Minha preocupação é primeiro fazer Vicente comer, já que é o menor. Depois é que posso saborear a comida. Tenho que cumprir a paternidade para me atender. Sempre chego atrasado aos talheres, a sorte é quando a comida não esfria.
Nunca reparei direito em mim - ninguém procura o espelho em movimento. Cínthya é que me alertou que em todo momento descrevo a mastigação do filho. Descrevo não, narro, sou um comentarista esportivo de sua refeição. A cada cinco minutos, espio seu prato e teço um julgamento de seu desempenho.
- Olha o ovo.
- Não esquece a carne.
- Mais um pouco de purê.
- Come mais!
A namorada pretendia dizer que eu era chato, encontrou uma maneira para que suportasse a crítica. Ela é meu espelho em movimento. Falou de lado, contida, como se limpasse o canto dos lábios com o guardanapo:
- Deixe que as coisas sejam naturais.
Eu vi que ela acertou, eu incomodava, repreendia, comentava, educava sem parar. Quase doentio. Serei franco: absolutamente doentio!
Ao experimentar um momento alegre, estou confessando que é alegre na largada. Defino antes de concluir. Se o filho é gentil, escrevo carta de recomendação. Se surge nervoso, atravesso a madrugada criando teses. Não há descanso. O certo e o errado estão no sangue.
Sou um pai insistente e cansativo. Necessário, porém desagradável. Acho que nunca mais serei espontâneo.
Descobri junto dessa observação que o amor dos pais não é mesmo natural. É teatral. Histriônico. Parece falso quando autêntico. Por isso, irrita na infância, enjoa na adolescência, ocupa metade das análises nos consultórios durante a fase adulta.
Pai não tem rosto, mãe não tem rosto, são caricaturas. Traços rápidos para apressar a identificação.
Não conseguimos nos controlar. É reiterar um cuidado até ultrapassar a redundância, é não abolir nenhuma prevenção. Nasce o filho e mergulhamos num estado de pânico completo, numa carência interminável, numa provação incurável. Viramos bulas, cartilhas, manuais, guias, catálogos, explicando de novo o que foi entendido.
Só é natural quem não ama. Somos despojados quando não temos interesse. Atuamos por comandos: sim, não, e deu. Nenhum desespero, nenhuma miséria no abraço, nenhuma insistência.
O que me põe a afirmar que um casal enamorado é formado de péssimos atores. Vai trocar juras ridículas, alternar diminutivos e apelidos, escandalizar restaurantes com exclamações e adjetivos.
Quando a gente se emociona é artificial, uma afronta ao bom gosto.
Enxergar uma família feliz consiste num espetáculo bisonho. Os pais apertam, beijam, afofam, cutucam, gargalham, reclamam e soluçam mais alto do que é aconselhável.
A passionalidade é uma imitação. O afeto é uma dublagem. Queremos tanto provar o que sentimos que passamos da conta.
Nunca reparei direito em mim - ninguém procura o espelho em movimento. Cínthya é que me alertou que em todo momento descrevo a mastigação do filho. Descrevo não, narro, sou um comentarista esportivo de sua refeição. A cada cinco minutos, espio seu prato e teço um julgamento de seu desempenho.
- Olha o ovo.
- Não esquece a carne.
- Mais um pouco de purê.
- Come mais!
A namorada pretendia dizer que eu era chato, encontrou uma maneira para que suportasse a crítica. Ela é meu espelho em movimento. Falou de lado, contida, como se limpasse o canto dos lábios com o guardanapo:
- Deixe que as coisas sejam naturais.
Eu vi que ela acertou, eu incomodava, repreendia, comentava, educava sem parar. Quase doentio. Serei franco: absolutamente doentio!
Ao experimentar um momento alegre, estou confessando que é alegre na largada. Defino antes de concluir. Se o filho é gentil, escrevo carta de recomendação. Se surge nervoso, atravesso a madrugada criando teses. Não há descanso. O certo e o errado estão no sangue.
Sou um pai insistente e cansativo. Necessário, porém desagradável. Acho que nunca mais serei espontâneo.
Descobri junto dessa observação que o amor dos pais não é mesmo natural. É teatral. Histriônico. Parece falso quando autêntico. Por isso, irrita na infância, enjoa na adolescência, ocupa metade das análises nos consultórios durante a fase adulta.
Pai não tem rosto, mãe não tem rosto, são caricaturas. Traços rápidos para apressar a identificação.
Não conseguimos nos controlar. É reiterar um cuidado até ultrapassar a redundância, é não abolir nenhuma prevenção. Nasce o filho e mergulhamos num estado de pânico completo, numa carência interminável, numa provação incurável. Viramos bulas, cartilhas, manuais, guias, catálogos, explicando de novo o que foi entendido.
Só é natural quem não ama. Somos despojados quando não temos interesse. Atuamos por comandos: sim, não, e deu. Nenhum desespero, nenhuma miséria no abraço, nenhuma insistência.
O que me põe a afirmar que um casal enamorado é formado de péssimos atores. Vai trocar juras ridículas, alternar diminutivos e apelidos, escandalizar restaurantes com exclamações e adjetivos.
Quando a gente se emociona é artificial, uma afronta ao bom gosto.
Enxergar uma família feliz consiste num espetáculo bisonho. Os pais apertam, beijam, afofam, cutucam, gargalham, reclamam e soluçam mais alto do que é aconselhável.
A passionalidade é uma imitação. O afeto é uma dublagem. Queremos tanto provar o que sentimos que passamos da conta.
25 comentários:
Incrível como eu passei a vida pensando nisso e não conseguia exteriorizar o pensamento. Aí você consegue e eu leio e acabo acreditando que tem alguém por aí lendo a minha mente!
hahahahaha
Brincadeiras à parte, hoje sei que minha mãe é o exagero que é justamente por esta razão: me amar de verdade e demais! :)
Ótima maneira de começar o dia: lendo este texto ótimo ;)
O que explica esse amor sem tamanho, esse desespero em proteger/ter/cuidar/guiar...
Os pais amam muito mais os seus filhos...
Tão bom te ler... Estou passando exatamente por isso com meu filhote de 1 ano e meio. O moleque não come!!! Como tenho sofrido com minhas tentativas naufragadas de ensiná-lo a comer... Texto lindo, necessário!
Thanks.
os pais exageram no cuidado e dizem que os filhos é que exageram...
Quando se é criança tudo é novidade e aí vem a tempestade de perguntas com ou sem nexo do tipo só os filosofos podem responder como: -já é amanhã? E os pais já exauridos d tantos questionamentos falam: vai la jogar video game vai... e quando se é adolescente os questionamentos continuam mas internamente...e os pais: esse menino anda muito calado,meu filho o q ta acontecendo? Você nem bateu no seu irmão hoje...srrss
Interessante que, no estudo do teatro, trabalhamos bastante com a questão das máscaras do ator. Isso é bem verdade no cotidiano quando se analisado dessa forma.
Ri.:D
Sim, somos essa caricatura, uns mais, uns menos. Mas uma psicanalista comentou que é direito dos filhos ensinar limites aos pais. E acho que é nossa obrigação percebermos quando estamos indo longe demais e obedecermos. Daí o momento feliz retorna. :)
Ai, amei esse texto.Já pensei nisso várias vezes:
"Por isso, irrita na infância, enjoa na adolescência, ocupa metade das análises nos consultórios durante a fase adulta."
Sempre penso nisso, quando penso em ter filhos.
Amado Fabro, a tua mulher tá certa:
- Deixe que as coisas sejam naturais.
Deixe que a mídia seja natural.
Deixe de querer provar grandes sacadas.
Deixe as personagens à tua literatura.
Confia no teu menino
que sempre viu além dos espelhos.
Confia no fogão a lenha e no laptop.
Confia nos cristais da montanha do olhar
de tua mulher quando te diz: “eu te amo!”
Confia e agradeça a cada dia
a existência de teus filhos…
Confia…
Fia…
Fia…
Deixo-lhe
(ai, ai, ai… troquei as pessoas do discurso… Ah, esse Lhe!).
Bem, voltando. Deixo-lhe meu recém-nascido…
BASTA!
by Ramiro Conceição
Entre
trapaças,
tropeços
e beijos
bêbados:
costurei
os pedaços
dum palhaço
inofensivo
aos abutres
cínicos.
Mas
agora
basta!
É a hora
da águia
celebrar
a nova postura: a envergadura
de não ser mais um estelionato
de si.
O amor é espotâneo.
Brilhante, Ana!
Teu comentário poderia ser
o verso final...
Somos todos tão curiosamente estranhos... Desde que meu filho ganhou dentes, aprecio-lhe o modo como mastiga. Os barulhinhos que produz. Claro, simultaneamente, contando os grãos de arroz já ingeridos e os remanescentes no prato! (risos)
Só não me sinto caricatural, como você disse. Acredito que mulheres e homens exercem, respectivamente (ou não), os papéis (ambos dificílimos) de mães e pais. Educadores, de maneira generalizada. E é óbvio que essas "vestes" nos impõem comportamentos. Alguns necessários, outros dispensáveis. Muitos deles excêntricos! : )
Um abração a todos!
Que história é essa de se preocupar com o "bom gosto"? Isso não é coisa de burguês? haha
Mas quem ama de verdade, ama exageradamente! Sem limites... =)
"Sempre chego atrasado aos talheres, a sorte é quando a comida não esfria."
"Nunca reparei direito em mim - ninguém procura o espelho em movimento."
Esse CARA é foda!
Como consegue escrever tão bem?
"Só é natural quem não ama. Somos despojados quando não temos interesse. Atuamos por comandos: sim, não, e deu. Nenhum desespero, nenhuma miséria no abraço, nenhuma insistência."
Estou bebada e agora em êxtase.
Assim, Fabro! Gosto quando vc escreve assim, questionando o comportamento psíquico de nós humanos com textos mais bem sacados que engraçados (+ tb gosto destes).
Gostaria que vc escrevesse algo expondo suas ideias e respondendo à pergunta: Por que temos filhos?
Abraço.
Ixra.
Fantastico! Revelador!
Lindo texto, agora só falta nós - os filhos - compreendermos esse amor incodicional dos pais, para, quem sabe assim, as coisas ocorram mais naturalmente. bjos, de uma grande fã
Ótimo texto. Já me disseram que não herdamos o mundo de nossos pais, mas sim que vivemos o mundo para deixá-los aos nossos filhos. Ainda não tenho nenhum filho, no entanto, algo me diz que você tem razão.
Sou cronista por paixão e jornalista por profissão. Trabalho como repórter em um jornal em Maringá nom Paraná.
Gostaria de saber como posso entrar em contato com você. meu email: fabillcastaldelli@hotmail.com
abraço!
É isso, Carpinejar tem uma habilidade encantadora com a escrita. Apresenta entre tantas coisas, as coisas rotineiras, que fazem parte de todas as vidas, de um modo inteligente, interessante e divertido. Por esse texto em especial, fico assim, também me reconhecendo espelho e também me achando histriônica, com condecorações...por outro lado, tenho um alivio de reconhecer que está em mim, a mãe cuidadora, que ama intensamente e que faz do jeito que sabe fazer melhor. Bem, somos nós, os cuidadores, os mais valentes e eficientes. Existe por aí, muitos pais e mães, sem olhar...sem tempo de olhar...sem desejo de olhar...fica um vazio, pra todo mundo e um silêncio absoluto na hora da refeição. Continua assim como pai e como escritor, especial pros filhos e pra nós, seus leitores admirados. Carinhos...o texto do amigos invisiveis, foi o melhor que já li sobre o assunto, atualizou todos os conceitos!!!
Sobre http://carpinejar.blogspot.com/2010/07/duplo-sentido.html:
Creio que esse texto despertou em mim mais uma relação com as palavras, agora, uma relação não de promiscuidade, com o valor que essa característica carrega, mas de um toque sutil de promiscuidade num tango em que dançam eu e a palavra, num jogo de sedução.
não sei se é por querer provar que se passa da conta, às vezes acho que é para ter o que cobrar mais tarde...Em alguns casos, pelo menos.
Rapaz, adorei o texto, agora compreendo mues pais, mas o desejarego tmb se desaprende?
eu lhe descobri por acaso foi no debate com ana carolina, aí falei que burrice a minha não te-lô descuberto a mais tempo.....
por falr em tempo...
se houver tempo, depois vai no meu blog , abraços e espero agara um livro teu de poesias,.
correarodrigo.blogspot.com
não entendi porque excluiu meu comentário.
"Só é natural quem não ama", nunca tinha paradopara pensar nisso...
adorei!
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