Mudar de casa é de menos – isso o frete resolve.
Quando a gente ama, muda de corpo. “No meu ou no seu?”
É caso de exorcista.
Trata-se de um só corpo mesmo. Não é brincadeira. Uma cama imensa e os dois encolhidos num canto, um sobre o outro.
Eu e Cínthya temos tantas coincidências que estamos dispostos a oferecer um curso de telepatia aos interessados. Não é apenas a cumplicidade que nasce da observação, ou a afinidade de gosto que surge da convivência, é um pouco mais, quem sabe antecipar reações, algo como ler o desejo antes de virar pensamento.
Costumo me acordar cedo, meu lado madrugador é forte, carrego DNA de colono – ao despertar tarde, acho que perdi o dia e fico mal-humorado, culpando cada tarefa, praguejando cada atraso. Eu me conheço e não pretendo impor o meu ritmo, bem diferente do dela, que adora se estender ao meio-dia.
Ando na ponta dos pés e fecho a porta para não incomodá-la. Espio para me certificar de que não precisarei de mais nada. Nem dou beijo de despedida. Quem beija antes de sair age por maldade, com inveja do sono alheio. Repare que não existe discrição no ato aparentemente enamorado, nem é um beijinho rápido, são vários pelo rosto, alguns pelo pescoço, uma porção pela boca. Como um cachorro lambendo, o sujeito apenas se acalma quando sua mulher abrir os olhos. Depois que o estrago está feito, sussurra de modo cínico:
– Dorme, é cedo.
Almoçamos junto todos os dias. No começo era assustador, agora tem sido engraçado, não há como evitar.
Eu chego, ela chega, as mesas nos observam: um par de vasos. Parecemos gêmeos xifópagos. As roupas de cores iguais. Sempre.
Se estou de vermelho, ela desponta de vestido vermelho. Se estou de azul, ela vem de blusa azul. Se mudo o repertório e ponho laranja, um fato raro, ela veste conjunto laranja.
Ela não me viu sair, eu não a vi se arrumando, ambos estão uniformizados como uma dupla de vôlei de praia. Fica ruim de caminhar, o mundo inteiro apontando, destacando a cópia.
Os atendentes e garçons cogitam a ação promocional de uma operadora de celular. Os amigos supõem que combinamos as cores e acessórios diante do espelho, que corresponde a uma homenagem, uma hashtag, uma campanha de incentivo ao casamento consciente. A semelhança é possível porque não planejamos. Com intenção, seria evitada.
O comentário que mais ouvimos é “não teria a coragem de vocês”.
Nem nós. A coragem no amor é involuntária. Talvez seja a definição exata de intimidade: coragem involuntária.
Crônica publicada no site Vida Breve
Quando a gente ama, muda de corpo. “No meu ou no seu?”
É caso de exorcista.
Trata-se de um só corpo mesmo. Não é brincadeira. Uma cama imensa e os dois encolhidos num canto, um sobre o outro.
Eu e Cínthya temos tantas coincidências que estamos dispostos a oferecer um curso de telepatia aos interessados. Não é apenas a cumplicidade que nasce da observação, ou a afinidade de gosto que surge da convivência, é um pouco mais, quem sabe antecipar reações, algo como ler o desejo antes de virar pensamento.
Costumo me acordar cedo, meu lado madrugador é forte, carrego DNA de colono – ao despertar tarde, acho que perdi o dia e fico mal-humorado, culpando cada tarefa, praguejando cada atraso. Eu me conheço e não pretendo impor o meu ritmo, bem diferente do dela, que adora se estender ao meio-dia.
Ando na ponta dos pés e fecho a porta para não incomodá-la. Espio para me certificar de que não precisarei de mais nada. Nem dou beijo de despedida. Quem beija antes de sair age por maldade, com inveja do sono alheio. Repare que não existe discrição no ato aparentemente enamorado, nem é um beijinho rápido, são vários pelo rosto, alguns pelo pescoço, uma porção pela boca. Como um cachorro lambendo, o sujeito apenas se acalma quando sua mulher abrir os olhos. Depois que o estrago está feito, sussurra de modo cínico:
– Dorme, é cedo.
Almoçamos junto todos os dias. No começo era assustador, agora tem sido engraçado, não há como evitar.
Eu chego, ela chega, as mesas nos observam: um par de vasos. Parecemos gêmeos xifópagos. As roupas de cores iguais. Sempre.
Se estou de vermelho, ela desponta de vestido vermelho. Se estou de azul, ela vem de blusa azul. Se mudo o repertório e ponho laranja, um fato raro, ela veste conjunto laranja.
Ela não me viu sair, eu não a vi se arrumando, ambos estão uniformizados como uma dupla de vôlei de praia. Fica ruim de caminhar, o mundo inteiro apontando, destacando a cópia.
Os atendentes e garçons cogitam a ação promocional de uma operadora de celular. Os amigos supõem que combinamos as cores e acessórios diante do espelho, que corresponde a uma homenagem, uma hashtag, uma campanha de incentivo ao casamento consciente. A semelhança é possível porque não planejamos. Com intenção, seria evitada.
O comentário que mais ouvimos é “não teria a coragem de vocês”.
Nem nós. A coragem no amor é involuntária. Talvez seja a definição exata de intimidade: coragem involuntária.
Crônica publicada no site Vida Breve
29 comentários:
Porque amarnada mais é do que compartilhar o coração com um ser semelhante. Dois peitos num só bater...
Adorei o post
Me senti culpado pelos beijos de algumas manhãs.
Não é a toa que Carpnejar é um dos maiores nomes da literatura.
Parabéns, ótimo post.
CArpi, adorei a crônica. O que tenho a dizer é que sua mulher é apaixonada. A Cinthia verifica a roupa que tá faltando no seu armário e veste igual. Pode ser constrangedor, porém, o fato de ser marcante vale mais pra ela, que te ama rsrsrsr. Você deve ter notado que essa coincidência é rara quando ela não tem como checar suas roupas.
lembro de um casal na praia que fazia igual. Eles já eram um pouco mais velhos e recebiam uns apelidos maldosos (par de vasos deveria ser o menos pior). Não os conhecia, então não sei se combinavam ou se acontecia assim como acontece com vocês.
Ah, se houvessem essas combinações!!
Acho lindo a sintonia de vocês.
Adorei o texto...
Deu vontade de sair pelas esquinas à procura da minha alma siamesa! rsrsrs...
abraço!
É uma pena que sintonia como esta de vcs é algo tão raro...
Adorei o post, vou acompanhar sempre a partir de agora.
Que coisa bonita.
O amor é harmonia! e o texto demonstra quanta harmonia anda por ai nas coincidencias e na vivencia...Parabéns!
beijo!
Fiquei emocionada! Que sintonia...
É de salutar tamanha afinidade.
De facto, tudo se encaixa quando estamos bem connosco e com o outro.
Outras vivências nos ensinam o quanto é raro e precioso ter algo assim.
Ainda que a intimidade e a cumplicidade se possa construir, nem todas as relações vivem tal sintonia.
Não é com a sombra de pesar que comento esta sua partilha. Faço-o com a alegria desse sol que é o reconhecimento de que algo assim é possível.
Obrigada,
achei o texto lindo,
e amor assim e unico na vida..
quando a pessoa consegue esta sintonia com outro alguem e mais que cumplicidade ...e viver junto, dividir a cama, o amor, os dias..
perfeito.
fiquei comovida.
Fofo!A coragem para o ato pressupõe o vexame, a vergonha, e vergonha é palavra banida da fala dos enamorados.
Mas não há nada de sem-vergonha em ser par de vasos.
Começo a entender a prática da poesia. Muito bom, Fabro!
Estrela do céu de artistas ajuda-me a navegar entre tormentas e monstros marinhos modernos. Não digo românt..., está proibido! Mas gosto de beijar na madrugada quando vejo-a com Morfeu! No dia a dia não seria possível, por isso, deixo para momentos especiais. É como enviar um beijo para outra dimensão. Adorei, todas as letras! Beijo e abraço!
Nossa ontem mesmo eu mandei um "e-mailcarta", como eu e meu namorado chamamos nossos e-mails românticos, mandei para ele com o poema de Mario Quintana "Amar é mudar a alma de casa", mas com o que li do Carpinejar terei que reformular. Amei o teu texto de verdade, lindo, lindo. Abraço!
Você é absolutamente maravilhoso.
O amor e o carinho gritam em cada uma das suas palavras, mas é um grito bom, um grito de existência tranquila, que existe em muito poucas relações.
Emocionou-me verdadeiramente.
Sou casada a dois anos e um pouco da leveza e da paixão dos "namorados" já nos deixou.Ao ler seus posts sinto que é possível ser feliz a dois e tento encontrar nos seus textos o caminho para sermos felizes:outra vez.
Palavras doces, sentimentos amargos. Fazemos de conta que a vida é uma sinfonia agridoce...
Carpinejar,
Antes de mais nada quero registrar aqui que sou fã dos seus textos - pela simplicidade com que escreves, pelo traquejo com as palavras, pelo olhar atento e apurado para coisas simples, que por vezes passa despercebido no nosso cotidiano louco e apressado, mas que com maestria você relata através do dom da palavra, da SUA palavra.
A respeito da crônica, nada melhor do que a sintonia afinada de um amor, mesmo que aos olhos dos outros certas coisas e comportamentos possam parecer 'loucura'. Mil vezes padecer dessa 'loucura' do que morrer na debilidade sã de rasos amores.
As inscrições para o curso estão abertas???heheh
Texto gostoso, leve, claro. Mas sem perder o ar intenso que há no amor!
Achei uma babaquice com o conteúdo emocional de programa de sábado a tarde.
Maurício!
você tem que incorporar ao blog, mais opções de compartilhamento! pra dar feed pro facebook, twitter, google buzz entre outros!
o que você acha? senti falta disso quando fui tentar recomendar esse texto maravilhoso no meu facebook rs
beijos
um dos grandes paradoxos do amor é que, ao mesmo tempo que nos faz sentir verdadeiros adultos, nos remete ao estado afetivo da infancia.
Adorei este texto. É tudo muito parecido com o meu casamento. Eu e meu marido também somos um Par de Vasos. E somos assim por amor.
Desde que assisti a uma entrevista sua, pensei: Tenho que comprar o livro desse cara. Na ocasião, Mulher Perdigueira, era o exemplar divulgado. Saí para comprar esse livro e acabei comprando também O Amor Esquece de Começar. Obviamente irei adquirir Canalha!, para garantir a coleção. Parabéns pelo seu talento. Eu nem lamento que na Paraíba (de onde sou), não haja crônista com talento semelhante ao seu. Seria até um desperdício. O sul - de onde veio Martha Medeiros, deve se sentir orgulhoso por ter um Fabrício Carpinejar entre os melhores escritores do país - e merece ser reverenciado por todo o país.
...amor faz isso, não faz?
adoro ler-te!
bj
É Fabrício, o que noto é que os dois, andam sincronizando ações como eternos enamorados. Um é cúmplice do outro. Um pensa o outro fala, um diz o outro confirma. É sinal que os dois se conhecem em todos os detalhes, vai ver que é por isso que o amor laçou a nó, um ao outro e até agora não se arrependeu. Cinthya/Fabrício, Fabrício/Cinthya, um do lado do outro, um dentro do outro, hora corpo, hora alma. Belo exemplo de amor, bons momentos de vida. O bom é que vocês quase não têm tempo para brigar, e quando sim, acredito que é para não perderem o costume de se verem em um único olhar, hora o seu, hora o dela. Poucas brigas, mais tempo para amar, mais tempo para escrever. Continue assim, um seguindo o outro, juntos até na eternidade, sejam felizes hoje e sempre. Só uma coisa Fabrício, admiro quem gosta de despertar cedo, juntinho com o sol, com os passarinhos, com as galinhas brincando com a terra, enquanto os galos cantam: Quem manda no terreiro sou eu cucurucuuuuuuuuuu...... , Quem manda no terreiro sou eu cucurucuuuuuuuuu...... . Ninguém discute. Coisa de mãe, de tia, de avó, de avô, de velho, de bebê, de Maria, de José.... , de Fabrício. Eu hein, pra lá, bem pra lá com esse costume. Amo até mais que a conta o sol, pássaros, as galinhas, os galos e toda a minha cadeia genética familiar. Detesto as cinco para acordar, prefiro as cinco para começar a dormir. Isso é coisa de quem? De doido, dos sem sono, dos que tomam café a todo e qualquer instante, de Henrique de Antônio... , de Margareth. Acho que é coisa de preguiçoso, de quem não obedecem aos padrões dos estudiosos do tempo, que tanto insistem: Dorme de noite, acorda de dia, melhor para a saúde, bom para não engordar e não acelerar o processo de envelhecimento. Sei lá.
Margareth.
É sempre bom ler algo que nos ajuda a ter mais iniciativas, ainda mais quando se trata de amor. A simplicidade nao deixa de ser apaixonante.
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