terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

SÓ SOBRE MINHA FOTO DE MORTO



Toda fotografia é um arrependimento, por isso tiramos tantas. Negociamos o descontentamento pela quantidade.

Sou obcecado pela pose, natural de quem é feio e procura se perdoar nos defeitos dos outros.

Uma de minhas pirações é remexer o baú de casa para definir qual é a imagem de morto de meus parentes. Existe uma foto de morto quando a pessoa ainda está viva. Representa a foto definitiva, que sairá no anúncio fúnebre ou na lápide. Depois de seu clique, a morte recusa liminar.

Será a nossa efígie, nosso símbolo alfa-numérico, nosso hieróglifo.

Che Guevara, por exemplo, morreu mesmo ao se deixar fotografar por Alberto Korda em 5 de março de 1960, em Havana. Aquele famoso retrato, Guerrilheiro Heroico, que estampa hoje desde camisetas até calcinhas, foi a emboscada fatal dos seus traços.

Já posso ter minha foto de finado. Analiso com cuidado os álbuns, examino as olheiras, levanto com paixão o véu dos rostos das páginas.

Minha escolha é feita a partir de três itens: caráter, estoicismo e determinação. Privilegio a cena que esteja encarando a máquina, como um toureiro ferido, antevendo o pior e não se acovardando. Os olhos firmemente abertos, porém com as pálpebras pesadas, numa imobilidade curiosa de ostra.

A antecipação demonstra o receio pela boa vontade dos familiares. Não me ajudam a procurar nenhuma comprovante de conta na gaveta, duvido que se prontifiquem a perseguir o melhor perfil e ângulo.

Mas estou em dúvida. Há critérios extra oficiais.

A foto também depende de como morri. Em caso de atropelamento, costuma ser a da identidade, a que estava no plástico sujo da carteira. Nada mais anônimo do que o fundo neutro e as sobrancelhas tristes de funcionário público.

Ao me perder em acidente de trânsito, é provável que se utilize a da carteira de motorista. Com afronta orgulhosa das pupilas, estrelas de espora. O homem parece um caubói ao ser aprovado no exame de habilitação.

Vítima de crime hediondo, a tradição é recorrer à chantagem da formatura. Para aumentar a injustiça: cara com futuro brilhante e desaparecido em algum matagal. Ou com a família numa praia, acentuando o contraste da felicidade passada com o ressentimento atual.

Se eu fosse uma celebridade, seria numa suruba flutuante, com a careta bêbada no iate, a língua para fora, retardado. Uma vingança invejosa ao sucesso. Raramente são aproveitados os flagrantes líricos da infância. A tentativa é sempre publicar a mais recente ou a mais acessível. E também porque ninguém entenderia o que aquela criança fazia dentro do rosto daquele barbudo.

O que não gostaria é que fosse aproveitada a foto do passaporte. É a mais chinelona de todas. É abominável. Atinei de estrear um quimono preto. O que atravessou minhas têmporas naquele dia para inaugurar uma roupa oriental com minha fisionomia de vendedor turco? Custava abrir uma exceção e vestir uma camisa polo, algo agradável, simpático, discreto, de almoço no sogro?

Desejava mostrar que era cosmopolita, multicultural, atento às tendências e saí vestido de bairro Liberdade. Eu mesmo me fichei. Quimono em mim é pijama. Não nasci para seda.

O rosto anguloso, o nariz adunco e a boca miúda têm ternura talibã. É acentuar a suspeita. Qualquer neto de italiano e descendente de árabe será indiciado com um quimono. Ou é um traveco ou um terrorista. Ou um traveco terrorista.

Como passarei pela revista da alfândega de Nova York? Que esperança, jamais conseguirei o visto da embaixada. Eu sou a arma química. Eu me explodi antes da hora.

Fico por aqui. Minha pária é a língua portuguesa.

Publicado no Pernambuco
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado
Recife (PE), fevereiro de 2011

13 comentários:

. disse...

Há muito tempo não lia nada tão delicioso.

Unknown disse...

Uma foto diz muito de quem somos. Um abraço.

Sil Villas-Boas disse...

.....Difícil
Entender tua foto
Parar de ler teus textos incríveis.
Não ficar xeretando os posts e curiosidades deste Blog.
E antes que me torne prolixa, despeço-me now.
Bjusssss
Sil

lídia martins disse...

Vim comentá-lo antes que a providência divina decida que sou a próxima da lista e me mande ao reino dos céus antes da hora. Causa- mortis? Ah sim, ataque cardíaco. Essa doença que tem acabado com a vida de todos os seres sensitivos.


Vamos de cá essa fotografia, deixe-me avaliar a aparência do defunto. O que temos aqui...Um sujeito de cavanhaque e olho roxo, cujo senso de humor é tão perverso a ponto de o espírito sair do próprio corpo? Admiro a coragem dos escritores. Este estado permanente de realidade faz com levantemos armas sem nem mesmo existirem alvos. A única certeza que carregamos é a morte e as nossas memórias ainda conseguem transformar o inevitável em algo pior do que já era. Há quem prefira acreditar que quando se consegue fazer piada com a própria desgraça é porque já estamos acima dela. A parte isso, não nos calaremos. Espero que possamos viver o bastante para contar tudo o que vimos. Estes textos provavelmente viverão mais do que você e acho que de algum modo tem o papel social de reivindicar uma saída para o inferno em que estamos presos. É de se compreender que sua pária seja a língua portuguesa. Flexível como é, ela nos permite antecipar o futuro de acordo com o que a realidade vai nos transformando, no caso dela, arrisco dizer que: limitando. Essa rainha das putas nunca deixará de rondar-nos. Enquanto ela existir vai colocar nossas desgraças num catálogo, e quando algum deficiente de imaginação for saboreá-lo, a depender do gênero que escreve, é por esse estandarte de que será lembrado. Nada pode ser pior do que ser esquecido. Frustrados ou envaidecidos. Que lembrem-se de nós. Porque enquanto existirem memórias, estaremos vivos.

Não que isso lhe interesse, mas, a foto do meu epitáfio seria a de um galã de sessão da tarde de cueca preta e de preferência com olhos vendados. No meu epitáfio eu deixaria a seguinte mensagem:

Aqui jaz uma romancista fracassada.

A TODOS AQUELES QUE CONSTRAÍRAM A DOENÇA DAS PALAVRAS, LEMBREM-SE SEMPRE: VIVER A VIDA AINDA É MELHOR QUE IMAGINÁ-LA.



Um abraço da Pipa.

Eliane Ratier disse...

Delícia de texto, vou correndo vasculhar os álbuns e só deixar vestígios em bons ângulos.

Jefferson Reis disse...

Tirar fotos é uma coisa tão boa e ao mesmo tempo criminosa. Como você disse, algumas nos matam antes mesmo de morrermos. Aquelas pequeninas, de carteira de identidade, são as que vieram para dizer que nada é perfeito nesse mundo. E tem também aquelas que capturam momentos lindos, quando estamos bêbados e felizes com amigos. Resultado? Um momento lindo e uma cara feia, boca torta, língua pra fora. Fiquei triste agora.

Yohana Sanfer disse...

Rs...sempre aprendo e me divirto lendo teus textos!Fabrício, um de meus poucos preferidos! :)

Dina disse...

Sobrancelhas tristes de funcionário público? Traveco terrorista? Quimono = pijama? Eu ri. Véu dos rostos das páginas, isso é muito bonito.

Maria Tereza disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Tereza disse...

A-do-ro seus textos! Até escuto sua voz os narrando. =)

Ana disse...

Mto bom! Delicioso!

Margareth disse...

Lágrimas de tristezas, horizontes de separações, poços de saudades, tuneis lembranças. Arrepios que provoca e espanca a pele, é o momento que não tem perdão, é o destino condenando a vida, é a vida abraçando o fim. Não gosto nem de lembrar esse assunto, é o tipo do assunto que deve ser o último em questão. Foto de morto, eu em, agora nem pensar, quando eu morrer sou defunto, eu que não vou escolher a minha, quem quiser que se vire, quando eu morrer, procure a melhor que represente minhas lembranças. Fabrício diante de tantos benefícios literários que você oferece à humanidade, a foto fúnebre é a menos que importa, pois ninguém se lembra de morto, morto, até porque fica a dúvida: O que o morto faz depois que encarou e perdeu para a morte? Provavelmente nada, vai saber. Seja qual for à escolhida para a ocasião servirá, na realidade você será lembrado como um verdadeiro furação literário, o monstro sagrado da cultura. Pois é Fabrício a morte não se deixa fotografar, acredito que é para não aumentar o desprezo que sentimos por ela. Com elegância um dia você partirá (assim como todos os viventes), mas, a sua lembrança sempre marcará presença no universo literário e nos corações dos leitores. Fabrício longe muito longe esteja o seu dia, pois ainda há muito que fazer no mundo dos saberes. Vamos lá Fabrício, estás vivo, bulindo da silva e Braga, ao trabalho professor, queremos aprender mais e mais. Ninguém merece afagar a morte antes do tempo e nem ela merece esse dengo todo. Sabe qual é a foto do morto? É a sua melhor lembrança.
Margareth.

Pedro disse...

Genial, hilario, bravissimo!!