quarta-feira, 15 de agosto de 2012

DECLARAÇÃO DE BEM


Arte de Cínthya Verri

Nasci para arruinar surpresas.

Bato a língua com os dentes. Acabo revelando ao aniversariante festa armada secretamente, entrego paixões platônicas dos amigos.

Deus nunca me confiaria os segredos de Fátima porque transformaria em fofocas de Fátima.

Sou um estraga-prazer declarado.

Com minha mulher, conto quando compro vestido, sapatos, lembranças para ela. Descrevo os objetos do interior da loja. Não crio suspense nas viagens, já aviso o que ela receberá.

Ela fica feliz igual. Ou finge que fica feliz igual.

Criar expectativa é apenas aumentar a responsabilidade do presenteado. Ele tem que suspirar de qualquer jeito. Amar incondicionalmente. Explodir em abraços e falar frases definitivas como “eu precisava tanto”, “ninguém me conhece tanto quanto você”, “vou colocar no Instagram agora”.

Na hipótese dela trocar o produto, é fracasso de sua parte e decepção do lado dela. Você não adivinhou o que ela desejava e ela não teve a generosidade de mentir.

Não faço mais surpresas, desde quando vi minha irmã se desfazer de sua coleção de papel de carta para seu namorado.

Durante seis anos, Carla guardou 150 papéis e envelopes de moranguinho, pesseguinho, maçãzinha, uma salada de frutas completa, um pomar de flores gigantesco no seu quarto. Havia uma papelaria invejável, com gramaturas diversas, cores muitas e cheiros de xampu e chiclete para abençoar as gavetas.



Ela perseguia novos produtos nas bancas e livrarias, era mais obcecada em atualizar seu catálogo do que eu e a minha filatelia.

Ao completar um mês de namoro com Fábio, seu colega da oitava série, ela pôs um ponto final na sua adoração. Deitou a cabeça na escrivaninha branca e escreveu uma correspondência inteira usando suas cartas. Todas as suas cartas.

Redigiu a mão um livro de 150 páginas com suas peças raras e cheias de detalhes, salpicadas de Snoopy, Hello Kitty e Ursinhos Carinhosos.

Entregou o maço ao seu amado num ato de coragem e sacrifício: “Toda Minha Infância Para Você Amor de Minha Vida”.

Fábio confessou que somente olhou cinco páginas e dormiu.

— Não posso com sua expectativa. Tem um livro aqui, eu não leio nem bula de remédio! Melhor acabar agora antes que queira se casar comigo.

E terminou o relacionamento. Sem mais nem menos.

Carla chorou dois dias seguidos. Tomou banho com suas lágrimas. Lavou a louça com suas lágrimas.

Procurei acalmá-la. Passei minha coleção de selos pelo vão da porta, com um bilhete:

“Perdemos as cartas, mas temos ainda os selos.”







Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

6 comentários:

Uma menina com uma flor disse...

Surpresas sempre têm o lado B, mas rendem boas histórias e muitas risadas depois do susto!
Ainda guardo minha coleção de papéis de carta, antes tivesse feito como sua irmã, que teve uma idéia sensacional, ainda que tenha dado com os burros n'água... Inspirador e educativo, amei!!!

Flores da Vergonha disse...

"Perdemos as cartas, mas ainda temos os selos."

Adalgisa Nery disse...

Você escreve maravilhosamente bem.
Suas palavras brotam com naturalidade.
Encanta-me a maneira suave que escreve, a leveza das expressões.
Algum dia ainda descobrirá que nasceu para poetar. :)

A Viajante disse...

Eu sou igualzinha, Carpinejar. Meus amigos reclamam, mas penso que no fundo adoram. Torço.

Anônimo disse...

Que triste o caso da sua irmã.

vervedirlass disse...

_O bom de ler 'tuas histórias' é que, eu impregno e de acordo, rio, choro ou fico com cara de "paisagem" [como agora, lembrando da coleção da minha filha]. Deve ser isso que acontece com quem lê tuas Crônicas, também.
_Abraço!