Arte de Lasar Segall
A vontade é de abandonar o trabalho, não acordar mais, definhar abraçado ao travesseiro, encolher-se no canto e não erguer nem mais o braço para atender a porta e pedir ajuda.
Nada tem mais sentido, e ordem.
A vontade é de não ter mais vontade.
Os filhos morreram, os irmãos morreram, os colegas morreram.
Eu entendo.
Entendo que vocês levantarão, sobressaltados, às duas horas de todas as madrugadas de suas existências, que haverá sempre uma sirene abrindo as ruas do sangue, que será insuportável raciocinar diante de um alarme dos bombeiros ou de ambulância lá fora.
Entendo que a casa está vazia, como a cidade está vazia, como o corpo está vazio.
Mas não podemos chorar a morte dos familiares se não valorizarmos nossa vida.
Entendo que não será mais a vida idealizada, não será mais a vida planejada, não será mais a vida que merecíamos.
Mas ainda que seja uma vida desesperada, uma vida atormentada, uma vida traumatizada, ainda é a nossa vida.
Ainda é a vida que ficou.
Ainda a vida que temos que cuidar.
Ainda é a vida que temos que salvar.
Afinal, nossa vida era tudo o que a gente pretendia assegurar para eles que se foram na boate Kiss.
Gostaríamos que os duzentos e trinta e sete jovens estivessem com a gente, então não podemos nos jogar fora. Não podemos esnobar a chance de estar aqui.
Continuar a viver é preservá-los.
Continuar a viver é sabedoria.
Continuar a viver é fé.
Continuar a viver é humildade.
Continuar a viver é respeito: é não ser mais vítima do que as vítimas, por mais que doa doer o dia inteiro.
É imperioso cortar o cordão umbilical da Rua dos Andradas, abolir as hipóteses: se eu tivesse proibido meu filho de sair, se eu tivesse viajado com a família, se eu tivesse telefonado antes, se eu tivesse sido mais rigoroso...
O “se” não devolve o que perdemos, nem diminui o sofrimento.
A culpa não deve abafar a justiça, o medo não deve sufocar a esperança.
Não há como controlar o destino. A tragédia não aconteceu porque vocês falharam. Vocês, familiares, não teriam como evitá-la.
O que sobra é amar a si para explicar o que é amor, para explicar o que é saudade.
O que nos resta é a responsabilidade de lembrá-los com garra. De lavar as escadarias das igrejas com flores. De ir adiante para que esse incêndio criminoso nunca mais se repita em nenhum lugar do mundo deste Brasil.
Que nossos filhos de Santa Maria jamais morram para a História.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17334
4 comentários:
Carpinejar,
A escritora Hilda Lucas deu uma entrevista no site "MdeMulher" por ocasião do lançamento do seu livro "Memórias Líquidas". Nessa entrevista ela disse uma das falas mais bonitas a respeito da morte: -“a única maneira de alguém que perdeu um ente querido superar a dor é abraçar a vida com unhas e dentes, enfrentar a morte, olhá-la nos olhos, perder o medo de viver/morrer e ousar ser feliz de novo; senão, você reduz a morte daquela pessoa ao único acontecimento importante da vida dela. E quem viveu o suficiente para deixar dor, saudade e boas lembranças fez muito mais em vida do que apenas morrer”.
Esse livro conta a história da morte de uma adolescente e como esse fato afetou a vida dos seus amigos e familiares. Um tema sobre um assunto mórbido, mas escrito com uma delicadeza ímpar. Bjs
PS: O mundo não seria o mesmo sem você. Obrigada, por existir!
Muito bom! Li e reli mais duas vezes esse texto. Desistir de ser feliz e cultivar qualquer dor por muito tempo é morrer estando vivo.
his info is very good really,,,,,,,,
Perdi um grande amigo e primeiro amor, dias antes da tragédia de Santa Maria.
A dor é grande. O "e se" interminável. Mas parar na pista não vai adiantar.
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