sexta-feira, 30 de julho de 2010

TESTE CÂMARA CASCUDO PARA CASAIS

Foto de Fabrício Carpinejar


Não tive sequer o direito de torcer o nariz, ele já nasceu torto.

Sou complicado para comer. Quando convidado a jantar, minha missão é descobrir antes o que será servido. Depois é que confirmo presença. Há mais opções no cardápio do que não gosto do que gosto. Vivo cheio de restrições e não é por problema de saúde, por uma justificativa séria, nada de intolerância à lactose e diabetes, não irei morrer por alergia; é chatice mesmo. Não aguento strogonoff, pizza então com strogonoff é um pesadelo, mais infernal se coberto de batata palha. É uma espécie de anorexia literária.

Meu paladar é incurável, enjoa com rapidez, recuso lasanha de frango, empada de frango, pastel de frango desde que encontrei um osso no meio do recheio. Nas festas e encontros sociais, o garçom passará reto com a bandeja.

Não admito comida fria. Partilho da turma do 'pode vir quente que estou fervendo'. Não cisco tábua e aperitivos, esnobo pãezinhos com caviar. Meu olhar é um micro-ondas girando.

Para ser meu amigo, o sujeito não deve mastigar vagem - é um princípio. Amigo que engole vagem vai me trair, mostra-se influenciável e disposto a qualquer negócio.

A namorada sofre comigo. Espia o bufê para conferir se uma panela irá me agradar. Volta, aliviada, com o sinal de ok, e me chama em direção à mesa. “Está livre, venha!”. É uma espiã dos pratos prediletos. Chega a traduzir as caretas e os engasgos.

Mas Cínthya me assusta. No fundo, ela me apavora. É o oposto. Depois de dois anos juntos, nunca vi recusar uma especialidade, desdenhar uma opção, insinuar nojo. Nunca confessa que odeia algo. E já viajamos pelo norte, nordeste, sudeste, sul do país. Enfrentamos tacacá, arrumadinho, buchada, macaxeira, sarapatel. Não testemunhei uma negativa, não exprimiu um "argh" ao longo do convívio.

Eu me enxerguei diminuído, sem nenhuma exigência maior. Suava frio com os pressentimentos; seria também vítima de sua caridade? Não admitia a hipótese de que ela comia qualquer coisa. Era uma verdade degradante, insuportável. Necessitava localizar um respaldo, uma esperança, o mínimo de seleção para me sentir eleito.

A sensação é que ela tinha servido no exército, que foi treinada na selva. Se acampássemos, faria uma fritada de insetos, um ensopado de larvas de moscas, um macaco ao molho pardo, e mastigaria fixando o alto das árvores para antecipar a caça do dia seguinte.

No desespero da madrugada, criei um diálogo sem pé nem cabeça. Nossa DR atingia à complicada e delicada fase "Luis da Câmara Cascudo":

- Amor, você comeria bago de bode?
- Já comi.
- Mas não aceitaria moela, né?
- Não sou contra.
- Língua, bochecha, rabo e tutano, não desce?
- Dá sim, deliciosos, é a base da alta culinária francesa.
- Mas tem oposição à galinha cabidela preparada no sangue?
- Que isso? É típica de Portugal. E aprovo pescoço, fígado, coração, asas e patas da ave.
- Rã não, jacaré não?
- Adoro.
- Amorzinho, me diz que não tolera dobradinha, me diz, por favor?
- Essa sim, odeio!

Dormi feliz. Sou, pelo menos, melhor do que o mocotó.

31 comentários:

Anônimo disse...

Seus textos são ótimos! E depois de ver vocês dois no Jô, é divertidíssimo poder ouvir os diálogos. :-)

Palavra´s disse...

Meu irmão Fabro,
Lembro quando esteve aqui e um de nossos assuntos foi "cardápio para o almoço".
As portas de nossa casa continuam abertas para você e Cinthya, com aquela tradicional comida caseira.
Só tem um porém; Eu tenho que confessar: Eu gosto de dobradinha.
Retirarei do cardápio quando aparecer.

Abraços

Ana Paula disse...

Hahaha

Me identifico muitíssimo com a Cinthya, mas só até o ponto da dobradinha: adoro dobradinha com feijão branco! E meu namorado me acompanha. =)

beijos - sempre te leio!

Anônimo disse...

Gostei Ramiro, dessa eu gostei

(-;

Anônimo disse...

Senhorita Anônima,

Sou o anônimo original. Fui o primeiro a criticar o Ramiro, mas fiz isso com propriedade do mau(não mal), falei Da MINHA raiva. Até defendi o Carpi, mas pelo que sei dele, não precisa de qualquer defesa. O seguinte parágrafo fala dele mesmo, basta lembrar do conjunto da obra:

"A sensação é que ela (O Fabro é que faz fritadas de qualquer sentimento) tinha servido no exército, que foi treinada na selva. Se acampássemos, faria uma fritada de insetos, um ensopado de larvas de moscas, um macaco ao molho pardo, e mastigaria fixando o alto das árvores para antecipar a caça do dia seguinte".

Tenho certeza que o Fabro pode gostar ou não gostar, mas nunca conheci algum fã que ele tenha machucado. Não fale por ele, fale por você, A SUA indignação, não a dele.

Voltando ao Ramiro, sim, ele pode ou não ser sei lá, mas se entrar no site dele, como eu fiz, tentando estapiá-lo, verá o coração que tem, presente em várias poesias. Você verá beleza...

Além disso, porque postar como anônima? Você deve ter alguma identidade, então assuma. Será um prazer esculhambá-la um pouco.

alguém disse...

Sou, então, como a Cinthya. Me é difícil dizer não. Seja o que for, caiu na mesa, estou comendo. Não se trata, Fabrício, de falta de critério. Apenas escolhemos outras coisas para ter critério na vida. A mesa, não necessariamente, precisamos ser seletivos. Já o somos em outras áreas da vida. Fique tranquilo. Cinthya te escolheu, você não é mais um número no menu da vida dela.

Anônimo disse...

Gracias,
ao dois anônimos.

UM POETA ANÔNIMO!!

Unknown disse...

hahahahahhahaha

meu deus, ri muito...

adorei. Esse negócio de comida é complicado, sou seletiva, mas não chego nem perto de você, sou uma verdadeira comilona!
rs

Juliana disse...

Olha, não achei que existisse alguém tão enjoado pra comer quanto eu. Meu namorado sempre brinca q eu ainda vou entrar em extinção, como os pandas que só comem bambu. Bom saber que não estou sozinha. =)

Bianca ... A boneca branca. disse...

Nossa, achei ótimo!
Mas diria que me identifiquei mais com a parte do diálogo divertido, rs.

Barbara Leite disse...

Nem tão Cinthia, nem tão Carpinejar!
adorei o princípio da vagem!

Ana Matias disse...

Me conquistastes de vez através desta insanidade alimentar, confesso que tenho o mesmo princípio em relação a vários alimentos e finalmente meu amor pode entender que ele é mais que leite condensado, creme de leite, doces em geral, e qualquer coisa branca fingindo ser um produto alimentício que apareça querendo atingir o meu estômago.
Certamente o osso de frango no recheio de qualquer coisa já atacou mais de 90% da população mundial, ninguém consegue fugir dele!

Abraços!

Dalva M. Ferreira disse...

Muito bom. O texto, não o mocotó.

Elenita de Castro disse...

Acho que entendi porque faço tanta questão que o meu namorado recuse comida, escolha restaurante, desdenhe de algum lugar que eu gostei. É tudo necessidade de saber que existe ali dentro algum poder de escolha que me "selecionou" com convicção: "Sim, dela eu gosto".



Acompanho seus textos há algum tempo, parabéns.

Ju disse...

Perfeito!rs
No meu caso, não foi um osso, mas uma cartilagem (ARGH!)...
Nunca mais comi fora de casa qualquer coisa de frango com prazer... rsrs
Você é incrível!
Parabéns pela entrevista da Globo News, foi show!

Bianca Issler disse...

haha adorei o texto, querido. é, pelo menos tu ganhou do mocotó! beijo grande da explosiva: Bianca Issler. rs :*

Unknown disse...

Prezado Fabrício:
O seu "Teste Câmara Cascudo para casais" é uma verdadeira ode às obras "História da Alimentação no Brasil" e "Antologia da Alimentação no Brasil". O meu avô, tenho certeza, adoraria o seu texto!!!
Agradeço a homenagem...
Daliana Cascudo (neta de Luís da Câmara Cascudo)

Rose Novaes disse...

Assiti sua entrevista ontem na Globo News. Amei! Já havia te visto no Jô.
Vc é sensacional!

Blog no favoritos. :)
Bjos

Vida longa e feliz!

Ana SSK disse...

É uma espécie de anorexia literária.

ah, que expressão deliciosa!

Comemos afetos muito mais do que sabores.

Clotilde Tavares disse...

Vi sua entrevista hoje. A reprise. Gostei muito. De tudo o que vc falou e muito das unhas!

Já falamos uma vez por telefone, quando eu quis lhe convidar para a Feira do Livro de Campina Grande, e para a qual, infelizmente, não consegui apoio adequado de governo e aptrocinadores. Isso foi em 2006.

Gosto muito dos seus textos.

Bruna disse...

Hehe...esse lance de ser seletivo na hora de comer é complicado. Evito os almoços e jantas com o grupo de trabalho...sempre tem frango ou carne e é extremanete chato ter que ficar explicando todas às vezes que eu não como carne de frango nem vermelha, simplesmente por opção. É tão difícil aceitar isso? Me retiro... e fico em casa comendo os meus verdinhos, incluindo a vagem...adoro!!! Desculpa! :)

Renata Curi disse...

Há 3 anos te acompanhava. OU você fazia companhia num momento ruim. Momeeeeeento, porque nem foi breve. Na divisão dos bens que importam, sem querer você teve que ir.
Volto aqui e encontro as mesmas angústias que movem, mas com graça e leveza. Tem dois anos esse amor fresco? ;)
que eu tenha os óculos certos para ler igual o Carpinejar diferente.
adorei
:)

Ana Lins disse...

Tô contigo Fabrício!!!! Essas iguarias estranhas não descem nem a pau! hahaha


mas afinal, o q vc curte????

bjão

O psicolouco disse...

Seus textos são tão bons quanto camarão, isso porque adoro comer camarão!
Parabéns!

Renata de Aragão Lopes disse...

Ah, Fabrício! Não creio que tenha tantas restrições à mesa! : )

João Araujo disse...

Oi
Carpinejar(gosto desse nome: juntando mãe e pai até(mesmo)no nome)

Você não come Jacaré? Sei pq, faltou uma cachacinha por perto.

Sole disse...

kkkkkkkkkkkkkk, Fabro sou enjoada como vc pra comer qq coisa, e digo 'argh' e se eu n gostar do cheiro do lugar que vou comer e da comida, eu passo fominha e n como, prefiro meu estoque de bolachinhas dentro da bolsa, haha. Bjos

Sole disse...

ah! amei a foto que ilustrou essa crônica!gosto muito de coisas assim, dependuradas e antigas ou parecendo antigas!

Luciana disse...

Adorei o texto,não sou como a Cinthia,mas gosto de experimentar tudo kkkk rí muito bjus

Anônimo disse...

Amei...
Até parece que lê pensamentos!
Ritinha

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