terça-feira, 3 de julho de 2012

O CÂNCER QUE LEVOU SEU AMOR

Arte de Pablo Picasso

Meu amigo Antonio ficou viúvo. Sua esposa morreu de câncer de pâncreas. Algo devastador, que derrubou em poucos meses a companhia de temperamento forte, risonho e invencível.

Ele não contou com tempo para se preparar e se despedir. O luto veio como um susto. De repente, depois de 30 anos de casamento, ele se acordava sozinho e tomava café sozinho e conversava sozinho e se desesperava sozinho. Antes, até sofrer, sofria com ela.

Sua primeira atitude, assim que depositou seu coração na pedra do São Miguel e Almas, foi limpar a casa, tirar os objetos de Elisa de perto dos olhos. A casa restou pela metade, uma residência casada com móveis de solteiro. Pôs fora as roupas, os cabides carregados de ombreiras, recolheu os vasos e bibelôs, arregimentou perfumes e produtos de beleza, esvaziou as prateleiras. Não esperou doar para caridade. A dor é puro pânico, egoísta, precisa se libertar da palavra, não consegue ser generosa.

Empilhou caixas e caixas de pertences valiosos na frente do portão, para o lixeiro levar. Em segundos, despachou o que o casal acumulou numa vida inteira. Quando morre a figura de nosso amor, mas o amor não morre, não há o que escolher, tudo é lembrança sangrando de novo, somos crianças mexendo, a cada instante, em cascas de ferida.

Antonio circulava pelos aposentos como um fantasma. Já podia, porém, observar por onde andava. Não tinha que pagar mais pedágio ao tocar em qualquer objeto. A faxina o protegeu dos próprios atos falhos. Ajudava o esquecimento a esquecer.

O espaço dobrou de tamanho e intensidade: vazio, deserto, imenso. Sem nenhuma foto ou quadro na parede. Sem nenhum risco de contato com o passado conjugal.

Mas, ao mexer no armarinho do banheiro e buscar o barbeador, encontrou a escova de cabelos de Elisa no fundo da gaveta.

A escova estava repleta de cabelos da Elisa. Cabelos vivos de Elisa morta.

Ele odiava limpar a escova antes de se pentear, não considerava justo, já que era fruto do descuido dela.

Agora não. Ele começou a suspirar devagar para não chorar. O suspiro é o choro da boca.

Não aceitava que a escova tivesse sobrevivido a sua blitz. Odiou aquele acessório com todo amor e amou com todo ódio.

Nas cerdas da escova, brilhavam cabelos castanhos e longos que ele conhecia como ninguém.

Ele sentou-se no sofá e aproximou o nariz da escova, chegou a raspar a pele, para recuperar o perfume do pescoço de Elisa.

Só que predominava o cheiro de madeira do cabo mais do que o incenso de flor de sua memória.

Como um botânico aflito diante de espécie rara, tratou de tirar um por um os fios da escova.

E fez uma trança dos cabelos de sua mulher morta.

Amarrou a mecha com um laço preto e inspirou longamente sua fragrância. Nebulizou o rosto até reaver o gosto do beijo de Elisa. Nunca o último beijo.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 03/07/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17119

14 comentários:

Caio. disse...

Carpinejar, meu caro, sou teu fã! Seus textos, sua forma de escrever, me inspiram bastante. Eu sei que soa meio incoveniente, mas gostaria que - se você pudesse - desse o seu parecer sobre o meu blog. Lhe envio um dos últimos textos publicados para que você possa me dizer se gostou.
http://cartasdeumpequenopoeta.blogspot.com.br/2012/06/me-relacionar-com-voce-foi-como.html

Grande abraço,
Se cuida.

milu disse...

ESTOU PARADA DIANTE DO COMPUTADOR LENDO E RELENDO O TEU TEXTO. ME TROUXE DE VOLTA UMA EMOÇÃO QUE PENSEI TER LIMPADO!!!

Anônimo disse...

Estou com câncer faz um ano , tenho três filhas e sou casada faz 23 anos . O primeiro ano foi não morrer , agora nem sei mais . Sou médica e por isto me recusei a tomar medicações , ele não voltou mas nem eu ! Estou mutilada e não me reconheço mais , choro sózinha e não consigo trabalhar pois não tenho forças para ajudar ninguém , nem a mim . Não sei o que esperar !!

Francis Lummertz disse...

Lindo o texto. Textos assim nos remetem às histórias dos personagens, nos fazem viver através deles.

Marina disse...

UAU...

ana disse...

"Nas tempestades, nas tormentas,
na algidez da existência,
quando há perdas penosas e quando se está triste,
parecer sorridente e singelo,
é a mais alta arte que existe."

Sierguéi Iessienin (poeta russo)

Anônimo disse...

Achei maravilhoso; "fez uma trança com os cabelos da esposa morta'nossa que cruel, esta frase foi que me fez ler o texto.

Nincia Teixeira disse...

Tocante... sensorial... inspirador

Vanessa Vieira disse...

Que barato! Um passeio pela memória viva de uma amor... Defeitos acertos, mas sobre tudo o amor. A-mor... Parei diante dos versos que dizem: "O suspiro é o choro da boca." Que sensibilidade!! Suspiros, choros, amor, morte... A vida leva e a lembrança favor faz de retornar! Abraços!

Lediana Nunes disse...

Texto maravilhoso!
Chorei...
É sensibilidade expressa nestas palavras!

Cecília Sousa disse...

De onde vem tanta sensibilidade, meu caro?

Fernanda Ortiz disse...

Incrível como é capaz de expressar sentimentos tão bonitos e duros, pesados, e um tanto amargos, de forma incrível, tocante. As lágrimas também teimaram em permanecer na borda dos meus olhos. Embora não tenha vivido nada em comum, qualquer perda é rememorada com esse texto. E qualquer receio de perda, é desencadeada. Sabes envolver. Sabes provocar o pensamento no valor que as pessoas têm em nossas vidas. Parabéns, como sempre.

Rosa Chaves disse...

Tudo já foi dito aqui, ou quase tudo.
Aqui eu aprendi mais uma definição de amor e sensibilidade:"O suspiro é o choro da boca."

Abraços!

Helena disse...

F.Carpinejar, seu estilo é simplesmente fantástico! Gosto muito, muitíssimo muitas vezes, do que você escreve!
Esse texto é fabuloso! Tem vida tem cheiro tem toque...!A cada frase fui fazendo tudo junto com o personagem...Como num filme 4D...! Seu modo de desenvolver as palavras causa essa sensação! Texto maravilhoso! Tanto, que é só vida, embora morte e dor essas são pura vida!