tornava hoje a cada manhã,
quando se escorria a esperança no amanhã.
Passava um domingo de chuva, um domingo de sol,
até que a semana se esturricasse no varal.
E se secasse a fronha.
E se fosse a mesa.
E se caísse a folha
de uma vida inteira.
www.pensologodanco.blogspot.com
Sensibilidade à flor da pele como de hábito...
Pra ser, preciso
Sempre nus, falta
Algo a que quereremos
:)
P.S.: Sempre visito os blogs que mais aprecio como quem vai ao supermercado... minto, como quem vai à caça... como quem procura alimento [de uma ordem diversa daquele de que necessita o corpo, óbvio] a idéia é de a.fagos.citar pela fome saciada...
Aqui o alimento é sempre farto, agridoce e quente...
;)
ai, como dói descobrir-se separada(o)... ={ Ótimo texto! =)
Cara, estou separado desde fevereiro desse ano, depois de pouco mais de 5 anos de casado. O que mais dói é não estar todos os dias com o meu filho, que hoje tem 4 anos.
No resto, o mais difícil é se adaptar à nova vida, recriar hábitos, se recolocar no dia a dia...
Grande abraço a todos.
Caro Carpinejar,
Hoje te contato para falar de futebol. Sou jornalista do Correio Braziliense e gostaria de entrevistá-lo hoje sobre a final da Libertadores. É possível? Estou no gustavo.marcondes@gmail.com.
Um abraço,
Gustavo Marcondes
O que nos consola quando uma relação termina é:um dia essa dor passa.
Belo texto Fabro.
Bjão.
Vida que segue...
"Não vislumbrava um filete de sangue que atraísse os vampiros das fofocas. Ou seja, nós, os colegas do balcão, ansiosos por tragédias, boquiabertos, salivando por detalhes, escárnios, pela exposição desenfreada de sua vida íntima."
Por instantes fiz parte dessa crônica.
Muito bem escrita, muito bem pensada, muito triste e intrigante!
Sensacional e ponto final.
Adorei!
'O extremo da negação'. É isso que eu não sabia o que tinha me acontecido Fabro! brigada! um beijo
Hj estou jururu, querendo muito que alguém especial descubra o prazer da solteirice, para cair em meus braços e quem sabe, voltar a ser casado, mas desta vez, comigo... vida que segue..
Caro poeta,
seu amigo só
(se…) parou.
Ainda falta
a imensidão
da dor…
o mais difícil é não saber o que ele está fazendo, o que está pensando,o que ele está sentindo. O não saber, é o que mais dói.
Mestre é mestre!
Há quem se acostume com a ausência facilmente, deixando-a entrar na rotina, quase dando-lhe bom-dia ao espelho.
Excelente crônica, como sempre, Fabrício.
Abraço.
Belo texto!
Eu diria que a dor é educada fora de casa, fora dos nossos limites.
Dentro de casa, ela esperneia, grita, entra em prantos.
Pegou pesado!
E me pegou!
muito bom!
Sou sua fã.
"Eu não disse esquecer. Eu disse deixar ir. As pessoas, de um modo geral querem trazer tudo de volta. Elas não conseguem encarar o fato de alguém ter partido. Seja de bairro, cidade, pais ou até mesmo dessa pra uma melhor. Elas não conseguem aceitar essa mudança. Elas querem que tudo seja igual a sempre foi. A perda vem para nos desafiar. Você acha que tem as cartas nas mãos, mas o baralho é dela. Você tem as respostas, vem à perda e muda as perguntas.
- Gostei disso. Se aprofunde!
- Eu quero dizer que antes de perder minha família, eu já tinha toda minha vida desenhada. Eu sabia em que anos meus filhos iriam se formar na faculdade. Eu sabia quando eu teria alguma comemoração com a minha mulher. Enfim, eu já tinha todos os meus planos. Se bobear já fazia planos até com qual idade morrer."
Trecho do livro:
Let Go - O Homem que Sobreviveu
Muito bom seu texto. Me lembrou esse livro. Admiro muito o seu trabalho
Um fim é muito triste. Nunca casei, mas fiquei noiva, mais ele dormia na minha casa do que na sua própria, foram mais de 6 anos.E qdo acaba a gente fica meio desnorteado, como se um tanto de nós se perdesse. Entendi o que é isso: o já não poder saber como é a rotina do outro, o não mais poder organizar taç rotina de modo a comportar um pedacinho da gente, um toque que diga a ele (ela) "estou aqui com você". LINDO!!
* tal
Estou repassando! Fantastica a cronica! :)
Maravilhoso o texto! Por um instante, pedi licença ao autor e, por um instante, mais um, fui sentar-me ao lado de minha amada. Lhe dei um, mais um, doce beijo.
Não é só o modo como escreve, mas o modo como descreve. Sinto que sua sensibilidade para com os significados é enorme.
Parabéns.
Continue assim, dê-nos prazer.
Obrigado.
@fariasjr
ai... tem coisas q doem mais do que um divorcio.
é a separação dentro do casamento. Manter um casamento falido, é dormir com o fracasoo todos os dias.
"...chorar so pq é triste o fim.."
Estou vivendo a dor de uma separação. É engraçado como na hora da separação não nos alteramos, como quando estamos mais sensíveis ao mesmo tempo nos tornamos insensíveis, e como as lágrimas só afloram quando vivemos as falhas na nossa nova rotina, tempos depois, quando percebemos uma situação que não mais existe. Aí sim, sentimos falta.
ESTOU VIVENDO UMA SEPARAÇÃO E A ANGUSTIA DE OUVIR E ENTENDER O QUE TODOS DIZEM:"FOI MELHOR ASSIM", COMO É QUE FOI MELHOR SE O AMOR ESTA AQUI MAIS O SER AMADO NÃO... E VC NÃO VER E NEM SABER O SOFRIMENTO DO OUTRO DÓI MUITO MAIS "Justamente porque estava sensível demais. Excesso de sensibilidade nos leva à insensibilidade. O extremo é negação."
CRÔNICA PERFEITA
PARABENS
Eh... o amor é feio, sabe...
Gostei, gostei muito.
^^
"Demoramos a nos separar,
mais ainda em nos descobrir separados."
A partir daí,
que texto mais emocionante...
Beijo,
Doce de Lira
O texto me tocou profundamente, pelo detalhamento do ato, eu que sou afeita aos detalhes que dão forma ao algo maior. Alguém já disse que separação é como ir soltando um a um os fios de uma marionete. Não dá para separar no estanque. Ela, a separação, vem a miude. dia-a-dia.
Malu
A felicidade tem que estar e emanar de nós mesmos, somos a melhor companhia que temos. Namorar é que é bom, nos possibilita só as coisas melhores de um relacionamento.casamento é tortura!
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