Renato guarda lápis de cor no bolso para lembrar a infância, Felipe mantém bolitas de gude na mesa do escritório, meus amigos conservam canivete, ioiô, relógio do pai, jogo de botão, escapulário da mãe.
É um pertence especial que estimula a memória, um cheiro único dentre todos já sentidos. Um atalho do olfato — a exemplo dos terrenos baldios que encurtavam o caminho à escola.
Não tive sorte. Não é um bambolê que me põe a girar os olhos, não são o bolinho de chuva e a cueca-virada que me puxam as narinas. Não é a gemada adocicando a xícara.
O que me leva a regredir é o refil do boa-noite.
O ritual exorcista ocupava a maior parte do criado-mudo, não restava espaço para os gibis: o pratinho branco, o suporte de ferro e a espiral verde queimando devagar.
Deixava o quarto inteiro com odor de pneu, de plantação de cana, de estrada de terra batida. Não havia motivo para a mãe acender todo dia. Com o cheiro entranhado nas cortinas, nenhum inseto mais entrava no aposento.
Recordo da caixinha com desenhos infantis, um homenzinho careca brigando com o mosquito violeiro. Não soava engraçado para mim, continua não sendo.
O ouvido imerso na expectativa do cuco, o ouvido preso a um relógio de fósforos. A cada minuto, um palito riscado.
O labirinto esfumaçado do repelente me conduzia para o centro de um pesadelo satânico, onde a Verdade seria finalmente revelada.
É certo que vou me afogar na neblina, estou cansado, adormecendo, entregando minha alma.
Dormia tremendo debaixo das cobertas.
Na época que eu não tinha pecado tinha o dobro de medo. Criança acredita na gratuidade da violência, a culpa vem depois. Antes é o exercício do medo puro, antes o medo não era castigo, o medo era pressentimento.
As espirais formavam lentamente os chifres de um bode. Não qualquer bode, o Capra aegagrus hircus da aula de Ciências. Se bem que o nome não faz nada existir, há coisas que existem sem nome, o nome somente apressa a morte.
No ambiente escuro, espesso, minha imaginação transformava a brasa vacilante ora nos olhos da fera, ora na sua barba fumante.
Não adiantava contar de manhã que ninguém acreditaria. O demônio tira proveito da incredulidade dos adultos.
Sabão Rinso na roupa para matar os germes, Neocid na cabeça para matar piolhos, boa-noite para matar mosquito, não sei mesmo como sobrevivi.
Crônica publicada no site Vida Breve
16 comentários:
Adorei...! bj ;)
Provavelmente você pressentia que haveria alguém te matando hoje. E te matando com tanto estilo que faria as pessoas pedirem bis.
Minha infância também foi assim, veneno pra tudo nem sei como ñ morri! rsrsrs
E uso boa noite até hoje, ri muito quando descreveste a caixinha!
Beijos!
até hoje meus pais acendem o boa noite, mesmo em lugares abertos que impedem que a fumaça tome as formas do demo. tem cheiro de varanda de vó, casa de madeira, gostinho de infância. muito bom =)
Minha avó também costumava colocar um repelente que ela chamava de "sentinela" (Espiral Sentinela) que só fazia fumaça e não espantava nada!
Boas essas lembranças!
Eu adorava o desenho da caixinha!
Fab isso não funciona a geração Y pra mim nostalgia é algo que aconteceu semana pasada
E ainda essa semana eu mexendo no bidê da falecida vó encontrei os genéricos desse boa noite. Aqueles, que se colocava o refil num aparelhinho branco e o ligava na parede...
Por um momento na pressa da tarde me peguei criança de novo...
caríssimo, isto está virando registro histórico, as verdenosas espirais eram o essencial da bagagem quando à caminho do mar, nas férias de verão, éramos 6 ( + 1 cachorro) no fuscão, cientes dos congestionamentos infalíveis, hoje se ri, mas (sobre)viver tem lá os seus perigos
Seus tweets me trouxeram aqui e, sinceramente?, valeu a pena. Fazia MUITO TEMPO que eu não lia um texto tão espetacular na Internet. Meus parabéns, ganhou um leitor fiel ;D
Me recordo como se fosse ontem ,sinto o cheiro como se fosse agora... Aqui se chama ¨Durma Bem¨
Sabão Rinso na roupa para matar os germes, Neocid na cabeça para matar piolhos, boa-noite para matar mosquito, não sei mesmo como sobrevivi.
Impossível não rever esse filme!! ( Muitos Risos)
Delicado e real.
Sei mais nem o que falar dos teus textos...
Somos contornados de antigas lembranças. Adoro bonecas, e por isso guardo algumas dos meus tempos de menina. Agora Fabrício, à lembrança mais forte no seu texto foi à sentinela que exibe necessidades até hoje, pelo menos na minha terra natal. Lembro que lá em casa as nossas despedidas noturnas, o boa noite ou o até amanhã, depois da benção materna, só era dado quando se via um pequeno foco aquecido que caminhava em espiral para cumprir a sua missão: acabava-se em cinzas enquanto exalava um cheiro forte e inconfundível de mato com ferro queimado para exterminar as muriçocas. Para mim a sentinela é o mal que serve o bem nas horas em que abandonamos a vida adormecida.
Margareth.
nem eu!
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