sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

MÃEZINHA

Arte de Pierre Bonnard

Minha mãe quebrou um pote de vidro de biscoito. Daqueles imensos, neto dos baleiros coloridos do armazém, com um aterro de farelos ao fundo que contentaria um cardume.

Eu não como biscoito. Não pego biscoito. Não sei qual o gosto do biscoito, se era de polvilho ou de maizena. Estava a dezenas de quilômetros do tropeço doméstico, tenho 38 anos, minha barba cresce grisalha.

Tanto faz, a mãe encontrou um jeito de me incriminar:

- Quebrou porque alguém não fechou direito!

Mesmo distanciada de mim, mesmo em área rural, aliviou sua responsabilidade e insinuou a molecagem. Teria sido eu quando a visitei em data incerta e hora misteriosa. Não adianta rebater:

- Pô, não tem sentido.

Não há justiça para mãe. Quando o filho é generoso, ela sempre dirá que é culpado. Se ele é criminoso confesso e presidiário veterano, dirá que é inocente. Não é que o filho faz o contrário do que a mãe pede, a mãe fala o contrário do que o filho faz.

Em sua concepção, ela não quebrou o pote, alguém alterou sua rotina impecável. Eu teimei em mexer nos seus mequetrefes altamente vedados e organizados por tamanho, cor e limpeza. Baguncei o santuário, cismei em entrar na cozinha.

Ela não tem prova, tampouco precisa, sobra imaginação na memória. Qualquer acidente é descuido de terceiros.

Caso realmente tivesse espatifado o pote, o resultado não seria diferente, anteciparia que sou distraído e mantenho a triste mania de segurar as coisas pela tampa.

- é claro que ela derrubou o pote porque segurou pela tampa mal fechada por ela mesma e não colocou em prática o que costumava me repetir -

Mas mãe não aconselha, manda. Sua isenção é uma façanha. É assim desde a infância. A maionese desandou nunca por sua distração, eu é que fiquei conversando. O gás acabava nunca pelo seu uso, é que suas crianças exageravam no banho.

Crueldade materna é conversar com o filho como se ele não existisse. É o emprego da terceira pessoa. Assombração da terceira pessoa. Um recurso mais eloqüente do que o sujeito indeterminado.

- Quem foi que comeu o bolo? Quem foi que sujou o sofá? Quem foi que não lavou a louça?

É tudo de modo indireto, oblíquo, como se você fosse um outro a delatar que foi você.

Eu pedia desculpa para minha mãe antes que ela terminasse de cobrar. Por hábito. Por medo. Talvez por preguiça. Por saber que ela vai criar o inferno até encontrar um bode, um cabrito, uma vaca, um cavalo expiatório. Não suportava sua investigação incansável pelo celeiro dos quartos.

Em toda família, há uma cobaia esperando a lista de chamada. Costuma ser o caçula, fui eu.

Minha mãe não entrou em terapia, não entende o que é terapia, ainda é do tempo do Serviço de Orientação Educacional.

Teve que criar, sozinha, os quatro filhos. O que significa que nada será mais grave do que isso - desnecessário contar sua versão dos fatos.

No momento em que é desmentida, põe o remedinho cardíaco debaixo da língua. Não dá para continuar, já estou abanando o jornal novamente arrependido.

Nem cumprimento a mãe com oi ou olá, já chego em sua casa com "desculpa, tudo bem?".




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 207
Fevereiro de 2011

16 comentários:

O Neto do Herculano disse...

"Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não se apaga
quando sopra o vento(...)".

Unknown disse...

Muitoooooooooo bom! Vou, com certeza, mostrar para a minha mãe! Todos se deparam, em algum momento da vida, com uma situação semelhante a essa! Mãe é mãe!

Jefferson Reis disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jefferson Reis disse...

Poxa, nem sei o que pensar. Não é um texto que fala bem da mãe, tampouco fala mal. Uma fotografia, apenas. Mas as fotografias dizem tanto. As vezes o real é o que nos cansa. Outras vezes essa coisa de personalidade alheia nos perturba. "Ah mas ela é sempre assim, desconfiada mesmo, esse é o jeito dela, da mãe", mas e o filho? Ele não tem direito de quebrar o pote? Se ele não quebrar quem fará? Se ele não quebrar o vidro da vizinha com a bola quem fará? Para que serve o vidro e o pote? Tudo não tem que ter um fim, oras? Mas mães não entendem e os filhos não entendem as mães. Só que as mães querem que os filhos entendam e como são mães os filhos fingem entender. E um ama tanto o outro. Coisa boba.

Lu de PoA disse...

Ah, meu amigo, as coisas já não são assim. Essa maneira de agir e pensar pertence a nossa geração e já não é mais assim que as coisas acontecem. Chego a te dizer que hoje criamos pequenos monstros. Se o pote quebra e culpamos nossos filhos, eles com certeza terão algum argumento para nos convencer do contrário e até nos farão pensar que se continuarmos a acusá-los ficarão traumatizados pelo resto da vida e estaremos condenados ao sentimento de culpa por termos acusado sem provas. Investimos em nossos filhos, para que eles sejam muito melhor do que nós, mas isto por vezes nos torna reféns daqueles que amamos.A minha mãe, assim como a tua, nunca soube o que era este sentimento, porque sabia que sempre tinha razão e tudo que fazia era para o nosso bem. Nós, super-informados, leitores assíduos de psicologia infantil, nunca temos certeza de nada e morremos de medo de acusar o filho por ter feito algo errado. "Vai que traumatiza???"

Unknown disse...

Que meu filho não leia seu post...vai dizer q tens razão!hehehe

Marcélia Macidália Leal disse...

Mãe não aconselha, manda. Eu sou mãe e o negócio funciona bem assim mesmo.
Que delícia de blog.
Sigo-te e se tiver um tempinho te convido a conhecer o Boatos e Afins. Amador, mas vai chegar lá.

Beijos


http://www.boatosafins.blogspot.com

Anônimo disse...

Mãe é uma só para a vida inteira.
Sou mãe e tive a felicidade de ter tido uma mãe maravilhosa e inesquecível.
Nesse texto concordo com algumas coisas e discordo de outras.No mundo atual a relação com os filhos é mais liberal e informal. Mas o fato é que sempre é muito bom falar de mãe!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Beijos
Rosane

Persona Dirla diss disse...

FIQUEI "COM UM DÓ DE VOCE", POR SEU MEDO; POIS ELE É CAUSADOR DAS FUTURAS INSEGURANÇAS. E POR SUA MÃE TER COMETIDO, "INJUSTIÇA INOCENTE"; ISSO É INERENTE À MÃES. COMO VOCE DISSE, ELA CRIOU QUATRO FILHOS E, QUEM SABE, NÃO IMAGINOU QUE PRECISASSE DE UM TEMPINHO P'RA SI; PARA SE OLHAR E REFLETIR QUE A VIDA É MUITO MAIS "O SER PSICOLÓGICO". ASSIM A VIDA FICA MAIS LEVE PARA NOS CUIDARMOS E CONSEQUÊNTEMENTE POSAR UM SORRISO EM NOSSOS FILHOS! -SINCERAMENTE, Dirla.

Viviane Pereira disse...

Consegui ver muito da minha mãe neste texto e um pouco de mim tb. Sou mãe e sou um pouco assim. Acho que as mães de hoje são menos autoritárias e donas da verdade. Ótimo texto.

Aline disse...

Nossa, obrigada por esse texto! Identificação total! hahaha
A coisa da terceira pessoa, essa acusação indireta... No meu caso, sendo filha única, não tenho nem como acreditar que não é a mim que ela se refere.
Vou testar fazer como você e começar a me antecipar com desculpas. Vai que desmonta a estrutura do processo?
Bjs.

Margareth disse...

Mãe é mãe, e não se discute. É Fabrício, a mãe não é boa, ela é ótima, quem não presta são os filhos, que não obedecem, onde muitas vezes precisam dos seus olhos para tal, por não terem respeito e acharem que nada tem limite. Não se reclama de mãe, mãe é sagrada, é melhor assim, para não termos problemas com o todo poderoso que nos criou e ainda nos cria. Ela é santa, só temos direito a uma, mesmo que não sejam as originais e cada uma é sempre a melhor, quando se trata da sua, que estar em defesa. Santa mãe. Mãe que zela que dar broncas, por ama mais do que a conta, ao querer que seus filhos sejam os melhores dos melhores. Biscoito, pote, caçulas, desculpas,... Tudo servem de propósito para pronunciar e dizer, de certa forma, que temos mãe e que somos gratos pela sua existência. Mãe é o único ser que tem direito ao verbo adorar, para acompanhar a sua essência. Eu adoro a minha, você adora a sua... Adoramos as nossas mães. Nos filhos rendemos eternas satisfações e homenagens, em tê-las ao nosso lado, nem que seja no intimo do silêncio, de um passado momento, que marcou a sua partida da vida. Ela manda porque tem razão e só quer o bem dos seus filhos, essa é uma maneira de escolher, o melhor caminho para trilhar as estradas da vida. O culpado é o único suspeito. É Fabrício, acredito em você, sei que não foi você o quebrador da casa dos biscoitos, e de tantas outras traquinagens que jurou inocência. Isso é coisa de mãe, procura qualquer detalhe, para manter a pose. Agradeço a sua mãe por insistir na sua existência, pois é por causa dela que temos você, que só dar bons momentos literários, a todos que correm os olhos em seus textos.
Margareth.

Dalva M. Ferreira disse...

A minha mãe não era assim, mas EU tô ficando cada dia mais assim! Socorro.

Eliane Ratier disse...

Tua mãe lê teu blog? É bom preparar o remédinho...

Andréa Fernanda disse...

Nossa!!
Será que somos parentes?...rs
Bjusss

Anônimo disse...

Adorei. Ser mãe, ser filho, ser pai... Enfim, são complementações nossas, expressões do q somos (também), não do q devemos ser. Pena vivermos nos inculcando cada vez mais regras do q temos q ser e não sendo. Espero ser mãe quando tiver filhos, e continuar sendo mulher, filha, tia, trabalhadora, estudante, poeta. Sendo...