domingo, 31 de março de 2013

O OCEANO E UMA CONCHINHA

Arte de Fatturi


Encontrei uma senhora com sacolas de mercado subindo as escadas do hospital.

Perguntei se poderia ajudar. Minha mãe sempre me ensinou que não custa nada ser educado.

Carreguei as sacolas até o terceiro andar. Ela se despediu com um beijo em minha testa.

– Vá com Deus, meu anjo.

Fiquei levemente encabulado, minha testa estava úmida, e ela secou meu suor com seu beijo.

Içara, soube mais tarde, acompanhava seu marido André.

Ele tem câncer em estado avançado, metástase nos ossos. Situação grave.

Os dois partilham um casamento de 30 anos. São amigos de minha amiga Cíntia Moscovich.

Já testemunhei o casal abraçado, tomando vinho, comendo risoto, cantando músicas em bar no Moinhos de Vento.

Não lembrei de sua feição na hora. Quando ofereci ajuda, jurei que era uma estranha.

Mostrava-se toda abatida, acuada pela tristeza, as olheiras de coador de café.

Eu me desculpei quando a revi subindo a ladeira da Ramiro Barcelos. Expliquei que não a reconheci naquele dia.

Ela concordou comigo.

– Tampouco me reconheço, querido.

Sua simplicidade, sua humildade, sua honestidade me desarmaram.

Já não queria carregar suas sacolas, mas seus olhos.

Içara sofre monstruosidades. Sofre essa viuvez devagar. Essa viuvez vindo. Essa viuvez injusta informando seu coração pouco a pouco da tragédia.

Içara vive sendo enganada pela esperança e não desiste de acordar, dormir, acordar, dormir.

Com a fé exausta, me encarou profundamente. Colocou as mãos em meus ombros e pediu para que eu rezasse por uma coisa.

Uma única coisa. Nem era capaz de pedir para seu marido melhorar. Nem era capaz de suplicar o retorno da rotina.

Nem era doida de encomendar milagre, de que eles possam viajar para Grécia, admirar os afrescos da Itália, partilhar novamente de música, gastronomia e literatura.

Içara pede uma só coisa, uma só coisinha: dormir mais uma noite de conchinha com seu marido. Uma só noite soletrando a respiração do seu homem.

Uma só noite com as pernas entrelaçadas, as cabeças encostadas para igual horizonte. Uma só noite com a paz dos lençóis de casa e os travesseiros lavados. Uma só noite despertando ao mesmo tempo, com a mesma vontade de mate e varanda.

Só dormir de conchinha mais uma vez. Uma noite fora do hospital, do soro, do medo de morrer.

Uma noite absolutamente normal. A normalidade no amor é a perfeição.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 31/03/2013 Edição N° 17388

quinta-feira, 28 de março de 2013

PORTO DOS CASAIS

Como Porto Alegre ajuda o amor?

Qual o lugar da cidade que te faz querer beijar alguém?

Uma coisa é certa: o viaduto da Borges é o local ideal para gerar uma briga.

Confira as teorias porto-alegrenses em meu quadro DRnaTV, da TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.

A exibição ocorreu na noite de terça-feira (26/3).

quarta-feira, 27 de março de 2013

COMPETIÇÃO DE PECADOS


Arte de Eduardo Nasi

A mãe me telefona avisando que está leve e feliz, foi na missa confessar.

Lasquei, de bobo:

— E aí, qual a sentença?

— Três ave-marias — ela respondeu

— Tá brincando, mãe? Que penitência ridícula. Agora entendo a decadência da igreja: não consegue nem mais condenar.

— Para, não faço nada de errado.

— Mas você contou que era minha mãe ou se omitiu?

Ela desligou na minha fuça.

Completei a primeira comunhão e a crisma, e jamais compreendi como os padres calculavam nossos pecados.

Na hora de confessar, confiava que o padre consultava uma tabelinha de delitos. Um taxímetro da transgressão.

Na minha visão de menino, haveria uma rigorosa avaliação de erros e seus respectivos números e pesos. O Vaticano preparava uma escala oficial de dívidas morais e despachava para todas as sedes, com um carimbo da Santa Sé.

Consistiria em longa lista, de crime e castigo.

Masturbação: 10 ave-marias e dois pai-nossos.
Cusparada: 20 ave-marias e dois pai-nossos.
Tapa: 30 ave-marias e quatro pai-nossos.
Puxar cabelo de irmã: 35 ave-marias e quatro pai-nossos.
Soco: 40 ave-marias e quatro pai-nossos.

O padre teria uma calculadora e faria a soma das confissões. O julgamento seria objetivo como a tabuada.

Mas não era o que acontecia, e não é o que acontece.

É um dos grandes males da Igreja Católica.

A subjetividade do julgamento sempre gerou inveja e concorrência nos pecadores.

Ficava com ciúme de Anamara que contava os mesmos pecados do que eu e recebia penas brandas. Por quê?

Levantava algumas hipóteses. Primeiro, que não importava o que dissesse, o padre falava com a minha mãe antes e já incluía as molecagens secretas e silenciosas.

Ou que meu anjo-da-guarda denunciava minhas baixarias por debaixo de suas asas.

Devido à injustiça divina, Anamara se ajoelhava alguns minutos para cumprir seu ato de contrição e logo brincava com nossos amigos e eu permanecia por noventa minutos no banco de madeira narrando um clássico entre São Judas Tadeu e São João Batista.

Só podia ter a influência de um delator! Como explicar que meu pecado basicamente consistia em brigar com o irmão e ganhava a sentença de 120 ave-marias e 20 vinte pai-nossos?

Não roubava, não colava nas provas. Deus costumava exagerar comigo.

No mundo doido dos adultos, o problema não se mostrava diferente.

Pais iam de paróquia a paróquia caçar padres compreensivos. Lembro de ouvir conversa de minha tia com a manicure em salão de beleza, enquanto esperava a irmã:

— Vai lá na paróquia do São Geraldo, eu traí meu marido e tive que rezar somente vinte ave-marias…

— Não pode ser? De verdade? Vinte?

— Sim! Ele é muito mais moderno. É um jovem de cinquenta anos. Dá gosto de pecar!

Nos anos 70 e 80, enxergava uma migração de fiéis, que procuravam um porta-voz complacente e simpático em outro bairro.

Ninguém desejava diminuir seus pecados, apenas encontrar um ouvido mais generoso.

O que não é ilegal. A fé não tem regras claras.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

terça-feira, 26 de março de 2013

ÓTIMO!

Arte de Francis Picabia

Eduardo está namorando há seis meses e ainda não conhecemos a felizarda.
 
Ele foge de nossos encontros de terça-feira. Diz que vai levá-la e sempre surge uma desculpa de última hora e aparece sozinho.
 
– Ela tinha aula. Ela tinha treino. Ela tinha inglês.
 
A Raquel é uma incógnita. Se não existisse o Facebook, imaginaríamos que era uma invenção de sua carência.
 
No fundo, ele não deseja nos enfrentar. Vem adiando ao máximo a avaliação da presa pela nossa roda. Ainda mais que nossa turma está solteira e não pouparíamos olhares constrangedores.
 
Não duvido que se case escondido, para evitar o ultraje do inquérito.
 
As mulheres temem apresentar o namorado para a família. Já os homens temem apresentar a namorada para os amigos.
 
O pânico da rapaziada não é tolerar as chacotas dos irmãos, as provocações do pai, o álbum de fotos resgatado pela mãe. O churrasco de domingo com os parentes não é nenhum martírio ao início de relacionamento. Eles não têm vergonha do nu da infância, dos apelidos fofos, das marolas dos costumes.
 
Mas odeiam ter que enfrentar a curiosidade dos colegas de bar. Odeiam com todas as forças a estreia da namorada entre os seus iguais.
 
É mesmo uma cena patética e traumática. A mesa inteira lançará risinhos debochados ao casal recém-formado. As piadas sussurradas lembram códigos entre submarinos ou desenho soletrado de forca.
 
O par amoroso não achará uma posição reconfortante no espaldar da cadeira: se abraçará, se dará a mão, deitará a cabeça nos ombros em profundo e pesaroso silêncio.
 
Pois é duro apanhar e ser simpático.
 
É o fim quando um homem vem com a nova namorada para seu tradicional ponto de encontro boêmio. Tenho pena do sujeito porque fui ele. Assim como da acompanhante que descobrirá que ele só tem amigo ogro e boçal e admitirá seriamente a possibilidade de abreviar o romance.
 
A sabatina do Senado com o candidato a presidente do Banco Central é moleza comparada à roda dos comparsas. Não conheço um outro jogo psicológico tão desonesto.
 
Ninguém será indiscreto com o passado amoroso do amigo a ponto de prejudicá-lo. É a ameaça de contar que assusta.
 
Insinuamos histórias para mudar propositalmente de assunto. São manchetes vazias, sem notícias, porém que pegam de jeito o rim do gajo.
 
– Recorda aquele nosso acampamento em São Gabriel? – posso perguntar de repente.
 
Naquele camping, nosso companheiro de trago ficou com duas jovens em sua barraca. Entende a maldade?
 
Ele gela mais do que o próprio chope, mas a lembrança não prospera e não precisa se explicar.
 
Conheço gente que não aguenta o tranco, que chora no banheiro, troca de sexo e passa a tomar gim tônica. A acareação também explica o motivo de muitos homens se manterem solteiros até hoje.
 
O coliseu masculino é feito de inveja e admiração. Implacável, incorruptível, não há como fraudá-lo.
 
O que nós queremos é testar a jovem, ver se ela merece tirar nosso ilustre sócio das delícias noturnas.
 
Ela será aprovada se não nos xingar após o bombardeiro de picuinhas e bravatas.
 
O que apenas desejamos ouvir de sua boca é:
 
– Seus amigos são ótimos!
 



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 26/03/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17383

PORTO-ALEGRE COMPLETA 241 ANOS


O porto-alegrense é fiel aos hábitos dos pais: escuta a rádio que os pais escutavam, assina o jornal que os pais assinavam, vai aos restaurantes da infância.

O porto-alegrense odeia ser criticado por quem não é daqui. O porto-alegrense ama ser criticado por quem é daqui.

O porto-alegrense abraça seus amigos na rua como se estivesse assaltando. Tudo gritado. É um "eiiii", um "oiiiiii", um “aiiii”.

O porto-alegrense adora hinos. Canta o hino rio-grandense de cor e salteado. Canta o hino de seu clube de cor e salteado.

O porto-alegrense é teimoso. Não abandona um argumento apesar de já perceber que está enganado. É fiel ao erro.

O porto-alegrense aprendeu a carregar seu filho carregando a térmica na Redenção e na Usina do Gasômetro.

O porto-alegrense é ansioso. Ele sempre diz que conhece muito um assunto para depois ir atrás.

O porto-alegrense não é de recado, para na esquina e conversa de verdade. Ainda que chegue atrasado ao trabalho.

O porto-alegrense jura que o Brasil é outro país. E que o Uruguai é um bairro depois de Belenzinho.

O porto-alegrense não aceita neutralidade e empate, muito menos voto de Minerva. Minerva é somente o nome de um sabão em pó. É preciso escolher: está do lado dele ou contra ele. Cuidado, o silêncio é entendido como oposição.

O porto-alegrense não se enjoa da sua cidade. Faz questão de receber turistas no aeroporto e na rodoviária e visitar todos os pontos turísticos de novo.

O porto-alegrense gosta de guardar lugarzinhos só para si. Um restaurante para iniciados, um bar para poucos.

O porto-alegrense é exagerado. Seu time é o melhor do mundo, sua capital é a melhor do mundo, sua carne é a melhor do mundo, seu pôr-do-sol é o melhor do mundo, a cripta da Matriz é a melhor do mundo, o supermercado é o melhor do mundo, o cachorro-quente é o melhor do mundo, o bauru é o melhor do mundo. E não é que é mesmo?

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (26/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:

domingo, 24 de março de 2013

SANTUÁRIO BREGA

Arte de Fatturi
 
Nosso amor tem direito a uma exceção cafona, a preservar um ídolo da infância acima de crítica.

É como um serviço de proteção do passado. Não deve debochar. Não deve rir. Não deve expor no Facebook e cometer bullying familiar.

Toda mulher elegante preserva um altar brega dentro do armário. Conserva uma gaveta onde guarda recortes de jornais e revistas, cifras de músicas, coleciona souvenires.

Se ela não tem um santo bagaceiro, a situação é ainda mais grave: ela é completamente brega. Ter unzinho previne outros.

Custei a aceitar a cota. No meu primeiro casamento, minha esposa era apaixonada por Dalto. Quando perdia a discussão de relacionamento, cantava em tom sarcástico:

Hum! Mas se um dia eu chegar
Muito estranho
Deixa essa água no corpo
Lembrar nosso banho
Hum! Mas se um dia eu chegar
Muito louco
Deixa essa noite saber que um dia
Foi pouco

Ela esbravejava, batia a porta na cara, me insultava, e eu ganhava seu rancor por dois dias.

Já no meu segundo casamento, fui além, atravessei a fronteira do ódio. Não admitia a existência do LP Menina Veneno, do Ritchie, no carro. Ela apresentava para as caronas com inominável orgulho. Sentei por querer no disco, e despedacei também o relacionamento.

Aprendi a respeitar os mitos cults na marra. Porque é engraçado e bonito que a namorada mantenha uma paixão platônica da infância. Sugere cuidado com a memória, e respeito com nossa porção ingênua de criança.

Tudo bem que é um sujeito de reputação duvidosa, mas ela não desaprenderá a rezar. É tempo perdido convencer que é uma decadência, uma vergonha, que ela não tem mais credibilidade para falar dos filmes de Woody Allen. A razão não vai fazer diferença. Os debates não pousarão em lugar algum. O ídolo está guardado em um esconderijo emocional ignorado, num cativeiro amoroso sigiloso, sem acesso pelas estradas da linguagem.

É um nome apenas, um só que precisa aguentar pelo resto da vida. É nada de sua parte, agradeceria a ressalva, você deve ter uns 11 jogadores malas que ela escuta semanalmente de sua boca.

Vale a pena não buzinar barbaridades, não azucrinar no final de semana quando ela deseja reencontrar seu passado. Saia de perto se não aguenta.

É um nome que merece inteira imunidade ideológica. Não precisa ter medo. Ela não vai transar com ele, invadir o camarim, jogar a calcinha no palco.

É uma referência para desafiar o pai; o ídolo, no fim, está do seu lado.

Acho que eu já estou maduro para enfrentar Fábio Júnior. Que venha! Pode trazer o Fiuk.

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 24/03/2013 Edição N° 17381

sexta-feira, 22 de março de 2013

PATO E SAPATO

Arte de Maurice Denis

Minha ex-namorada Alessandra Siedschlag avisou que os homens não identificam a mulher chave-de-cadeia e deslizam facilmente nas ciladas dela. 

É uma personagem perigosa que faz pato e sapato do macho.

A mulher chave-de-cadeia é o tipo sonsa, o sujeito fica devendo eternamente alguma coisa para ela, algum esclarecimento, ela nunca entende o que está acontecendo.

A mulher chave-de-cadeia é aquela que você tenta se separar cem vezes e acaba voltando. 

A mulher chave-de-cadeia não se expõe de modo direto, não conclui nada, abusa das reticências. Na discussão, não assume seu desejo. Sua frase antológica é "Mas eu não falei nada". 

A mulher chave-de-cadeia joga a culpa em cima do homem, a culpa de tudo, a culpa ancestral do gene Y, a culpa do big bang.

A mulher chave-de-cadeia quer mostrar o tempo todo o quanto ela é necessária, o quanto a vida longe dela não tem sentido e não dá certo. 

A mulher chave-de-cadeia transa sem camisinha. Porque confessa que confia totalmente em você. 

A mulher chave-de-cadeia manda mensagens aflitas após um barraco: "isso é para seu bem, você não está enxergando que está se destruindo".

A mulher chave-de-cadeia oferece um bolo para fazer as pazes. Quando você vai devolver a forma, escuta que "não precisa, um dia eu pego". 

A mulher chave-de-cadeia afirma que apenas quer ser amiga. Mas na hora de ir embora, escorrega um beijo na boca. 

A mulher chave-de-cadeia costuma explicar que só quer vê-lo feliz. Mas a felicidade depende da existência dela.

Se você diz que "não é você, sou eu", ela diz "não faz mal, eu espero". E espera na frente da sua porta. 

Se você diz "mas eu tenho outra pessoa", ela responde "não sou ciumenta". 

Se você manda "estou doente, estou morrendo, quero ficar sozinho", ela prontamente fala que vai segurar sua mão no leito de morte, porque o que ela mais gosta é de cuidar de você. 

Amigo, se você se envolveu com uma mulher chave-de-cadeia, o melhor é sair do país. Mulher chave-de-cadeia é tranca de caixão. 

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (22/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 20 de março de 2013

OS OLHOS

O que os homens mais gostam no corpo feminino?

O que elas mais detestam em si?

DRnaTV descobriu que as mulheres podem aprender a amar aquilo que mais odeiam.

O quadro foi ao ar na TVCOM, na noite de terça-feira (19/3), com produção de Fernando Muniz.

TEORIA DO CORNO


Arte de Eduardo Nasi

É mais fácil um marido corneado perdoar a mulher do que um namorado corneado.

O marido corneado tem o passado para contextualizar, o namorado corneado tem unicamente o futuro que talvez esteja perdendo.

O namorado quer provar que é macho. O marido quer provar que é santo.

São duas esferas de julgamento. No casamento, a intimidade atua como um atenuante. No namoro, a falta de convivência cresce em paranoia.

O namorado é estressado: mexe, persegue e controla a presença feminina nas redes sociais. Seu ciúme é preventivo e inseguro. Mexe no celular alheio, pergunta quem está ligando e com quem ela terminou de falar. Como não tem nenhum laço para se agarrar, a não ser a fidelidade, não aceita ser enganado por outro homem. A questão dele é com a virilidade ferida. Ele não atura saber que um desconhecido roubou seu lugar e o privilégio do prazer.

O que enlouquece o namorado é a troça subterrânea, secreta, de que alguém pode se vangloriar de sua ignorância.

O marido relaxa porque tem as preocupações da rotina e da família para rivalizar com a crise matrimonial. Seu ciúme é retórico. Quando descobre a escapada, sua conversa será com a mulher, libera o amante do interrogatório. Procurará entender o motivo da traição para seguir adiante. Se a esposa confessa que não amou o sujeito, tem grandes chances de desculpá-la.

O namorado não se interessa por aquilo que aconteceu. Nada explica a quebra de confiança. Se a namorada revela que foi apenas sexo, ele fica ainda mais ofendido. Fazer sexo com um terceiro é atestar sua insuficiência erótica.

O namorado corneado só pensa nele. O marido corneado só pensa em como ela pode voltar a amá-lo.

O namorado corneado é mimado. O marido corneado sofreu muito antes para se prender à dor.

O namorado corneado é um estourado. Não banca as contas, acha que é um dever ser amado, recorre ao extremismo para se destacar.

O marido corneado entende que a infidelidade não é o fim do mundo, muito menos da relação. Ele pagou os armários embutidos da cozinha em 48x, depois disso o tempo passou a ser seu álibi.

O namorado corneado morre de ansiedade e fecha as saídas. O marido corneado oferece folga para sua esposa escolher com quem ela quer ficar.

O namorado corneado é onipotente. O marido corneado é consciente.

O namorado corneado é autoritário. O marido corneado é generoso.

O namorado corneado é previsível. O marido corneado é paradoxal.

O namorado corneado é um cavalo. O marido corneado é um cavalheiro.

O namorado corneado é violento. O marido corneado é um violino.

Garanto. A mulher nunca mais respeitará o namorado que ela traiu. Torna-se um irmão.

Já o marido corneado terá sempre uma segunda chance. Ele retira felicidade da culpa.





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

terça-feira, 19 de março de 2013

NÃO TIRE SEUS LINDOS SAPATOS

Arte de Richard Hamilton

É uma agressão exigir que a mulher tire os sapatos para entrar em sua casa.

Você pode ser oriental, budista, maníaco por limpeza, não peça.

Sei que é higiênico, livra a residência de sujeira e contaminações, e também é um modo de erradicar as energias negativas do vaivém da rua, e ainda de poupar o piso de madeira dos arranhões.

Mas não peça. É um crime estético obrigar a mulher a tirar o sapato.

Ela somente deve renunciar esse direito ao baixar a hospital. Em nenhum outro lugar. E no hospital, tanto faz o que calça, irá se desvencilhar da vaidade de qualquer jeito com a deprimente camisola aberta nas costas e aqueles detestáveis chinelos descartáveis.

Afora as emergências, é um vexame se despedir subitamente dos sapatos.

Em festa ou encontro com amigos, ela se verá altamente constrangida. Não se trata de vergonha dos pés ou do joanete, não é um recalque e problema psicológico, não é receio de chulé.

Ao tirar os calçados, ela desmancha sua roupa. Acaba com seu traje. Liquida com sua produção. Ela definiu a combinação inteira das peças a partir deles: a cor, o tecido, o humor. Toda mulher é uma cinderela adormecida, não pise em seus calos.

Obrigá-la a permanecer descalça é o equivalente a ordenar que ela fique nua. O sapato é tão íntimo quanto a lingerie. Escolhido com esmero para repercutir as virtudes do corpo.

Forçar sua dispensa é um estupro social. Sem o cobiçado par, a visitante não encontrará sentido e posição relaxante. O temperamento murcha, o tom sobre tom perde o brilho. Mais drástico que receber chuvarada, mais agressivo que estragar um zíper.

Se ela está com vestido negro curto e abdica das botas altas, trocará o clima de totalmente selvagem pelo desamparo de alma penada.

Para a mulher, até o sofrimento precisa ser ensaiado. Odeia ser pega desprevenida, desprovida de plano alternativo.

O acessório determina o estilo, nunca será um detalhe insignificante. Influencia, inclusive, seu penteado. Põe altura e equilibra o conjunto. Dois centímetros a menos podem destruir um figurino. Deixar de lado o salto no momento de reencontrar o ex é chamar a morte, é anular alguma chance de superioridade.

O homem dificilmente entenderá. Sem sapato, a meia-calça vai desfiar, não tem como andar. Ou, pior, a meia-calça com um furinho estratégico nos dedos acabará sendo revelada.

O sapato não faz parte do vestuário, está muito além disso, representa um fígado para a ala feminina, de transplante difícil e delicado.

Não ouse humilhá-la com normas e restrições.

A mulher ama mesmo um capacho.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 19/03/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17376

SEGREDO CANINO


Arte de Keith Haring

O cachorro é o nosso verdadeiro teste vocacional. Nossa caixa-preta. 

Pelo nome que damos ao nosso cachorro, sabemos quem somos. O que queremos. O que desejamos. 

O cão entrega nossa ânsia pela fama, denuncia nossa grandiloquência enrustida. 

Você não vai chamar sua cadela de Shakira se não se acha a mais gostosa do bairro.  

Você não vai chamar de Tyson se não se acha o mais marombado da academia. 

Podemos até disfarçar a onipotência no nome dos filhos, mas acabamos nos entregando nos animais de estimação. 

Um amigo pode dizer que não é ganancioso, mas chama seu buldogue de Napoleão. É um aviso, o sujeito deve ser altamente autoritário no trabalho.

Se você diz que odeia os comunistas, mas chama seu boxer de Fidel, algo está errado. 

O nome do cachorro revela nossa ambição. Escondemos nossa mais sincera pretensão na homenagem divertida.

São raros os apelidos carinhosos e neutros como Totó, Mel, Bidu, Xodó, Rex, Pipoca. Hoje os cachorros têm certidão de nascimento pomposa. Não são mais cachorros, mas Wikipédia.

Se seus cachorros são Freud e Lacan, já é um caso psiquiátrico. 

Se nomeia seu pequinês de Elton John, tem um lado princesa florescendo em você.

Se batizou seu companheiro de parque de Beethoven, é um músico frustrado. Se oferece o nome de Quintana, gostaria de ser poeta. 

Diga-me o nome do seu cachorro e te direi quem és.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (19/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Daniel Scola:

segunda-feira, 18 de março de 2013

A MÁQUINA RECEBE LUIZ FELIPE PONDÉ

O filósofo Luiz Felipe Pondé recebia pelos pubianos em envelopes secretos.

Alguma fã enviava a luxuriosa correspondência para sua casa.

Ele não podia guardar, mas sempre cheirava as amostras.

Revelações bombásticas em meu programa A Máquina, da TV Gazeta.
 
O encontro com o colunista da Folha de SPaulo aconteceu na noite de terça-feira (12/3).
 

EMPLASTRO DE MARIO QUINTANA



Velório sem defunto é Memórias Póstumas de Brás Cubas de Mario Quintana (1906-1994), o maior dos poetas gaúchos. Seu derradeiro testamento, última obra adulta publicada (1990).
 
Representa um enterro sem cadáver. Ou suspiro de um defunto, ainda vivo, lembrando como morreu.
 
Quintana se fingia de morto para ser sarcástico. É estranho ler a coletânea quando ele não está mais entre nós: escreveu como se estivesse morto e, agora morto, parece vivo. 

Literatura é mesmo prestidigitação.
 
Assim como o personagem de Machado de Assis, o livro apresenta um inventário dos desenganos vindo de voz sábia e calejada, numa conversa franca e inadiável com o leitor.
 
É a destruição da farmacologia do desespero pelas dúvidas fitoterápicas. Mario Quintana, que foi farmacêutico em Alegrete na juventude, destrói fórmulas de emplastro e receitas de auto-ajuda destinadas a aliviar a nossa melancólica humanidade.
 
A morte para ele não é triste, nem trágica, é um mistério necessário ("as coisas sem nome") para respeitar a vida.
 
Sem a morte, a vida não seria valorizada. Seria agredida, banalizada, esgotada.
 
Sua teoria tem consistência existencial: morrer é parcelado, é acreditar naquilo que se viveu para aceitar — devagar — o que não podemos fazer.
 
O autor une as pontas da infância e da velhice. A forca é a mesma corda de pular. A curiosidade de menino com o fim do dia é a mesma curiosidade do velho diante do final da vida.
 
"Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança
— Tenha ela oito ou oitenta anos!"
 
Morrer é apenas continuar fugindo de casa. Algo que aprendemos a fazer desde pequeno, quando arrumamos a malinha e caminhamos algumas quadras até a praça e voltamos depois, longe de ganhar atenção da própria família. Quem não passou por isso: fugir e não ser notado pelos pais?
 
Poeta é um bicho perturbador da ordem. Não cria dicionário, porém cria gramática.

Há toda uma gramática peculiar de imagens de Mario Quintana, que aproximou a clássica poesia brasileira (sonetos e canções) da irreverência inteligente e do humor filosófico.
 
Quintana permitiu a aparição verbomágica de Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Cacaso.
 
Com sua passagem, o cotidiano finalmente explodiu de transcendência.
 
Ele é capaz de ver o sol mijando ou de encontrar alívio catártico proseando com a mesinha de pinho (a escrivaninha é seu confessor).
 
É uma coleção de despropósitos carregados de sentido.
 
Mario Quintana ri e fala sério ao mesmo tempo. Trata-se de uma alma de violoncelo escondida num pandeiro.
 
Admirável humanização que se estende a cada verso. Ler o poeta é perdoar os defeitos; é não querer ser melhor do que os outros, mas melhor para si.

Anarquista por hábito e estilo, luta contra o tédio da perfeição, promove os problemas, defende a importância das dificuldades da rotina.
 
Por mais que os amores sejam idealizados, acordar dos traumas é a sua verdadeira paixão. Ele torce as palavras, investiga o avesso, estabelece paradoxos. Não teme enfrentar a irritação cotidiana. Não subestima os desastres familiares. Sua impaciência é honestidade. Tem noção de que viver é fácil, conviver é que complica o jogo.
 
“A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!”
 
Velório sem defunto é um manifesto pela liberdade da incomodação. Não se acomode, questione, seja chato. Só o chato é independente.
 
"É preciso algo que nos preocupe
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas..."
 
O escritor derruba poemas pelo caminho, como se segurasse uma jarra de suco excessivamente cheia. Ele transborda escrevendo pouco. Passa a imagem de plenitude com o mínimo.  Mata a gula com farelos. Salva o suicida pela unha.
 
Neste volume, elaborou o mais plástico e equilibrado conjunto de sua trajetória. O mais quintaneiro. Aquela súmula lírica que une versos soltos, fixos e aforismos.
Quintana brinca de brigar.
 
E morre somente para ressuscitar e pregar de susto seus amigos.

Prefácio para nova edição de "Velório sem defunto"
Alfaguara Brasil, 2013, 98 p. R$ 29,90

domingo, 17 de março de 2013

O AMOR DEPOIS DO DIVÓRCIO


Arte Fatturi

Os promotores de justiça sabem. Os juízes sabem. Os terapeutas sabem. Os massoterapeutas sabem. As faxineiras sabem.

Nunca houve tanta reconciliação. Mais do que casamento e divórcio.

A reconciliação é o amor autêntico. O amor bandido que se converteu à lei. O amor bêbado que largou o álcool. O amor drogado que fugiu dos vícios.

A reconciliação é o amor depois das férias, recuperado da perseguição dos defeitos e da distorção das conversas.

É o amor depois da mentira, depois do tribunal, depois da maldade da sinceridade, depois da carência.

Casais que se prometeram o inferno, que disputaram a guarda na Justiça, que enlouqueceram os filhos com suas conspirações, decidem voltar a morar junto, para temor dos vizinhos, para o susto da parentada.

A reconciliação é uma moda entre os divorciados.

Mal se acostumam com o nome de solteiro e se envolvem com os mesmos parceiros. Mas os mesmos parceiros são outros. Outros novos.

A distância elimina a culpa. A falta filtra a cobrança.

Eles experimentaram um tempo sozinhos para descobrir que se matavam por uma idealização.

Enfrentaram relacionamentos diferentes, exageros e excessos, contemporizaram os medos e as rejeições, provaram de frustrações amorosas.

Viram que o príncipe se vestia mal, e o sapo coaxava bonito.

Viram que não existe demônio ou santo no amor. Não existe certo ou errado, existe o amor e ponto.

Este amor provisório, inconstante, inacabado e vivo.

Este amor pano de prato, não toalha de mesa, mas que serve para secar a louça e as lágrimas.

Quem era ciumento retorna equilibrado, quem era indiferente regressa atento.

A trégua salva e refina o comportamento. O casal passa a adotar no dia-a-dia aquilo que não admitia fazer e que o outro recomendava.

O que soava como crítica antigamente passa a ser conselho.

Gordos emagrecem com exercícios físicos, brabos examinam seus ataques de fúria.

A saudade era um recalque e se transforma em sabedoria.

O par percebe que é melhor ser inexato do que inexistente.

Durante a separação, ninguém aceita ressalva e exame de consciência.

A separação é soberba, escandalosa, arrogante. Todos gritam e espalham os motivos da discórdia.

Já a reconciliação é humilde, ouvinte, discreta. Os amantes cochicham juras e esquecem as falhas. Baixam as exigências para aperfeiçoar o entendimento.

A reconciliação é o amor maduro, o amor que ressuscitou, o amor que desistiu de brigar por besteiras e intrigas.

O amor que é mão dada entre o erro e o perdão. Mas que agora pretende envelhecer de mãos dadas para sempre.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 17/03/2013 Edição N° 17374

sábado, 16 de março de 2013

ASILO DOS OBJETOS

Arte de Hannah Hoch

Onde colocamos os objetos que não combinam com a decoração, mas que não desejamos jogar fora?

Na casa dos pais, que é o depósito predileto dos móveis recusados pelos filhos.

Ouça meu comentário na manhã de sábado (16/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Jocimar Farina e Andressa Xavier:
 

SIM OU NÃO?

Arte de Marx Ernest

É sim ou não. Serão três letras para o fim ou para o início. Sim ou não?
 
Não aceito que diga que está cheia de preocupações e que não é o melhor momento.
 
Não peça mais tempo para pensar, tempo não é sabedoria, tempo é adiamento.
 
Dou tempo para arrumar o cabelo, não dou tempo para arrumar a cabeça.
 
Não me diga que não tem como me fazer compreender, ou que não pode me fazer esperar.
 
A despedida é uma aula de desculpas, não revela o que sentimos.
O aceno tem que ser trinco, senão é mero cumprimento. O aceno abre ou fecha portas. 
 
Não venha alegar que sou especial e pretende continuar do jeito que está. A comodidade esvazia a urgência.
 
É sim ou não. É definir antes a vida que não quer. Só a renúncia valoriza a escolha.
 
Preciso perguntar. Não tenho saída. Não ter saída é ficar junto. 
 
É sim ou não.
 
Não serei compreensivo. Acompanhando sua covardia não lhe darei coragem.
 
Não serei maduro. A pressão é honestidade. A pressão é fidelidade.
 
Não venha responder que é cedo para tomar decisões. Já é tarde. Sempre é tarde para quem se necessita.
 
Deve oferecer sua solidão. A solidão da decisão. É sim ou não. Sim sim. Não não.
 
O amor é uma conta exata. Com números quebrados. Nada vai fora depois do sim. Tudo se disfarça depois do não.
 
Sim sim. Não não.
 
O beijo tem som de sim, o abraço tem som de não, qual dos dois?
 
Amar é decidir. Amar é decidir mesmo que seja errado. Não há problema em errar, inventaremos o certo.
 
Não tenho medo de me arrepender, tenho medo de não ouvir o meu desejo pela ânsia de falar. Tenho medo de não deixar meu corpo falar.
 
É sim ou não. Terá que escolher um lado. Fugir do encaixe da cabeça nos ombros ou me amarrar em suas pernas. 
 
Sim ou não. É agora. O grande problema é o pânico de responder na hora. Mas não agir é não me escolher. Não decidir é decidir também. É dizer não fazendo o sim.
 
Eu espero o sim do sim ou o não do não. A grande certeza para vivermos tranquilamente nossas pequenas dúvidas.

sexta-feira, 15 de março de 2013

APETITE MILAGROSO

Para o corneado esquecer a infidelidade?

Massa bolonhesa, com carne de segunda.

Confira estranho e maquiavélico menu em meu programa DRnaTV, da TVCOM, com produção de Fernando Muniz.

A exibição ocorreu na noite de quinta-feira (14/3).

PECADO ORIGINAL

Arte de Sophie Taeuber-Arp

Em restaurante de São Leopoldo, um advogado avisou ao gerente que sua filha só tinha quatro anos, para não pagar nada.
 
A filha olhou para o pai com desencanto e explicou bem alto:
 
— Pai, eu tenho sete anos, já estou na escola, já sei ler e escrever.
 
A menina chorou, abriu um berreiro: o pai não sabia sua idade.
 
Aliás, as mulheres mentem sua idade na vida adulta porque os pais mentiram a idade delas quando elas eram pequenas. Tudo começou com o meio-buffet.
 
Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (15/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, com Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:
 

quarta-feira, 13 de março de 2013

NAMOROS VIBRANTES

Arte de Eduardo Nasi
 
Eu nunca dei um vibrador a uma mulher.

Estou em desvantagem em relação aos meus melhores amigos. Eles costumam oferecer o mimo no início do namoro.

Para mostrar liberalidade e discernimento. Para provar que são maduros e esclarecidos. Ou por sacanagem mesmo.

Quando comentei que jamais ofereci um vibrador de presente, eles me censuraram com um “Oh” e “Nossa!”.

Alegaram que estou defasado, que o vibrador não concorre com o pau, é uma mão hábil e ágil.

— Ele é o pianista, nós somos os cantores —, comparou Renato Godá.

Enrubesci, me vi um reacionário com duas pedras de gelo. Voltei a falar de futebol para me sentir viril de novo.

Aquilo me gerou pesadelos depois. Sou um tosco, devo ser um covarde, um limitado sexual.

Criei teorias para me absolver: “Não é que tenha medo da concorrência, é que eu pensava em não invadir a solidão feminina” ou “O vibrador é presente de namorado preguiçoso”.

Teses bonitas que escondiam meu ciúme de Eduardo, que voltou de Berlim com um consolo de última geração, dádiva para sua namorada.  Ele venceu as aparências para trazer o bichinho evoluído, que não precisa de pilhas e funciona em contato com corpo.

— É superultramoderno! — anunciou.

Só para explicar o mecanismo do negócio, ele demorou vinte minutos, que é uma baita preliminar. Ele disse que o aparelho é movido por ímãs, apto ao bolso, discreto e potente.

De qualquer forma, não entendi a mecânica: Como que carrega?

É assustador um vibrador que é necessário ler manual de instruções. Ainda mais em alemão.

Além do desprendimento de adquirir a peça, ele enfrentou a alfândega, e foi convidado a abrir a mala e desembrulhar o apetrecho.

Os funcionários perguntaram como é que ligava. Ele gaguejou:

— Tem que colocar na pele.

— Na pele, tá de brincadeira?

Não estava. O aparelhinho zuniu no braço peludo do policial, no meio da revista do Aeroporto de Berlim-Brandemburgo, para a diversão de milhares de passageiros.

Todo macho resolvido tem sempre a fama de gay.
 




Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
 

terça-feira, 12 de março de 2013

ME DEIXE EM PAZ

Arte de Paula Modersohn-Becker

Meu filho foge das fotografias.
 
É alguém alçar o celular para o alto e ele se esconde debaixo de colunas e cortinas. Não aguenta máquinas por perto.
 
Não me chateio, não obrigo que ele mude de ideia, nem lamento a desistência precoce da vida pública.
 
Ele não está doente, tampouco é timidez. Não colocarei Vicente em terapeuta para resolver sua retração. Não vou ofendê-lo de bicho de mato e constrangê-lo entre os amigos.
 
O nome do que sente é estresse. Uma postura defensiva extremamente sadia. Ele está farto de flash, de olhar para cá e ser feliz.
 
Bombardeamos nossos filhos com a facilidade de imagem. Exageremos na dose. Eles enjoaram, cansaram, taparam a câmera com a mão.
 
É Instagram. É Facebook. É Twitter. É Tumblr. Temos que alimentar diariamente os demônios das redes e eles são nossas vítimas prediletas.
 
Vicente entrava no ônibus da escola: foto! Vicente almoçava: foto! Vicente jogava futebol: foto! Vicente bocejava: foto! Vicente pulava na piscina: foto! Vicente chorava bonito: foto!
 
Coitado. Aos 11 anos, ele tem um acervo fotográfico do tamanho do de Justin Bieber. Desde o nascimento, são centenas de fotos minuto a minuto de sua existência. Não diria que ele possui um álbum, mas já uma fotobiografia.
 
Minha infância foi de plebeu, com 50 fotos no máximo, todas com roupas de domingo e ao lado dos irmãos. A infância do Vicente é de imperador, uma muralha da China de poses.
 
Os pais se transformaram em paparazzi alucinados e loucos para demonstrar seu amor digital. Montam guarda nas janelas. Realizam vigília nas portas do banheiro e do quarto.
 
Encantados com os aparelhos modernos e as versões anuais de Android e iPhone, perderam o pudor e o senso de medida. Seguem seus pequenos nas cenas mais recatadas e pessoais para obter o clique diferenciado, que ficará um luxo com o uso dos filtros.
 
Não é brincadeira. Subtraímos a privacidade das crianças. Hoje, estão expostas como atores e atrizes mirins, empurradas precocemente para a ribalta. Tudo é festa. Tudo é mostrado.
 
Os meninos e as meninas não têm sossego. Não podem nos olhar com cara engraçada. Não podem inventar de nos abraçar longamente. Um instante de bobeira, e seus familiares aproveitam o registro para pôr na web.
 
Vicente rejeita luzes. Ele pede:
 
– Me deixe crescer em paz.
 
Bem que ele faz.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 12/03/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17369

RISOTO NA PANELA

Arte de Pisanello

Não faça surpresa para seu amor. Estraga as melhores relações. 
 
A surpresa só traz decepção. A surpresa só acarreta infelicidade.
 
A surpresa é autoritária, tirana, não admite improvisar.
 
Ou é do jeito imaginado ou não serve.
 
Sua mulher prepara um jantar para você.
 
Ela espera com um risoto de funghi, seu prato predileto, às 22h, horário que volta do trabalho.
 
Mas, naquela maldita noite, optou por sair com os amigos.
 
Telefona para ela e avisa que não vai retornar tão cedo. Ela fica furiosa. Você não entende o motivo da fúria.
 
Quando aparece em casa pela meia-noite, vê a mesa posta com dois pratos e luz de velas. Toda mulher, quando arma um jantar-surpresa, não tira a mesa para mostrar que você é insensível e não adivinhou que tinha algo de especial sendo feito em segredo.
 
Ela finge que está dormindo. Toda mulher finge que dorme quando está com raiva. Mas a gente identifica pela respiração que ela está com raiva, e não está dormindo.
 
Aliás, ela acabou de deitar e correr para as cobertas quando batemos a porta.
 
Na manhã seguinte, ela fará questão de dizer que não arruma mais nada para você. Nunca mais. Que está cansada de investir no casamento e não ser valorizada.
 
Você não sabia de nada, esse é o problema da surpresa.
 
Você não cumpriu o que não sabia.
 
Você não compareceu para um encontro que não agendou.
 
Quem faz surpresa está louco para se separar e procurava um motivo.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (12/3) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:


segunda-feira, 11 de março de 2013

A MÁQUINA RECEBE LENINE

A casa afinada para o palco. A orquestra dos talheres. A serenata das frestas da janela.

Lenine é o regente dos sons domésticos. Ele é o entrevistado do meu programa A Máquina, da TV Gazeta.

O encontro aconteceu na noite de terça-feira (5/3).

DAR A SOMBRA

Arte de Hannah Hoch

Pouco se fala da depressão pós-parto masculina.

Existe um medo de tocar no assunto. Como se fosse folclore e exagero. Mas é grave e desconfio que atinja 30% dos casados.

Todos temos um amigo que pulou fora de uma relação no momento em que virou pai. Antes de supor que é safadeza, talvez seja necessário reconhecer que é uma tendência perigosa.

Muitos pais não suportam o nascimento de seu filho. Muitos pais terminam o casamento quando o bebê ainda nem completou um ano.

Não é desamor, porém receio de não corresponder às exigências e frustrar os planos de família perfeita.

O homem se enxerga preterido pela sua mulher, substituído pela criança.

Alguns dos sintomas mais comuns são tristeza, desvalia, culpa, distúrbio de alimentação e de sono, irritabilidade, sensação de incompetência, anedonia e isolamento social.

É um mal silencioso, já que teoricamente ele não pariu seu filho. Mas o fato de não contar com uma gestação no corpo faz com que a mudança de realidade seja ainda mais abrupta e violenta.  Ele não se preparou para ser coadjuvante.

Acostumado à exclusividade da atenção durante o namoro e casamento, não se encaixa no rearranjo de forças domésticas, onde é obrigado a largar o cetro emocional e assumir uma condição de penumbra e de apoio.

Agora ele ajuda, não provê. Agora ele colabora, não ordena. Agora ele participa, não decide.  Agora ele observa, não age.

A mulher conserva o hábito ancestral de ouvir e atender pedidos, o homem não, quer falar acima de tudo. Na sua concepção, falar é ser. Infelizmente desconhece a zona privilegiada de admiração e aprendizado pela escuta.

A mulher tem maturidade para desaparecer e voltar, o homem não. É altamente carente e não admite sumir por um tempo, não respeita períodos de exceção e de maior cansaço. Não aceita sequer a queda do rendimento sexual do casal.

O problema é que ele não cobra o desconforto, não expõe suas fraquezas e dúvidas, e sim procura imediatamente outro relacionamento, sem nenhum dos novos encargos e responsabilidades. A infidelidade é sua saída de emergência, por absoluta incapacidade comunicativa e vergonha dos sentimentos.

Não é mesmo uma tarefa fácil. Natural escolher a fuga da realidade a admitir ciúme do próprio filho.

O período esplendoroso de descobertas do primeiro ano do rebento costuma ser o apogeu das separações: logo quando o pequeno começa a sorrir, a balbuciar, a engatinhar, a reconhecer a mãe.

A Renascença de gestos e fotografias infantis é a Idade Média do macho.

Na mentalidade do marido ou namorado, ele permanece trabalhando loucamente, só que desprovido das recompensas afetivas. O mimo e a dedicação estão totalmente concentrados no berço. O sujeito chega em casa e não vai relaxar, não será mais recebido com alarde e festa. É apenas mais um dentro da residência, e deve entrar na escala de horários de cuidados ao nenê: dividir a ronda, trocar as fraldas e aquecer o leite. 

A situação piora se o homem percebe sua esposa como uma segunda mãe. Apesar do aparente discernimento adulto, ele sofrerá aquela inveja aguda que assola um irmão com a vinda de mais um herdeiro.

Mulher tem depressão pós-parto após dar luz ao seu bebê, e o homem tem depressão pós-parto ao dar a sombra ao seu bebê.

COLUNA "LUNETA MÁGICA"
Fabrício Carpinejar, 40 anos, descobriu a receita da felicidade: sempre é aniversário quando acorda. Assim também nunca erra seu nascimento. Pai de dois filhos (Vicente e Mariana), autor de 22 livros, já ganhou os principais prêmios literários do país, como Jabuti duas vezes, Associação Paulista dos críticos de Arte e Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. E-mail: carpinejar@terra.com.br
Minha estreia como colunista da revista Pais & Filhos
P. 100, Março 2013, Ano 44, 516