terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ELE? EU!

Arte de Philip Guston


Haverá um período em que o filho vai cansar do que representamos. É tão cansativo concordar sempre, tão chato alguém que tem sempre razão. Ele irá combater a nossa figura com a ironia que dispõe, porque acredita que temos culpa naquilo que ele está sofrendo.

A relação filial depende do término da idealização. Não somos os melhores pais do bairro, somos os pais que podemos ser.

É o que chamo de fim do feitiço do bebê, daquela relação harmoniosa de que o pai e o filho são a mesma coisa.

O desencanto virá, é uma previsão inadiável, surgirá com o nosso desemprego ou quando nos separamos ou quando cometemos uma deselegância em público. Não demora, a decepção chega, esteja pronto, ninguém é perfeito a ponto de esconder os próprios defeitos durante a vida inteira.

O filho não expressará sua frustração somente a partir de insultos, manhas na mesa e choro ao dormir - sintomas óbvios. Faz também de formas mais secretas e que muitos nem identificam. Uma delas é, de repente, gabaritar as provas da escola e passar de aluno C para A. Pensaremos que ele finalmente encontrou a vocação, que agora decolou para Harvard. Cuidado, grandes alunos estão escondendo grandes problemas. São os mais inteligentes, disfarçam os pontos de críticas para conquistar a indiferença. Como não tem desempenho ruim na escola, parece que está maravilhoso. Os conceitos tornam-se álibis para cultivar tiques e fobias em paz.

Já ouvi casais dizendo diante do orgulhoso boletim do filho: "Não preciso mais me preocupar com ele!". Sim, precisa se preocupar, agora mais do que nunca. O acerto não é isolado. Veja se ele não anda antissocial, se não está falando baixo, se procura contar seu dia?

O que é bom não é de todo positivo, o que é ruim não é de todo negativo.

Assim como é provável que o filho, nalgum momento, largará de nos chamar de pai e adotará o nosso nome como referência. Cheira a desamor, tampouco é; trata-se de um distanciamento necessário para criar sua identidade. Vicente, meu filhote, inventou de me caracterizar como "Ele". No começo, me magoou. Depois larguei de corrigi-lo. Pai é uma palavra difícil. Em vez de defender o meu desapontamento, é hora de ajudá-lo. Esclarecer que não sou seu centro do mundo, que ele está certo em procurar seus gostos e empatias fora de mim.

Já fui menino, é um horror amadurecer, vem os pelos, a voz muda, nos sentimos feios, não controlamos a sexualidade sequer entendemos os hormônios, existe o receio de que os outros também notem nossa transformação. É uma solidão que somente a timidez suporta.

Para o filho não ser um monstro não podemos fingir que somos heróis.




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 206
Janeiro de 2011

10 comentários:

Aline /B. disse...

Adorei o texto, Carpinejar!!!

Roseanne disse...

Nem sou mãe ainda, mas é a forma que eu gostaria de agir quando for uma. Acho errado esconder certas coisas das crianças, mascarar. As crianças quando crescem, enxergam a realidade de outro jeito e terminam aprendendo a não confiar.

Marco Correa Leite disse...

E eis que eles entram na adolescência e acontece tudo isso...

Abraços

Pricila Gunutzmann disse...

Fantástico!
Doce, humano, preciso, real.
Carpinejar, sempre Carpinejar.
Sou fã!
Beijo
Pri

Jeferson Cardoso disse...

Sem essa de herói. Não dá certo mesmo. O lance é não assumir uma postura de “deixa que eu bato todas às faltas”. Aqui em casa, quando as crianças pedem algo que está fora de nosso alcance eu digo: _Estude bastante, assim quando crescer poderá ter uma profissão que lhe remunere bem e poderá comprar tudo o que quiser.
Digo e não me preocupo com a maneira que irão interpretar. Sempre haverá pais melhores no mundo, bem como piores. O lance é deixar claro que cada um tem o seu, quando tem, e nenhum pai é perfeito ou igual.

Abraço do blogueiro Jefhcardoso

Leandro Lima disse...

Um dia entenderei isso.

Melinda Bauer disse...

Bah Carpi a travessia não fácil. Outro dia eu li um artigo do Contardo Caligaris falando justamente deste tema. É uma das fases mais difíceis e há coisas que são sublimadas nestes silêncios. Acabam por dar vazamento lá na vida "adulta". Ele recomendou o filme " Eu matei minha mãe"...que ainda não consegui assisti (porque Bigrivertowno não está no planeta)....
Um super abraço

Lilian disse...

Não estou pronta ainda... mas quem disse que a adolescência dos filhos espera?...
Affffff

Eliane Ratier disse...

Então né...

Margareth disse...

Filho é a promessa da infância, o desejo da juventude, a realização do adulto. É um pedaço de si, uma amostra da própria imagem, é uma escultura de mistério que a vida esculpe com o tempo, é um verdadeiro divertimento da relação cujas perspectivas de sucessos são as melhores possíveis. É Fabrício, as missões dos pais pedem paciência e muitas responsabilidades. Os pais só deixam de exercerem as suas funções quando não são mais reconhecidos e considerados como pais, assim valem para os filhos só deixam de serem filhos quando não são reconhecidos e considerados como tais. Nesses casos pais e filhos não são pra sempre, só enquanto durarem sentimentos, respeitos e considerações.
Margareth.