Uma infância feliz me dá mais ciúme que uma carreira gloriosa.
Se alguém é famoso, exitoso e contente na vida adulta não produz nem cócegas em meu espírito.
Empresários, jogadores de futebol, artistas, com fortuna e estabilidade, passeando de Fernando de Noronha a Paris em uma semana, não mexem com os meus sentimentos.
Mas a cobiça surge quando um amigo ou familiar me confessa que foi feliz quando criança. É extremamente raro. É hercúleo o contentamento genuíno e o cuidado na primeira década de nossa história, sem bullying, sem atritos de convivência, sem dificuldades de adaptação, com o apoio dos pais. É uma loteria incomparável.
Minha mãe pulou do nascimento ao paraíso, surgiu direto num éden no interior gaúcho. Será errado invejá-la?
Quando conta o seu passado de menina de vestido de chita e pés descalços, de menina e corda de pular, de menina e tranças, estou ouvindo contos de fadas. Ela não tinha nenhuma piscina em sua casa, mas tinha o rio Taquari só para si, para nadar e jogar pedrinhas. Ela não dispunha de um quintal, mas um pomar inteiro, com casinha na árvore e circo dos galhos para ser trapezista. A um passo dos morros verdes, abria trilhas com canivete e inventava saídas para a sua solidão. Dispensava a exclusividade dos bichos, todos eram de todos. Brincava com os cachorros de rua, pegava emprestado os cavalos dos colonos, levava pássaros nos dedos.
Ela morou num hotel em Guaporé, propriedade dos meus avós. Imagine a alegria de dormir em quartos diferentes, só para experimentar? Não sofreu com problema de espaço com irmãos, nem dividiu o beliche, o guarda-roupa com ninguém. Conheceu pessoas dos mais diferentes sotaques, das mais longínquas regiões e tipos, nem precisava de passaporte, o mundo vinha visitá-la. A comida estava sempre quente na cozinha, a qualquer hora, já que não parava de receber gente. Havia café da manhã com leite tirado de vaca e queijo fresco. Ganhava, para colorir, os livros de registros dos hóspedes. Desde cedo, acostumou-se com molho de chaves de um castelo, podendo abrir portas e atravessar paredes. Houve tempo de sobra para sonhar e imaginar o futuro e me imaginar e imaginar os seus netos e a sua poesia.
Mariazinha foi tão feliz, que até hoje é amiga de Nayr e Marília, colegas do seu primeiro colégio, Scalabrini. Ainda por cima tem testemunhas.
Publicado em Jornal ZH em 13/02/2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário