Para Cínthya Verri
Uma amiga acabou de ser mãe. Frase engraçada. Mãe é nunca acabar de ser.
Mirian mudou completamente o rosto. Está mansa, ela que é conhecida pela rondas entre nomes e novidades. Permanece no mesmo assunto sem nenhuma indisposição. Aguarda que eu termine a pontuação para comentar algo. Fico até intrigado, logo ela afeiçoada à sobreposição de temas e gula insaciável por fofocas.
Achou em si uma serenidade que poucos conhecem. A maternidade é a mais rigorosa espera que há na vida. Depois dela, a gente percebe que o amor platônico da adolescência era superficial. A distância entre as gerações era superficial. Qualquer frustração era superficial.
Uma ilha deserta torna-se insignificante diante do oceano ilhado.
Não estou me referindo à gestação, aos nove meses, à laboriosa arquitetura do quarto, das roupas, da véspera.
A paciência começa agora quando Artur nasceu. É conviver com alguém que não expõe diretamente o que procura e exige nossos rompantes de adivinhação. O bebê se expressa pelo choro. E o choro não é sempre igual. Ele se comove pelo riso, pode ser cócegas. Existem tantas nuances em seus lábios como o leque para o teatro Nô ou as castanholas para a dança flamenca.
Toda mãe gostaria que o filho já falasse. Mas não adianta: ele não fala. Não irá pedir leite, não irá comentar que dormiu mal, não recomendará que se desligue a televisão ou que os pais parem de drama. Não dá para saber se está doendo, se está confortável, se está aquecido, se está com fome, se está incomodado. Deve-se tentar uma coisa e outra, as coisas ao mesmo tempo. Pega-se no colo para conferir a reação, deita-se no berço para controlar o movimento.
É possível montar um histórico dos sinais. Debruçar-se em seus braços indefesos, prevendo uma sequência, um ritmo, uma melodia. Formular uma continuidade dentro das necessidades. É possível criar horários, colher hábitos e condicionamentos, porém nunca ter certeza absoluta do que ele sente. É dormir com a incompreensão do cuidado: Será que ele vive feliz? Trata-se de uma solidão curiosa, uma espécie de incomunicabilidade comunicativa: oferecer tranquilidade ao não desfrutar da própria tranquilidade.
O desejo é ouvir um par de vocábulos para se acalmar. Um aviso de que corremos no caminho certo, de que somos vocacionados; um pouco desajeitados, mas vocacionados.
A vontade é que a criança declare publicamente que é amada.
Não acontece, não vai acontecer.
Pela primeira vez, somos absolutamente incompetentes. Tanto faz se a mãe é aeromoça ou diplomata e conversa em cinco idiomas. Temos que recuar aos gestos e inclinar o corpo para atender uma urgência. Recuar para a absoluta falta de palavras.
O bebê está encarando e pedindo uma solução. E agora? Não é adequado chamar a avó, minuto a minuto, para nos acudir. E agora? Experimenta-se um misto de precipitação e generosidade. Talvez a precipitação seja generosa. Talvez seja loucura de nossa parte, ansiedade, inventamos casualidades e o menino apenas se espreguiça na colcha fofa.
É fazer um gesto e ver que não é aquilo, armar um novo gesto e não ser aquilo. A mãe recente é uma mímica acenando com os cílios para aviões.
Mirian irá se acostumar com o silêncio. Cada vez mais. Descobrirá que ouvir não é entender. Entender depende do esforço da imaginação. Seu filho já tem o que precisa: uma boca para ler.
Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 127, Número 200
Julho de 2010
11 comentários:
Recuar para a absoluta falta de palavras... é assim que vivo com minha filha tem 4 anos e meio. Ela tem Sindrome de Down, e fala muito, muito pouco, uma coisinha simples vez ou outra, e quando quer.
Me dói um pouco quando vejo filhos dos amigos com 2 anos já tagarelando. Sonho com o dia de estabelecer diálogos com a minha filhota, acho que a gente vai se divertir muito, conversar muito!
Que lindo! Que sensibilidade! Parabéns!!
Fui lendo e assistindo em filme, meus últimos 5 anos. Por que o tempo passa, as palavras vêm, o bebê deixa de ser bebê para os outros, mas jamais para uma mãe. As incertezas sobre os choros e risos incompreendidos apenas mudam de figura, há novos choros e risos, alguns compreendidos no som, mas não na ocasião, outros novos de tudo. Depois que a maternidade chega, nada é velho, nada é sabido. Tudo é um recomeço, uma busca, um mistério a ser desvendado. E o filho torna-se o que precisamos: uma boca para ler!
Beijos.
Ok, o bebê, quando nasce é uma incógnita, uma carinha fofa com um grande ponto de interrogação para a maioria de nós, acostumados com a praticidade e a velocidade do dia a dia.
É um serzinho pequeno, uma página em branco, com tudo a aprender ou ensinar.
Mas não existe nada, absolutamente nada melhor do que aprender, observando, experimentando o cotidiano da nova pessoa que passa a fazer parte da nossa rotina.
Cada dia uma descoberta. Todos os dias uma novidade.
Ter filhos é viver o dilema do orgulho de vê-los aprender e se desenvolver e o medo de perdê-los com a independência que todo esse aprendizado proporciona.
Quanto a falar, nem todas as pessoas tem o mesmo tipo de habilidade em comunicação. Alguns são bons na palavra escrita, outro na palavra falada e outros ainda, nem precisam de palavras.
A nós, cabe a tarefa de aprender a 'ler' todas elas e mais ainda, aprender a ler as famosas entrelinhas.
Abraços,
Cláudia
Adoro quando alguém consegue escrever o que a gente sente. Parabéns. Amo sua coluna na CRESCER.
Nunca li uma definição tão perfeita! Tanto que me faltam palavras pra comentar... Apenas a emoção que a tecnologia ainda não me permite mostrar.
beijos na alma
Layla Barlavento
culpapdowalter.blogspot.com
Tenho receio da minha reação diante do primeiro filho. Estremeço, só de pensar. Mas te leio e vejo a poesia por detrás dos risos, dos silêncios e dos choros e sinto minha vontade de ser mãe resurgindo lá do fundo.
Tens um dom inexplicável para as palavras e eu adoro tudo que vem de você. Obrigada por me inspirar.
Abraço.
E aí amigão!
Qdo é que vc vai escrever sobre o nó na nossa cabeça, os pais?????
Parabéns pelo texto!
POESIA DA MANHÃ
by Ramiro Conceição
Efetivamente,
não terei casa,
pois a que tenho
é debaixo do cabelo
humano, demasiado
humano.
Meu jardim dos castanhos
será o que verei, vejo e vi:
uma celebração do existir!
Assim,
ao amor – bem-vindo,
estarei sempre inteiro,
mais apto à passagem
de nascer,
de viver e de morrer
à Poesia – da manhã.
Então quando do escuro
onde o senhor é o medo
da certeza de – se ser só:
terei ainda a alegria de pentear
o olhar de quem estiver ao lado
e dizer “obrigado, por te amar!”.
Clarice Lispector escreveu que "mãe é não morrer".
Acho isso fantástico.
Caramba! Uma sensibilidade gigantesca! Lindo, lindo, lindo. Aliás, como sempre. :)
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