sábado, 12 de fevereiro de 2011

ONDE ESTÁ MINHA BABÁ?


Neide foi surpreendida com a visita de Fabrício (foto ao lado) em São Valentim do Sul. Acima, com três anos, ele participa de festa do irmão Rodrigo, acompanhado da babá (ao fundo dos dois) na casa da avó materna, em Guaporé. Fotos de Tadeu Vilani

Queria reencontrar minha babá, que me cuidou do nascimento até os cinco anos. Um pouco de curiosidade, outro tanto de saudade e muito para retribuir o amor que recebi dela.

É uma das figuras mais fortes de minha infância, uma segunda mãe; uma mãe menos apressada, adivinhadora dos pensamentos. Sua voz ainda ecoa lá no fundo da memória, aparece entoando marcha soldado ou boi da cara preta. Está presente em tudo o que lembro no período – e talvez em tudo o que não lembro mas continuo sentindo.

Com certeza, viu quando engatinhei, quando caminhei, quando formei palavras legíveis. Ela me conhecia antes de mim: diferenciava minha dor da manha, meu medo da timidez, meu cansaço do desânimo.

Trabalhou na minha família por 10 anos (1967-1977), na Capital e em três cidades (São Jerônimo, Erechim e Caxias). Somente largou o serviço para se casar aos 32 anos, com o comerciante Milton. Se um dos quatro filhos de Maria Elisa e Carlos Nejar chorasse, de longe dizia quem era.

NEIDE ALESSI PAGANIN.

Tinha seu nome, uma pequena foto e o nome do município em que morava: São Valentim do Sul, cidade do Vale do Taquari distante 154 quilômetros de Porto Alegre. Nenhum endereço, telefone ou dicas, sem referência no Google, tampouco constava na lista telefônica.

Previ que sofreria para localizá-la. Mas para uma cidade com 2 mil habitantes, não enfrentei dificuldade. Os moradores conversam das janelas, todo mundo mostra que está disponível sentado na varanda, surge alguém estranho e os vizinhos competem para alcançar a informação.

Neide contraiu os olhos, caminhou escorada na parede por breve lance de passos.

Não acreditou que era eu, estava bem mais alto. Achei que não era ela, estava bem mais baixa. Transcorridas três décadas, invertemos a altura do olhar. Perguntou como poderia ajudar. Respondi que vinha atrapalhar.

– Não pode ser, não pode ser! Fabrício?

E me enganchou, quase esqueceu meu tamanho e me pegou no colo.

Neide está com 66 anos. Permanece com os cabelos curtos, sempre preferiu a praticidade do corte para não fugir do trabalho pesado na roça.

Sobreviveu a dois aneurismas, em 1999 e 2000.

– Acho que tu é meu terceiro – provoca.

Mora numa residência de madeira, de esquina, que funcionava como um bar. Fechou o comércio em 2009, desanimada com a morte do marido. Cuida agora dos três filhos Melissa, 32 anos, Marcelo, 29, e Camila, 26, e da neta, Manuela, três anos. Em sua residência, adotou alguns hábitos da minha avó, cortinas no lugar das portas, velas nas vidraças do banheiro e fotos escondidas nas gavetas das roupas.

– Para vestir lembrança – brinca.

De São Valentim do Sul, não pretende mais sair, nem para passeio. Seu prazer é cumprir ronda pelo bairro de tardezinha, entrando de casa em casa, para pôr as fofocas em dia e tomar chimarrão.

Ao me admirar crescido, seus olhos azuis estalavam como os bifes que fazia na chapa, os melhores de minha vida. Bem humorada, foi me devolvendo:

– Tu esticava o forro dos meus bolsos para conversar comigo...

– Não, não ficava quieto, aproveitava minha ocupação com os manos para tirar as panelas do armário e produzir barulho. Batia tampas, louquinho da silva, até que aparecesse de volta. Sempre foi escandaloso, carente...

– O Rodrigo, dois anos mais velho, gostava de ser teu pai e te levar, sozinho, na escola, no Santa Inês. Emburrava, embeiçava, quando adulto se metia a acompanhá-los...

– Tu não comia nada, vivia se escondendo no roupeiro na hora do almoço. Cresceu graças à bolacha de sal e patê....

– Teu pai veio do açougue, passou o embrulho para colocar na geladeira. Depois não achava um livro que comprou. Reclamou por dias, culpando a família. Na hora do churrasco, descobrimos que o maldito livro estava junto da carne...

– Tua mãe dizia que amor não se conserta, amor se reinventa...

Meu silêncio ia se acalmando com as histórias. Enquanto isso, no balcão do antigo bar, a neta servia chá para as bonecas. A menina povoou o salão inteiro com barraca, bicicleta e brinquedos.

Neide realmente nunca brigou comigo para arrumar a bagunça. Entendia que a brincadeira tem uma ordem secreta. Entende de criança.









Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 36, 12/02/2011
Porto Alegre, Edição N° 16609
Veja vídeo do emocionante reencontro

19 comentários:

Claudia Pandora Crusius disse...

Chorei ao ler o comentário ...quantos afetos se perdem no meio do caminho, cujas marcas ficam pra sempre, às vezes, desapercebidas ...semelhante a ti, fui atrás da professora que me ensinou a ler e escrever ...pasma, ao falar em que ano tinha sido aluna dela, me descreveu perfeitamente, o que me fez ficar mais feliz ainda com a procura daquele afeto escondido ...pena que as pessoas não encontram eco a isso em suas almas, aquilo que passa, aquilo que marca, aquilo que não tem preço ...beijos !

Suziley disse...

A gratidão, o carinho, a amizade e o amor são o que de melhor fica entre pessoas que se querem bem. Linda homenagem a sua babá de outrora!! Parabéns!! Bom findi :)

anajacyara disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
anajacyara disse...

Carpinejar muito lindo e emocionante... Dá pra sentir, ao ler, a verdadeiro carinho que se tem às pessoas que realmente marcam a vida de uma maneira simples mas cativante e especial.

Beijo
Ana Jaci AmoRim ( de SL- Ma)


P.s.: em meu blog fiz um post sobre uma frase sua.

subentendidojm.blogspot.com


ah! espero pelo dia em que virá novamente por aqui, foi otimo na feira do livro.

Anônimo disse...

Você demonstrou a importância das marcas da infância com sensibilidade e emoção. Parabéns a você (e a sua babá, Neide)!

Maraguary disse...

Ah... guri, sempre me emociono com você! Eu chorei! Que lindo!!!

Eliane Ratier disse...

Lindo! Adoro ver gente grande em retrato de pequena, tua vó parece com a minha...e as histórias da gente que o povo guarda, e a gente nem sabe que se passou. Precioso resgate.Beijo

Rossana disse...

Que lindo o seu relato!
Feliz de quem teve um bom anjo de carne e osso como a Neide.
Mas vou pedir licença para colocar as sábias palavras de tua mãe no meu blog, dia desses...
`O amor não se conserta, se reinventa...`
=)

Unknown disse...

lindo... pena nao deixarmos anjos como ela na vida de filhos, primos, sobrinhos... seus anjos sao desconhecidos... amigos sem ao menos conhecerem o rosto e sim as palavris virtualmente.
E a propósito.... meu nome é Sélisis... te parece familiar?

Margareth disse...

Que bom Fabrício, que você vasculhou o seu passado, encontrou o seu tempo de menino, recordou as lembranças e foi matar as saudades, do amor extra que teve da sua babá, a mãe dos prazeres, a que dar tudo e não toma nada, atende sonhos e desejos, é a que zela, ensina, defende, protege, escondem os maus feitos, se apresenta como culpada para anular a tristeza do verdadeiro réu, é a que baba pelos pequenos, e com a sua inesperada visita, babou pelo grande homem que enraizou sementes de amor e saberes. Ocupou o destino para mostrar os detalhes das lembranças através das histórias esquecidas ou as que seus pais deixaram de te contar. Fabrício a sua babá é uma das grandes mulheres que estar por trás desse grande homem que é você. Descobri o seu segredo literário, o motivo de tanto talento que só aumenta a cada dia o seu sucesso. O excesso de amor. O amor extra que a vida disponibilizou para você o qual soube aproveitar muito bem. Obrigada Neide, por ter cuidado tão bem de Fabrício e sem querer da humanidade. Olha que riqueza, que estrago de beleza tem no mundo da escrita, há muitos culpados, mas a sua participação foi especial.Foi um prazer ter conhecido mais uma grande mulher nesse mundo de meu Deus.abraços de satisfação.
Margareth.

Caca disse...

Que gesto emocionante. Que gesto, meu caro, que gesto! Abraços, vida longa. Paz e bem.

Fernanda Machado disse...

Lindo depoimento, linda história!
Também tenho uma babá que se perdeu no tempo ... criou a mim e minhas irmãs e é quase como minha segunda mãe, minha irmã mais velha e quase minha referencia de ser!
Que bom que encontrou a tua e espero um dia poder reencontrar a minha querida Iara.

Beta Nunes disse...

Nossa!Mais que perfeito esse teu texto.Aliás como tudo q vc escreve...Sensibilidade...
Q alegria ler Fabricio Carpinejar. Eu e minha filha somos tuas fãs!!!
Saúde sempre!!!
Bjos!!!

Anônimo disse...

Emocionante...emocionante...que texto...que construções...Vc voltou a escrever como sempre...Só uma perguntinha: vc voltou a fumar? Se não, então está superando a abstinência da nicotina...rssss...Parabéns...Adriana

Clarice disse...

Das nossas babás, que se espalharam pelo mundo só sei de minha tia mais moça, que tinha e mantém esse mesmo carinho e dedicação que li nos olhos da tua. Difícil definir a infância sem elas.Minha homenagem a elas num post ficou com um gosto de saudade sem fim. De tudo.
Abraço.

Lari Bohnenberger disse...

Nossa, que história linda!

Eu nunca tive babá, mas há pouco tempo me reencontrei com uma amiga que minha mãe tinha quando eu era criança, uns 6 anos, que cuidava de mim, brincava comigo, e um belo dia simplesmente sumiu. Mais de 20 anos passados ela reapareceu. Foi um reencontro muito emocionante!

Histórias assim vale a pena compartilhar.

Bjs!

Diana disse...

Também eu chorei. Parabéns.

A beleza da vida está nas coisas simples. Devemos congratular o simples facto de vivermos !

Silvia Angélica Palma disse...

Chorei....

Anônimo disse...

Que lindo.
Absolutamente lindo e verdadeiro.
Como vc Carpinejar.
Amo o que vc escreve... Sou apaixonada por suas palavras....