sexta-feira, 1 de março de 2019

FINADA AGENDA

O celular matou a agenda. Foi homicídio qualificado.

Eu deixei de adotá-la em 2015, quando vi que o exemplar só servia para guardar papéis e documentos pelo providencial elástico. Era, na verdade, uma pastinha. Passei a anotar os meus compromissos em minha agenda virtual. E nunca mais olhei para trás.


Meus pais ainda usam a agenda física. Assim como os meus amigos terapeutas, médicos e advogados acima de 50 anos. São poucos os sobreviventes do hábito.

Lembro que eu me demorava nas livrarias e tabacarias para escolher o modelo. Havia uma ansiedade louca e alegre na compra. Dependendo do tipo, definia o que eu queria ser naquele ano: cores discretas revelavam um desejo de ser levado a sério, cores fortes anunciavam criatividade e irreverência. Já os adolescentes desdenhavam do formato de livro e optavam pelos espirais descolados, com adesivos e plásticos.

O preço aumentava de acordo com os serviços opcionais. Sem internet, a agenda apresentava o atrativo de ser uma enciclopédia para consulta rápida. Eu nunca tive uma versão gorda, completa, que pudesse impressionar os colegas. O meu exemplar ficava reduzido a um mapa-múndi, dados pessoais e comerciais.

Mas salivava com os recursos dos outros. Minha tia Cléa, por exemplo, me humilhava com sua bíblia de datas. Quando vinha nos visitar, colocava sua portentosa agenda preta aveludada em cima da mesa – devido ao tamanho, não cabia na bolsa.

Eu a folheava com prazer assombroso: constavam o ano anterior e o próximo, organização financeira, calendário lunar, datas comemorativas, fusos horários das principais cidades, signos e estações, números de vestuário, cias aéreas, capitais, idiomas e moedas dos principais países, distâncias entre capitais brasileiras, expressões estrangeiras, vocabulário comercial, nova ortografia, DDD e DDI.

Não dependia de mais nada para ser feliz. Ela brincava: "Me lembra de tudo, não há nem a necessidade de marido".

Tamanha sua importância, a agenda costumava ocupar papel central de vedete dos presentes de Natal, disputada a tapas no amigo-secreto e nas cortesias de empresas no trabalho.

Não se começava o ano em branco. Obrigava-se a arrumar uma edição até o fim de fevereiro, de qualquer jeito, para ser alguém na vida.

Publicado em Jornal ZH em 06/3/2018

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