sexta-feira, 1 de março de 2019

A MESA SOBRENATURAL DOS MEUS AVÓS

Na mesa de sala da avó havia gavetas. Só descobrimos quando ela começou a feder.

Não reparávamos porque a toalha na hora de almoçar e jantar cobria os seus segredos.

Mas, um dia, durante as nossas férias, o vô tratou de investigar o que estava acontecendo. Passávamos o janeiro inteiro com os pais da mãe em Guaporé: eu e os três irmãos. Acredito que seja a época em que os pais ficavam sozinhos para namorar em Porto Alegre. Ou para discutir sem que aumentássemos o som da televisão para não ouvirmos os gritos. Nunca tínhamos certeza se o barulho do quarto deles era de amor ou de briga.

A avó brincava que existia um gambá morto no assoalho, suspeita descartada em longa varredura.

O cheiro impedia a recepção de visitas. Não se tratava de odor de madeira podre ou de fungos. Vinha um azedume que dificultava a permanência no espaço.

A mesa acabou mandada a um marceneiro, que decifrou o mistério da minha infância e da guerra suja no momento de comer.

Os irmãos, para ganhar a disputa comigo pelas polentas, frangos, bifes com queijo na chapa e bolinhos de chuva deliciosos da avó, escondiam a comida nas pequenas gavetas. O que explicava o sumiço meteórico da refeição das bandejas. Em 10 minutos, não havia mais nada. Eu não me servia de novo e perdia o campeonato de quem comia mais. Sempre padecia com o último lugar do pódio.

Eles debochavam da minha lentidão  e tampouco digeria mentalmente como conseguiam tamanha rapidez com os dentes.

Eu pedia para que eles abrissem a boca para conferir se não estavam me trapaceando e não enxergava coisa alguma.

As gavetas se transformaram em geladeiras de crianças, em um frigobar sem tomada. Eles se empanturravam com o que podiam e guardavam mantimentos para depois.

Aproveitavam o guardanapo de pano no colo para disfarçar os furtos. Assim que ninguém olhava, abriam os esconderijos. Às vezes esqueciam lá as porções roubadas, que formavam, com o tempo, lixo orgânico irreconhecível.

Não alimento raiva de meus irmãos, não há como qualificar a ocorrência como trauma, não é assunto espinhoso de terapia. Restou admiração. Estranhamente, um sorriso de admiração. Às vezes, me pego rindo sozinho da lembrança. Eu apenas concluo que eles foram geniais: uma sacanagem de primeira grandeza. Como não pensei nisso antes?

Publicado em Jornal Zero Hora em 28/3/2018

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