Arte de Giorgio De Chirico
O garçom não nos percebia. Não virava o rosto em nossa direção. Levantava o braço e abaixava, fingia coçar a cabeça, levantava de novo e abaixava, procurava piolhos imaginários.
Diante das recorrentes macaquices de minha parte, os filhos armaram debochada hola.
A coreografia não surtiu efeito, apenas aumentou a vergonha.
Ele circulava perto e, de repente, girava o tronco para o lado inverso. Um Garrincha de gravata-borboleta dando janelinhas e lençóis nas pernas das mesas.
No momento de nos ver, voltava para cozinha.
– Diacho – eu lamentava. – Impossível marcá-lo de cima.
O sujeito conduzia a bandeja com a cabeça erguida ao teto, ao infinito, ao horizonte. Um dom para a lua capaz de irritar até poeta. Acho que estava mesmo indiferente, não distraído. É complicado diferenciar a distração da indiferença.
Ele não servia. Pela demora, fazia tele-entrega.
Meu ímpeto era pegar o celular e telefonar ao restaurante:
– Pode atender a mesa 15, por gentileza.
O serviço daquele muquifo se enquadrava no mais relapso da vida. Minha paranoia já queria reter os dez por cento.
A impressão é que todos que chegavam depois da gente tinham sido servidos e devoravam as bandejas com prazer e mexiam os garfos com estardalhaço no fundo do prato.
E só nós, ilhados, fantasmas, família do Sexto Sentido.
Nem tínhamos recebido ainda o cardápio. Depois da fila para sentar, agora havia a fila do menu. E depois a fila do refrigerante e suco. E depois a fila da comida.
Quando o homenzinho nos enxergou, ele veio com calma de santo. Fixou seu olhar em meus olhos como se eu estivesse recém me sentando e fosse novo ali.
Avancei o queixo para reclamar e acabar com a palhaçada, mas ele se antecipou com um vozeirão afinadíssimo:
– Não aguento mais esse lugar, estou louco para sair. Entreguei demissão ontem, e o proprietário recusou.
Sua resposta me desarmou. Ele mantinha uma Elza Soares dentro dele.
–Vocês não têm ideia do que enfrento – completou.
Permanecemos boquiabertos, sem reação. Num golpe de telepatia, ele tomou a minha fala, roubou minha cena do roteiro. Sua lamúria anulou a crítica. Eu fiquei totalmente paralisado, gaguejei suspiros.
Com medo de que ele chorasse, perguntei como poderia ajudá-lo.
O que ele aprontou foi melhor do que pedir desculpa, ele inverteu os papéis, mudou de lado, pulou a portinhola do balcão.
Juntou-se a nós, colocou a farda de nosso time e reclamou de seu serviço a ponto de neutralizar o ataque. Um pouquinho mais estaria comendo conosco. Um pouquinho mais seria adotado pela família.
Como a gente não localizou ninguém mais para reclamar, decidimos esperar o tempo que fosse. Uma vez no inferno, não há sentido em ter pressa.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 17/07/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17133
Um comentário:
Aposto que a família Carpinejar passou por essa saga em Belo Horizonte. Aqui os garçons não enxergam os clientes...enxergam através deles, mas não eles...rsrs
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