quarta-feira, 7 de julho de 2010

DUPLO SENTIDO

Arte de Cínthya Verri


A sensualidade é a infância da vida adulta. Ou alguém ainda duvida que sexo é brincadeira?

Uma palavra certa e a vontade não larga mais o pensamento. Quando a namorada sugere que é lasciva, eu não me contenho, junto imediatamente as pernas e fecho o tórax. Lasciva é uma palavra muito rápida, entra direto no sangue. Derrubo minhas defesas também diante de “assanhada” e “safada”. Um amigo não pode escutar lúbrica que abandona sua carreira.

A audição se desespera com a realidade paralela dos vocábulos. Sou da turma do sexo falado. Não me permito pecar quieto. Saio para pescar na conversa.

Gemer em silêncio somente na masturbação, tampouco partilho da crença da música ao fundo. Reivindico a gritaria, as frases doidas, o acinte animal. O ritmo vem unicamente da respiração e da falta dela.

É um efeito colateral da minha geração. O carro foi o primeiro quarto, o sofá foi o primeiro hotel. Não encontrava tanto conforto para transar, necessitava arretar semanas e convencer a menina que valeria a pena, que só seria um pouquinho, que deixasse entrar. Aproveitava a saída dos pais para explorar a solidão lisa do seu corpo. Era um suspense, uma vertigem. Qualquer ruído na porta modificava o embalo da cintura. Procurava me manter perto das almofadas. Desde a adolescência, fui preparado para o flagrante. Cresci sob a pressão da maçaneta.

Sexo não acontecia com tranquilidade, despir dependia do pôquer da dicção. Falava algo bonito para retirar o sutiã dela, falava algo perigoso para arrancar a calça, amor eterno somente com a calcinha, e ainda existiam frequentes recuos de pudor. Muitas vezes, ela terminava mais vestida do que quando a gente começava. Nem sempre dava certo. Uma frase oportunista e indiferente puxava o freio de mão. Ela deveria entender que eu amava, que não me aproveitava de sua ingenuidade, que permaneceríamos juntos. Sexo exigia convencimento, persuasão erótica, promessas de Lagoa Azul.

Brincar com o duplo sentido continua um jogo favorito. Enrijeço na disputa de insinuações. É dizer e não dizer, é despertar o lençol na toalha de mesa, é atiçar a curiosidade dos dentes com a língua, pesar a pálpebra para espiar o vão da voz.

Tenho uma elasticidade incomum para formar dimensões alternativas. Não me contento com nada direto, tipo uma mulher confessando que vai beber todo o chantilly do café. Isso é pornografia. Viajo além. Se ela comenta que procura um mouse retrátil, fico louco. Retrátil? Eu me ponho em movimento. Já quero ser retrátil.

O Aurélio é meu Kama Sutra.



Crônica publicada no site Vida Breve

17 comentários:

O Neto do Herculano disse...

Insinuações e duplos sentidos é que dão o charme à conquista. Tudo que é muito fácil, evidente, não contamina. No máximo dura a eternidade de uma noite, ou duas.

Paula disse...

Adoro teus textos e esse, nooossa, achei ótimo, pois inevitavelmente acabo caindo nas lascivas palavras de duplo sentido, malícias inesperadas. Me identifiquei demais com essa crônica. Me vi ali, descrita em "reivindico a gritaria, as frases doidas...". Amei o texto. Parabéns!!

Unknown disse...

Tem coisa melhor do que saber usar a palavra? Pode ser falada, pode ser escrita.
Pode ser prosa ou verso.
E mais, o exercício leva à perfeição.
Abraços,
Cláudia

Trolladora disse...

Excelente texto como sempre!!!

beijos

Dira disse...

Sou devota de Barthes. Daí que a palavra é sempre quem me acaricia a pele e me faz amar. sem ela... nem as melhores performances me fazer perder a cabeça.

www.diravieira.zip.net

Dira disse...

*me fazem.

Alana Ávila disse...

Muito bom como sempre.
"O Aurélio é meu Kama Sutra."

Perfeito *-*

T haís. disse...

Uoooww! Belo e perturbante, tuas palavras chegam à mim como um choque!
E tudo que é belo e perturbante, à mim, se torna instigante.
Ótimo texto (:!

Mileny disse...

Adorei a parte do retrátil...rs
Adorei!



Mileny

Francisco de Sousa Vieira Filho disse...

É no falar táctil, palpável, que se sonha... ;)

Márcia Luz disse...

Safado! (rs)

Lembrei direitinho das palavras que tentavam ludibriar minha ingenuidade. (+ rs)

Grande verdade esta: Sensualidade e erotismo me excitam; pornografia, não.

Carola disse...

Hahahaha! Ahhhh a insinuação... o que seria da vida sem ela, sem o duplo sentido!!?! Adoro!

Cândida Veloso disse...

Depois de ficar até as 4 da matina assistindo, pela enésima vez, a "Proposta Indecente", e ainda sob o efeito romântico/erótico que o filme me causa, deparo-me com esse seu belo texto. Obrigada por me manter no clima! :)

lídia martins disse...

Hum...

O poder da inteligência.
Ele atrai todos os demais...

Vc é um Sedutor.

Na Minha disse...

Surpreendente!

Rafaelle disse...

Nossa, essa fonte não pára de jorrar idéias inquietantes!

(duplo sentido?)

Ariana Magalhães disse...

vc dá curso para homens se comportatem como homens, c.? pois deveria! as mulheres pagariam por isso, eu pagaria para meus paqueras, amigos, ex-namorados, só pra ver algum deles abrir o aurélio e buscar a palavra "sensação".
texto ótimo!