Arte de Eduardo Nasi
O pão francês consagrou a solidão.
Ao ser vendido por unidade, tornou-se a glória dos solteiros. Não precisávamos mais nos preocupar com a família na hora de comer.
Podia-se comprar um ou dois pãezinhos, de acordo com a nossa vontade, e não sobraria nada.
Foi a independência da fome, o descolamento do apetite do planejamento coletivo.
Morreu o aviso da passagem na padaria. O produto dispensava, inclusive, a faca, acabara o ritual das fatias e de se importar com o outro.
Na minha infância, não tinha nada de isolar o pão do resto da turma. Só se vendia de meio quilo ou 1/4. Pedia acompanhamento, partilha, generosidade.
Cortar o pão correspondia a pensar no pai, na mãe, nos irmãos.
A família morava dentro do pão. O ideal de família grande.
Aprendia-se a fatiar de modo idêntico, para ninguém ser beneficiado com mais miolo ou mais casca.
Cuidava para não rasgar a folha vegetal que embalava o produto com os dentes da faca, pois sempre servia para desenhos ou anotações de última hora.
O papel cinza do pão e o papel de seda azul da maçã constituíam a papelaria predileta da nossa cozinha, guardados na gaveta como fortuna para prováveis pacotes.
Aliás, induzido pela etiqueta “Manzanas de Argentina” nas caixinhas de maçãs vermelhas, eu mantinha a ideia extravagante de que todas as maçãs do mundo vinham da Argentina, de que Adão e Eva eram argentinos, de que o pecado era argentino, de que até a serpente era argentina.
O barbante amarrado pelo padeiro agia como um lacre de segurança, para ver se os compradores — nós, crianças! — não caíam em tentação e não furtavam pedaços antes da hora.
Ao chegar em casa, o nó intacto do embrulho provava que a mercadoria tinha sido preservada da gula e da injustiça familiar. Havia táticas para burlar o sistema, porém muito arriscadas e que podiam resultar em castigos no quartinho escuro.
No jantar, contava-se o que cada um comia, a parte mais divertida do entardecer. Criávamos um placar caseiro, onde nos provocávamos e censurávamos o próximo.
“Já comeu sua parte, devolve!”: a frase preferida da turma. Havia um prazer indescritível em fazer flagrante e repreender o irmão.
O pão inteiro possibilitava uma proximidade que não existe mais.
Hoje, unitário e conservado em saquinhos, inspiram o abandono da mesa.
Aqueles pães engaiolados no saco transparente me despertam compaixão. Pássaros de trigo mudos. Sem o alarido da disputa dos farelos.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
19/11/2014
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