sexta-feira, 16 de julho de 2010

A PIOR INVENÇÃO DA HUMANIDADE

Arte de Magritte

Eu tenho pouca compaixão, vejo que é uma emoção ruim, mesquinha, em que a gente sempre se sente melhor do que o outro. Não que me falte mesquinharias, mas não é o caso. Eu sou superior a raríssimas coisas. Uma delas é capinha de guarda-chuva.

Enxerguei a capa no estacionamento da universidade. Assemelhava-se a um estojo, o que mobilizou o arpão dos dedos.

Para agachar na minha idade, a curiosidade deve pagar o sacrifício. Não sobreviveria aos tempos da monarquia, onde toda vez em que o rei passava havia a obrigação de beijar o chão. Eu seria guilhotinado devido às câimbras.

Voltando a capa. O objeto atiçou a gula. Poderia conter lápis, canetas coloridas, apontador, borracha, uma escola inteira no pano. Já dividiria com os meus filhos e levaria uma lembrança para rechear as gavetas do escritório. Mas fui levantar, notei o que se tratava e repeli de volta, sinceramente frustrado. Disse que nojo, acentuando a agressividade da decepção, como se encontrasse um preservativo usado. Fui enganado, uma capinha! Ninguém no mundo irá levantar aquela capinha, a não ser que confunda como eu.

Não duvido que esteja repousando entre as vagas dos carros há um mês. Sequer um arqueólogo, daqui a dois mil anos, achará valor neste pertence. Largará os pincéis, concluindo que não recompensa o trabalho de escovação.

Depois da cerveja sem álcool, a pior invenção da humanidade é a capinha do guarda-chuva. Aposto que o energúmeno autor da façanha nem patenteou sua criação. É a mais ridícula. Uma embalagem canhestra. De natureza descartável para cobrir algo que já é descartável. Por que proteger justo aquilo que mais se perde na vida? Será que é para fingir que não esqueceremos o guarda-chuva no ônibus quando para de chover? Ficaremos mais nobres? Ou será que confiamos que a classe média e baixa está separada pelo adereço? Será um brasão de camelô?

Não é prática tampouco. Assim que se usa a primeira vez, some sua serventia. Não há como enfiar o volume do pano e as varetas de volta para a escuridão do útero. É mais uma esperança do que uma realização. Não conheço um vivente que tenha conseguido. A cabeleira estará espetada, o cabo torto, pior do que enrolar headphone num bolo coeso e diminuto como o que saiu da loja. Não experimente, será um esforço em vão. Tão complicado quanto restaurar o hímen, o cabaço.

Mas a capinha é manhosa, não resistiria se não contasse com poderes especiais. Não representa um produto de fácil eliminação. Desperta a compaixão: não gostamos dela, porém não gostamos de nos desfazer dela. Traz um egoísmo, uma culpa educada. É como chiclete, acabou o sabor, não pretendemos sujar a rua e soar como porco e forjamos sua queda involuntária. Talvez manter a capinha seja preservar a ilusão de que o guarda-chuva é novo.

É a mesma angústia daquele que não se desvencilha do papel-presente porque acha bonito. No fim do ano, vai acumular uma papelaria no armário, faltando aniversário e amigos que atendam ao farto mostruário de estampas. Não tem sentido: quem guarda os papéis de embrulho é avarento e não costuma dar presentes com regularidade.

A capinha é a prova de que somos viciados na inutilidade, o que aumenta consideravelmente minha chance de ser feliz.

31 comentários:

Diva disse...

Cara, você acertou em cheio. Agora eu descobri a razão pelo que me aconteceu ontem. No correio, me deparei com uma destas capinhas. Quis ser gentil e pegá-la já procurando o provável dono. Mas me denunciei. Ao pegá-la, inconsciente o fiz com as últimas pontinhas dos dedos. Dei a maior bandeira, mas agora achei a explicação. Muito obrigado. @valdirjoaquim

Antonio César disse...

Acredita que este texto me fez lembrar de coisas da vida que estavam guardadas num lugar obscuro de minha cabeça?

Anônimo disse...

Fiquei muito curioso em saber quais as razões que o levam a acreditar ser a cerveja sem álcool, a pior invençao da humanidade.
Para mim, ela é uma das grandes invenções, pois me trouxe de volta o prazer de beber cerveja, já que a com ácool para mim tornou-se proibida.

Carlos Mascarenhas - Ilhéus-Ba.

Maiby Martins disse...

como assim, acessório inútil? ninguém consegue recolocar ali? eu consigo! e nem é preciso malabarismos! é preciso paciência, perfeccionismo e dedicação. só!
desculpe-me. sou virgiana e todas as coisas têm que estar em seu lugar, devidamente organizadas!
eu, heim?!

Leandro Lima disse...

Fabrício e seus detalhes mágicos... Sempre paro para perceber depois.

Abraço.

Anônimo disse...

Agachar para pegar uma capinha é triste.

Humilhação pior que agachar para pegar sabonete em banheiro de prisão, porque totalmente inútil (na prisão, sempre haverá utilidade para alguém).

Se já me agachei para uma ou outra coisa?

Sou "inagachável"! E tenho dito (veja só o dedo em riste).

*aquele ex-ministro vai se contorcer de inveja agora

Paulinha disse...

Ai,meu Deus...eu gosto tanto de vc!! :)

Beijos e sucesso SEMPRE!!!

Pérola Anjos disse...

Inutilidades também fertilizam a mente.
Ai meus sais!
Boa, Fabrício!

Maria Tereza disse...

Discordo! rsrs... Eu sempre consigo enrolar o guarda-chuva como se nunca tivesse sido aberto e o guardo na respectiva capinha! Tcharam! =)

Batom e poesias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana SSK disse...

Fico com a consciência pesada de jogar a capinha fora.
Então, primeiro preciso perder o guarda-chuva, para depois me desfazer de sua capa.
Deve ser por isso que perco os guarda-chuvas...para poder me livrar de suas capinhas!
Talvez façamos outras coisas na vida com essa mesma metáfora!
:)

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Adorei o texto! mas pelo menos 1 coisinha a favor da capinha rs... em dias de chuva ela ajudaRIA caso não fosse necessário tanto tempo e paciência pra recolocar o guarda-chuva ... epa! realmente, nao tem nada a favor... q coisa rsrs

bjs!!!

Ramiro Conceição disse...

"Para agachar na minha idade, a curiosidade deve pagar o sacrifício. Não sobreviveria aos tempos da monarquia, onde toda vez em que o rei passava havia a obrigação de beijar o chão. Eu seria guilhotinado devido às câimbras."

É, caro Fabro, estou com esses problemas,
mas é com os meus cabelos...


DOIDIM
by Ramiro Conceição


Preciso de cortar o cabelo.
Não consigo ir ao barbeiro!
Não é a distância.
Não é o dinheiro.
Sou – eu!
Louquim, louquim:
um caju, sem cajueiro;
um fogo, sem braseiro.

Meu Deus
- cresceu a barba branca;
o branco cabelo cresceu-,
por favor, me diz como se faz:
estou a aparecer - Karl Marx!

Já são três dias - de luta,
de intriga, briga e labuta.
Corta. Não corta.
Corta. Não corta.
Catralhos me mordam!
Ai de mim, fiquei doidim!

Só resta-me um grito de fé
debaixo do meu bigode:
“Cadê a corte de Herodes
com a bela Salomé?”

Porque de profeta e de louco
todo o poeta tem um pouco.

Ludmila disse...

Não suporto guarda-chuvas...quanto mais suas capas!
Moro no país das inutilidades (EUA), aqui vc encontra capinhas para tudo que vc possa imaginar e o inimaginável tb!
Odeio capinhas! Odeio guardar coisas. Elas precisam estar à mão e não guardadas em capinhas!

Elisabete Cunha disse...

Carpinejar, eu simplesmente sou sua fã!!
Dar um tempo - foi a leitura que mais foi útil de ler depois de minha separsção.
Foi tipo merthiolate, curou feridas!
obrigada!

Anônimo disse...

Um ataque de riso no meio da tarde, um ataque de riso na livraria.

Ramiro Conceição disse...

ATAQUE
by Todos Nós

Um ataque
de riso
no meio da tarde,
um ataque
de riso
na livraria.
Ah, caro amigo,
imagine
como seria
se quem não está
estivesse…
Que alegria!

Carolina Tessmann disse...

É, capinha não serve pra nada mesmo! Só pra ser perdida, antes do guarda-chuva é claro.
Muito bom o blog, seguirei acompanhando!

Ribeiro Pedreira disse...

pior que se enganar com uma capinha é sentir gosto de cabo de guarda-chuvas em dias de ressaca.

Anônimo disse...

Ou Carpinejar... compaixão é muiiito legal. Não é sentir-se superior ao outro, isso chama-se piedade. Compaixão é outra dó, a que sentimos por repartirmos com o outro a sua dor. Quem sente compaixão comunga, fica unido e partícipe da vida do outro. "Co-sentimento", como afirmou Milan Kundera. Quem tem piedade não compartilha de nenhum sentimento, apenas imagina que algo que o outro vive seria horrível para ele, o outro pode ou não estar sofrendo, mas isso não interessa. Pela compaixão isso é impossível porque o que é sentido absorvemos do que o outro sente. Fica menos pesado para um, mais generoso para outro. É um dos sentimentos mais bonitos... o que ampara, e dá sentido. ;)

Tiago M. disse...

Tudo bem que estamos tratando de capinhas, mas quem me chama atenção é o chiclete. Já parou pra observar realmente as ruas e calçadas de alguns lugares muito movimentados? Estão cheios dessa goma já mascada. As passarelas também, são outro ótimo ponto de observação. Pode olhar o chão com atenção, você não vai se arrepender: uma miríade de gomas já mascadas e pisadas. Ontem coloridas, hoje acinzentadas pela ação do tempo, e das solas de sapato.

Outro dia pensei: e se parássemos realmente pra avaliar o tamanho do impacto, a quantidade de chicletes jogados todos os dias, não chegaríamos a brilhante conclusão de que estamos pisando não no chão, que é de cimento e asfalto, mas numa imensa goma de mascar que sempre gruda no nosso pé?

*

Tive a honra de conhecer seu trabalho há mais ou menos cinco anos atrás, através de O Amor Esquece de Começar. Recebi esse livro de uma velha amiga, que você provavelmente conheça: Letícia Torres, daqui de Natal, onde moro.

Fiquei muito feliz de encontrar beleza na feminilidade de sua escrita e, em especial, sua linguagem e jeito espontâneo de expressar o natural. Assim que venho vez ou outra encontrando influência em sua literatura.

Tive também a felicidade, hoje, de encontrar uma entrevista, no seu blog antigo. O que me admirou, e me felicitou de verdade, foi ver que você está bastante na frente no exercício da poética, dando-se cada vez mais espaço para deixá-la fluir através de você.

Me interessei particularmente por essa parte do texto: "A mais surpreendente literatura vem quando não esperamos literatura. Brinco de esconde-esconde poético em diferentes suportes. Minha paixão é dar susto. Nasci feio, já tenho pós-graduação em assombros. Onde ninguém me espera, lá estarei com meu lirismo."

Também compartilho bastante dessa alegria de se tornar versátil, e permitir que as idéias surjam dentro dos contextos mais óbvios, como um twitter, onde estamos a todo momento exercendo a arte do expressar, do comunicar.

Fico feliz de ver que você está vendo isso também. Também sou um típico poeta-pra-toda-ocasião, encontrando nessa oportunidade da conversa, a matéria-prima necessária para produzir meus experimentos.

Sinceramente agradecido.

Emanuel Neuhaus disse...

Eu consigo repor o guarda-chuva dentro da capinha! Geralmente a uso enquanto considero que o guarda-chuva seja novo. Como se fosse um status entre os guarda-chuvas da casa. Mas depois que perco o saco e a consideração pelo guarda-chuva, jogo sua capinha no lixo, como se eu rebaixasse um soldado ao retirar suas medalhas. No fim das contas, ele é apenas mais um socado no balde, sem honras...sem capinha.

Augusto Dias disse...

Realmente fora de serie você!
Coerente e divertido seu texto.
Costumo dizer que se lemos algo até o fim, sem pensar em mais nada além do texto, é porque o talento de quem escreve nos enfeitiçou.
Um abraço!!!

Ramiro Conceição disse...

Por isso
que os poetas
retiram ciscos...


CISCO
by Ramiro Conceição


Aquilo que se aprende
de pequeno - é grande.
Por isso que retirar um cisco
do olho do outro por outrem
é uma delicadeza – d’ontem.

Jeferson Cardoso disse...

Quanto à capinha de guarda chuvas eu jamais tive uma. Fui criado em uma família econômica, onde um guarda chuva de armação robusta e tecido preto espesso, acompanhou-me em todas as chuvas da adolescência até a faculdade, sendo então herdado por minhas irmãs.
Devo admitir que hoje noto o quanto se tornaram descartáveis e acessíveis estes objetos. Quando percebi que em minha casa, a cada verão tínhamos que comprar um novo guarda chuva, temi pelo excesso de desapego dos meus aos objetos outrora valiosos e dignos de todo o zelo.

Abraço do Jefhcardoso do http://jefhcardoso.blogspot.com

Ana Carolina disse...

sempre perdi todas as minhas capinhas de guarda chuva.não sei exatamente sequer pra que servem se o guarda chuva só tem utilidade se for aberto.

Anônimo disse...

eu adoro meu guarda chuva porque ele é de bolinhas e a capinha dele, que está guaradada na primeira gaveta da minha comoda, também é de bolinhas. Para que serve não sei. mas eu guardei.

Adorei a foto que você colocou aí nos comparsas... não tinha visto ainda... estive com gripe

Bjinho

Unknown disse...

Talvez o problema da compaixão, seja um problema da língua.. por exemplo, compaixão em alemão é mitgefühl, o que em tradução livre quer dizer "sentir junto" ..

Verônica Wavrzeniack disse...

Acho muito útil a capinha do guarda chuva, pois quando preciso entrar em um lugar ou guardar o guarda chuva molhado (sombrinha) na bolsa a capinha não deixa que o mesmo molhe o lugar onde vou ou meus perteces!

Adriane Medeiros disse...

Ah as capinhas, eu as adoro, porque sendo desastrada como sou, não teria chance de não ser o centro das atenções quando o guarda-chuvapinga toda a agua do mundo, justo por isso me especializei em enrolar o guarda chuva, de modo a encontrar abrigo de volta no utero, e contrariando a sua repulsa eu já peguei capinhas por ai, o meu guarda-chuva precisa de uma pra eu ser feliz