sexta-feira, 23 de julho de 2010

O AMOR É FALSO QUANDO VERDADEIRO

Arte de Paul Klee

Minha preocupação é primeiro fazer Vicente comer, já que é o menor. Depois é que posso saborear a comida. Tenho que cumprir a paternidade para me atender. Sempre chego atrasado aos talheres, a sorte é quando a comida não esfria.

Nunca reparei direito em mim - ninguém procura o espelho em movimento. Cínthya é que me alertou que em todo momento descrevo a mastigação do filho. Descrevo não, narro, sou um comentarista esportivo de sua refeição. A cada cinco minutos, espio seu prato e teço um julgamento de seu desempenho.

- Olha o ovo.
- Não esquece a carne.
- Mais um pouco de purê.
- Come mais!

A namorada pretendia dizer que eu era chato, encontrou uma maneira para que suportasse a crítica. Ela é meu espelho em movimento. Falou de lado, contida, como se limpasse o canto dos lábios com o guardanapo:

- Deixe que as coisas sejam naturais.

Eu vi que ela acertou, eu incomodava, repreendia, comentava, educava sem parar. Quase doentio. Serei franco: absolutamente doentio!

Ao experimentar um momento alegre, estou confessando que é alegre na largada. Defino antes de concluir. Se o filho é gentil, escrevo carta de recomendação. Se surge nervoso, atravesso a madrugada criando teses. Não há descanso. O certo e o errado estão no sangue.

Sou um pai insistente e cansativo. Necessário, porém desagradável. Acho que nunca mais serei espontâneo.

Descobri junto dessa observação que o amor dos pais não é mesmo natural. É teatral. Histriônico. Parece falso quando autêntico. Por isso, irrita na infância, enjoa na adolescência, ocupa metade das análises nos consultórios durante a fase adulta.

Pai não tem rosto, mãe não tem rosto, são caricaturas. Traços rápidos para apressar a identificação.

Não conseguimos nos controlar. É reiterar um cuidado até ultrapassar a redundância, é não abolir nenhuma prevenção. Nasce o filho e mergulhamos num estado de pânico completo, numa carência interminável, numa provação incurável. Viramos bulas, cartilhas, manuais, guias, catálogos, explicando de novo o que foi entendido.

Só é natural quem não ama. Somos despojados quando não temos interesse. Atuamos por comandos: sim, não, e deu. Nenhum desespero, nenhuma miséria no abraço, nenhuma insistência.

O que me põe a afirmar que um casal enamorado é formado de péssimos atores. Vai trocar juras ridículas, alternar diminutivos e apelidos, escandalizar restaurantes com exclamações e adjetivos.

Quando a gente se emociona é artificial, uma afronta ao bom gosto.

Enxergar uma família feliz consiste num espetáculo bisonho. Os pais apertam, beijam, afofam, cutucam, gargalham, reclamam e soluçam mais alto do que é aconselhável.

A passionalidade é uma imitação. O afeto é uma dublagem. Queremos tanto provar o que sentimos que passamos da conta.

25 comentários:

Anônimo disse...

Incrível como eu passei a vida pensando nisso e não conseguia exteriorizar o pensamento. Aí você consegue e eu leio e acabo acreditando que tem alguém por aí lendo a minha mente!
hahahahaha

Brincadeiras à parte, hoje sei que minha mãe é o exagero que é justamente por esta razão: me amar de verdade e demais! :)

Ótima maneira de começar o dia: lendo este texto ótimo ;)

Bibiana. disse...

O que explica esse amor sem tamanho, esse desespero em proteger/ter/cuidar/guiar...

Os pais amam muito mais os seus filhos...

Fernanda Marra disse...

Tão bom te ler... Estou passando exatamente por isso com meu filhote de 1 ano e meio. O moleque não come!!! Como tenho sofrido com minhas tentativas naufragadas de ensiná-lo a comer... Texto lindo, necessário!

Thanks.

Aline Monteiro disse...

os pais exageram no cuidado e dizem que os filhos é que exageram...
Quando se é criança tudo é novidade e aí vem a tempestade de perguntas com ou sem nexo do tipo só os filosofos podem responder como: -já é amanhã? E os pais já exauridos d tantos questionamentos falam: vai la jogar video game vai... e quando se é adolescente os questionamentos continuam mas internamente...e os pais: esse menino anda muito calado,meu filho o q ta acontecendo? Você nem bateu no seu irmão hoje...srrss

Augusto disse...

Interessante que, no estudo do teatro, trabalhamos bastante com a questão das máscaras do ator. Isso é bem verdade no cotidiano quando se analisado dessa forma.

Malu Vargas disse...

Ri.:D
Sim, somos essa caricatura, uns mais, uns menos. Mas uma psicanalista comentou que é direito dos filhos ensinar limites aos pais. E acho que é nossa obrigação percebermos quando estamos indo longe demais e obedecermos. Daí o momento feliz retorna. :)

Anônimo disse...

Ai, amei esse texto.Já pensei nisso várias vezes:

"Por isso, irrita na infância, enjoa na adolescência, ocupa metade das análises nos consultórios durante a fase adulta."

Sempre penso nisso, quando penso em ter filhos.

Ramiro Conceição disse...

Amado Fabro, a tua mulher tá certa:
- Deixe que as coisas sejam naturais.

Deixe que a mídia seja natural.
Deixe de querer provar grandes sacadas.
Deixe as personagens à tua literatura.
Confia no teu menino
que sempre viu além dos espelhos.
Confia no fogão a lenha e no laptop.
Confia nos cristais da montanha do olhar
de tua mulher quando te diz: “eu te amo!”
Confia e agradeça a cada dia
a existência de teus filhos…

Confia…
Fia…
Fia…


Deixo-lhe
(ai, ai, ai… troquei as pessoas do discurso… Ah, esse Lhe!).
Bem, voltando. Deixo-lhe meu recém-nascido…


BASTA!
by Ramiro Conceição

Entre
trapaças,
tropeços
e beijos
bêbados:

costurei
os pedaços
dum palhaço
inofensivo
aos abutres
cínicos.

Mas
agora
basta!

É a hora
da águia
celebrar

a nova postura: a envergadura
de não ser mais um estelionato
de si.

Ana SSK disse...

O amor é espotâneo.

Ramiro Conceição disse...

Brilhante, Ana!
Teu comentário poderia ser
o verso final...

Renata de Aragão Lopes disse...

Somos todos tão curiosamente estranhos... Desde que meu filho ganhou dentes, aprecio-lhe o modo como mastiga. Os barulhinhos que produz. Claro, simultaneamente, contando os grãos de arroz já ingeridos e os remanescentes no prato! (risos)

Só não me sinto caricatural, como você disse. Acredito que mulheres e homens exercem, respectivamente (ou não), os papéis (ambos dificílimos) de mães e pais. Educadores, de maneira generalizada. E é óbvio que essas "vestes" nos impõem comportamentos. Alguns necessários, outros dispensáveis. Muitos deles excêntricos! : )

Um abração a todos!

Anônimo disse...

Que história é essa de se preocupar com o "bom gosto"? Isso não é coisa de burguês? haha

Maria Tereza disse...

Mas quem ama de verdade, ama exageradamente! Sem limites... =)

O psicolouco disse...

"Sempre chego atrasado aos talheres, a sorte é quando a comida não esfria."

"Nunca reparei direito em mim - ninguém procura o espelho em movimento."


Esse CARA é foda!

Como consegue escrever tão bem?

Anônimo disse...

"Só é natural quem não ama. Somos despojados quando não temos interesse. Atuamos por comandos: sim, não, e deu. Nenhum desespero, nenhuma miséria no abraço, nenhuma insistência."

Estou bebada e agora em êxtase.

Ixra A. disse...

Assim, Fabro! Gosto quando vc escreve assim, questionando o comportamento psíquico de nós humanos com textos mais bem sacados que engraçados (+ tb gosto destes).

Gostaria que vc escrevesse algo expondo suas ideias e respondendo à pergunta: Por que temos filhos?

Abraço.
Ixra.

Anônimo disse...

Fantastico! Revelador!

Leila Andrade disse...

Lindo texto, agora só falta nós - os filhos - compreendermos esse amor incodicional dos pais, para, quem sabe assim, as coisas ocorram mais naturalmente. bjos, de uma grande fã

Fábio Castaldelli disse...

Ótimo texto. Já me disseram que não herdamos o mundo de nossos pais, mas sim que vivemos o mundo para deixá-los aos nossos filhos. Ainda não tenho nenhum filho, no entanto, algo me diz que você tem razão.

Sou cronista por paixão e jornalista por profissão. Trabalho como repórter em um jornal em Maringá nom Paraná.
Gostaria de saber como posso entrar em contato com você. meu email: fabillcastaldelli@hotmail.com

abraço!

FeMaestri disse...

É isso, Carpinejar tem uma habilidade encantadora com a escrita. Apresenta entre tantas coisas, as coisas rotineiras, que fazem parte de todas as vidas, de um modo inteligente, interessante e divertido. Por esse texto em especial, fico assim, também me reconhecendo espelho e também me achando histriônica, com condecorações...por outro lado, tenho um alivio de reconhecer que está em mim, a mãe cuidadora, que ama intensamente e que faz do jeito que sabe fazer melhor. Bem, somos nós, os cuidadores, os mais valentes e eficientes. Existe por aí, muitos pais e mães, sem olhar...sem tempo de olhar...sem desejo de olhar...fica um vazio, pra todo mundo e um silêncio absoluto na hora da refeição. Continua assim como pai e como escritor, especial pros filhos e pra nós, seus leitores admirados. Carinhos...o texto do amigos invisiveis, foi o melhor que já li sobre o assunto, atualizou todos os conceitos!!!

aluah disse...

Sobre http://carpinejar.blogspot.com/2010/07/duplo-sentido.html:

Creio que esse texto despertou em mim mais uma relação com as palavras, agora, uma relação não de promiscuidade, com o valor que essa característica carrega, mas de um toque sutil de promiscuidade num tango em que dançam eu e a palavra, num jogo de sedução.

Unknown disse...

não sei se é por querer provar que se passa da conta, às vezes acho que é para ter o que cobrar mais tarde...Em alguns casos, pelo menos.

Unknown disse...

Rapaz, adorei o texto, agora compreendo mues pais, mas o desejarego tmb se desaprende?

eu lhe descobri por acaso foi no debate com ana carolina, aí falei que burrice a minha não te-lô descuberto a mais tempo.....

por falr em tempo...
se houver tempo, depois vai no meu blog , abraços e espero agara um livro teu de poesias,.

correarodrigo.blogspot.com

HUGOSALUM disse...

não entendi porque excluiu meu comentário.

JACK Tequilaa;* disse...

"Só é natural quem não ama", nunca tinha paradopara pensar nisso...

adorei!