Arte de Eduardo Nasi
Gentileza gerava gentileza, cuidados resultavam em agradecimentos, até a mãe inventar de lavar meu All-Star.
Neste momento, acabou a ingenuidade de nossa relação. Depois desse dia, passei a chavear meu quarto e espalhar cartazes de “Proibido entrar” e “Não mexa em minhas coisas”. Estabeleceu-se um clima de suspeita, reparava onde deixava minhas roupas e conferia se permaneciam no mesmo lugar.
Houve uma quebra da corrente do bem em casa. Eu descobri que as intenções não condiziam com a realidade, que fazer favor sem a consulta do interessado desencadeava as maiores brigas.
O fim da minha obediência cega ao amor materno aconteceu justamente quando eu vi meu tênis branco de língua escancarada, secando ao varal, preso por dois prendedores. Foi uma tristeza irreversível.
A mãe desejou me preparar uma surpresa e se deu mal, ela buscou tirar o chulé e renovar meu par com um banho de espuma e Clorofina e me desagradou profundamente.
Destruiu a autenticidade de meu tênis. Nunca mais foi o mesmo: meu tênis cult, invejado pelos colegas, confortável, carismático do recreio, curinga das roupas dos mais diferentes estilos e cores.
Meu tênis sujo tinha aparência de novo. Quando lavado, ficou velho. Ganhou os anos de seu uso, tudo de uma vez. Porque ficou com um branco falso, um branco aspirina, um branco exagerado, um branco escovado, que não tinha no ato de compra.
Adquiriu uma brancura desbotada, fake, arrepiada de pano de chão, diferente do branco encardido e charmoso, que demorei dois anos para imprimir em seu couro. Os cadarços destoavam do conjunto, correntes de um cadeado.
Toda revolta filial começa quando sua mãe lava o tênis sem lhe perguntar.
Ela não respeitou que o tênis não estava imundo, aquilo era estilo de vida, enobrecido nos meus pés como uísque em barris de carvalho. Custou muito chão, demorou para se moldar e assumir uma feição despojada e vivida.
Por suas manias de limpeza, estragou um longo trabalho de depuração. Queria ver qual seria sua atitude se eu passasse verniz em seus móveis de demolição.
O tênis significava o uniforme de minha independência. Não se podia pegá-lo de modo arbitrário, colocá-lo no balde e transformá-lo numa pantufa.
Jamais confiei de novo nos adultos.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
29/10/2014
Um comentário:
Uso All Star desde sempre porque o meu não é simplesmente um calçado. É um estilo de vida, um companheiro de caminhos e histórias; é o meu Toddynho (companheiro de aventuras).
O tênis sujo é autêntico porque é marcado pelos lugares onde passou e faz parte da nossa identidade. Podemos ser conhecidos por ele - sou a menina do All Star azul de cano alto.
Experimentei lavar o meu uma única vez. Ficou cinzento, desbotado, triste e não era mais o meu tênis de estimação.
Lição aprendida. Comprei outro, nunca lavei e nunca deixei ninguém lavar. Só a água da chuva mesmo, mas aí era o acaso me pegando desprevenida no meio da rua!
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