quinta-feira, 8 de julho de 2010

OUVINDO CONCHAS

Para Cínthya Verri
Arte de Miró


Uma amiga acabou de ser mãe. Frase engraçada. Mãe é nunca acabar de ser.

Mirian mudou completamente o rosto. Está mansa, ela que é conhecida pela rondas entre nomes e novidades. Permanece no mesmo assunto sem nenhuma indisposição. Aguarda que eu termine a pontuação para comentar algo. Fico até intrigado, logo ela afeiçoada à sobreposição de temas e gula insaciável por fofocas.

Achou em si uma serenidade que poucos conhecem. A maternidade é a mais rigorosa espera que há na vida. Depois dela, a gente percebe que o amor platônico da adolescência era superficial. A distância entre as gerações era superficial. Qualquer frustração era superficial.

Uma ilha deserta torna-se insignificante diante do oceano ilhado.

Não estou me referindo à gestação, aos nove meses, à laboriosa arquitetura do quarto, das roupas, da véspera.

A paciência começa agora quando Artur nasceu. É conviver com alguém que não expõe diretamente o que procura e exige nossos rompantes de adivinhação. O bebê se expressa pelo choro. E o choro não é sempre igual. Ele se comove pelo riso, pode ser cócegas. Existem tantas nuances em seus lábios como o leque para o teatro Nô ou as castanholas para a dança flamenca.

Toda mãe gostaria que o filho já falasse. Mas não adianta: ele não fala. Não irá pedir leite, não irá comentar que dormiu mal, não recomendará que se desligue a televisão ou que os pais parem de drama. Não dá para saber se está doendo, se está confortável, se está aquecido, se está com fome, se está incomodado. Deve-se tentar uma coisa e outra, as coisas ao mesmo tempo. Pega-se no colo para conferir a reação, deita-se no berço para controlar o movimento.

É possível montar um histórico dos sinais. Debruçar-se em seus braços indefesos, prevendo uma sequência, um ritmo, uma melodia. Formular uma continuidade dentro das necessidades. É possível criar horários, colher hábitos e condicionamentos, porém nunca ter certeza absoluta do que ele sente. É dormir com a incompreensão do cuidado: Será que ele vive feliz? Trata-se de uma solidão curiosa, uma espécie de incomunicabilidade comunicativa: oferecer tranquilidade ao não desfrutar da própria tranquilidade.

O desejo é ouvir um par de vocábulos para se acalmar. Um aviso de que corremos no caminho certo, de que somos vocacionados; um pouco desajeitados, mas vocacionados.

A vontade é que a criança declare publicamente que é amada.

Não acontece, não vai acontecer.

Pela primeira vez, somos absolutamente incompetentes. Tanto faz se a mãe é aeromoça ou diplomata e conversa em cinco idiomas. Temos que recuar aos gestos e inclinar o corpo para atender uma urgência. Recuar para a absoluta falta de palavras.

O bebê está encarando e pedindo uma solução. E agora? Não é adequado chamar a avó, minuto a minuto, para nos acudir. E agora? Experimenta-se um misto de precipitação e generosidade. Talvez a precipitação seja generosa. Talvez seja loucura de nossa parte, ansiedade, inventamos casualidades e o menino apenas se espreguiça na colcha fofa.

É fazer um gesto e ver que não é aquilo, armar um novo gesto e não ser aquilo. A mãe recente é uma mímica acenando com os cílios para aviões.

Mirian irá se acostumar com o silêncio. Cada vez mais. Descobrirá que ouvir não é entender. Entender depende do esforço da imaginação. Seu filho já tem o que precisa: uma boca para ler.




Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 127, Número 200
Julho de 2010

11 comentários:

Carola disse...

Recuar para a absoluta falta de palavras... é assim que vivo com minha filha tem 4 anos e meio. Ela tem Sindrome de Down, e fala muito, muito pouco, uma coisinha simples vez ou outra, e quando quer.

Me dói um pouco quando vejo filhos dos amigos com 2 anos já tagarelando. Sonho com o dia de estabelecer diálogos com a minha filhota, acho que a gente vai se divertir muito, conversar muito!

Lourdes Tayt-Sohn disse...

Que lindo! Que sensibilidade! Parabéns!!

Tati disse...

Fui lendo e assistindo em filme, meus últimos 5 anos. Por que o tempo passa, as palavras vêm, o bebê deixa de ser bebê para os outros, mas jamais para uma mãe. As incertezas sobre os choros e risos incompreendidos apenas mudam de figura, há novos choros e risos, alguns compreendidos no som, mas não na ocasião, outros novos de tudo. Depois que a maternidade chega, nada é velho, nada é sabido. Tudo é um recomeço, uma busca, um mistério a ser desvendado. E o filho torna-se o que precisamos: uma boca para ler!
Beijos.

Unknown disse...

Ok, o bebê, quando nasce é uma incógnita, uma carinha fofa com um grande ponto de interrogação para a maioria de nós, acostumados com a praticidade e a velocidade do dia a dia.
É um serzinho pequeno, uma página em branco, com tudo a aprender ou ensinar.
Mas não existe nada, absolutamente nada melhor do que aprender, observando, experimentando o cotidiano da nova pessoa que passa a fazer parte da nossa rotina.
Cada dia uma descoberta. Todos os dias uma novidade.
Ter filhos é viver o dilema do orgulho de vê-los aprender e se desenvolver e o medo de perdê-los com a independência que todo esse aprendizado proporciona.
Quanto a falar, nem todas as pessoas tem o mesmo tipo de habilidade em comunicação. Alguns são bons na palavra escrita, outro na palavra falada e outros ainda, nem precisam de palavras.
A nós, cabe a tarefa de aprender a 'ler' todas elas e mais ainda, aprender a ler as famosas entrelinhas.

Abraços,

Cláudia

evary leal disse...

Adoro quando alguém consegue escrever o que a gente sente. Parabéns. Amo sua coluna na CRESCER.

Layla Barlavento disse...

Nunca li uma definição tão perfeita! Tanto que me faltam palavras pra comentar... Apenas a emoção que a tecnologia ainda não me permite mostrar.

beijos na alma
Layla Barlavento
culpapdowalter.blogspot.com

Mafê Probst disse...

Tenho receio da minha reação diante do primeiro filho. Estremeço, só de pensar. Mas te leio e vejo a poesia por detrás dos risos, dos silêncios e dos choros e sinto minha vontade de ser mãe resurgindo lá do fundo.

Tens um dom inexplicável para as palavras e eu adoro tudo que vem de você. Obrigada por me inspirar.

Abraço.

Rgaranhani disse...

E aí amigão!
Qdo é que vc vai escrever sobre o nó na nossa cabeça, os pais?????
Parabéns pelo texto!

Ramiro Conceição disse...

POESIA DA MANHÃ
by Ramiro Conceição


Efetivamente,
não terei casa,
pois a que tenho
é debaixo do cabelo
humano, demasiado
humano.

Meu jardim dos castanhos
será o que verei, vejo e vi:
uma celebração do existir!

Assim,
ao amor – bem-vindo,
estarei sempre inteiro,
mais apto à passagem
de nascer,
de viver e de morrer
à Poesia – da manhã.

Então quando do escuro
onde o senhor é o medo
da certeza de – se ser só:

terei ainda a alegria de pentear
o olhar de quem estiver ao lado
e dizer “obrigado, por te amar!”.

Ana SSK disse...

Clarice Lispector escreveu que "mãe é não morrer".
Acho isso fantástico.

Marcela Babini disse...

Caramba! Uma sensibilidade gigantesca! Lindo, lindo, lindo. Aliás, como sempre. :)