sexta-feira, 1 de março de 2019

O VENDEDOR DE PARAÍSOS

Sempre sábado à tarde, em minha infância, alguém batia palmas na frente do portão. Não havia campainha, quiçá interfone.

Ele se esgoelava gritando para vencer os latidos e aplaudia fervorosamente o infinito das janelas, como quem pede bis a um artista.

E já sabíamos quem era: o incansável vendedor de enciclopédias. Por mais que recusássemos, ele voltava para alcançar as suas metas. Não aceitava recusa. Antes do nosso “não” definitivo deixava o folheto colorido e dizia para os pais pensarem no assunto com calma.

Nos anos 70, sem Google e sem internet, sem celular e sem redes sociais, reinava o conhecimento escrito. Ter uma enciclopédia significava a salvação do ensino para as crianças, a retaguarda dos trabalhos escolares e pesquisas para apresentações em grupo. Lá encontravam-se as grandes invenções da humanidade, a história das civilizações, a anatomia do corpo explicada por plásticos sobrepostos, os maiores cientistas e personalidades. Impossível de se ler inteira, com 20 volumes e mais de 11 mil páginas, atendia somente a consultas pontuais. A vastidão impressionava os possíveis clientes - comprava-se cadeiras no céu da sabedoria.

Além de ser vista como investimento, produzia glamour e inveja. Quem conseguia adquirir esnobava as visitas: colocava na estante da sala, atrás do sofá, com os livros alinhados e em sequência numéricas dos tomos. Aparentava uma biblioteca cenográfica de novela, nada fora do lugar.
No mundo sexista do período, mulheres vendiam cosméticos de casa em casa, em especial a partir de revistas da Avon, e homens circulavam com edições da Barsa ou da Britannica Mirador debaixo dos braços  - a Britannica custava o dobro, pomposa, maior e de capa marrom, reservada a classe média alta. Quem adquiria Britannica, invariavelmente, tinha piscina, a relação fazia sentido.

O vendedor seguia uma carreira séria, surgia de terno e gravata, cabelo engomado, sapatos engraxados e falava difícil de propósito, para justificar o pacote promocional da sapiência. Lembrava um outro idioma, só mesmo com dicionário ao lado para entendê-lo.

A assinatura de enciclopédia costumava ser celebrada com comemoração pelas famílias, partilhando do status de batizado e casamento. Não se pagava à vista, mas em parcelas a perder de vista, como se fosse um carro ou um imóvel, em uma porção de cheques pré-datados atravessando a penúria de décadas.

Quando meus pais compraram o produto, deram tapinhas em minhas costas:

- Agora tem tudo nas mãos para ser alguém na vida!

Publicado em Jornal ZH em 20/02/2018

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