quarta-feira, 31 de março de 2010

CUIDADO COM AS MINHAS CUECAS

Arte de Tereza Yamashita


Complicado testemunhar um homem trocando de roupa, indeciso com suas opções, dando meia-volta no quarto, suplicando “só um minutinho, amor”. Ele escolhe um conjunto de cara e não se arrepende. Voltará somente sob pressão popular ou por problemas técnicos, se realmente alguma peça não serve, a camisa está manchada, caiu um botão ou a calça arrebentou a braguilha.

Não há nenhum dano neste comportamento. Revela sua vontade imperiosa de não ser cobrado pela aparência. Põe o desleixo na conta da pressa.

O que tem sérias consequências no comportamento masculino é o descaso com as cuecas. Já é piada que homem somente compra quando tem uma amante.

Mas a calamidade temperamental não está em comprar ou não, mas em nunca jogar fora. Olhe a gaveta do seu namorado ou marido, é natural encontrar cueca de quando ele tinha oito anos. Um pouco mais e acharia fraldas. Seu parceiro confia na desintegração do tecido, no Triângulo das Bermudas, na sucção dos objetos pelos gnomos.

Tanto que é um elogio chamar de gaveta a própria gaveta, refere-se a um museu de pano. Uma caixinha de cueiros, com espécimes descoloridas, puídas, esgarçadas, autênticos sudários da sexualidade. Nem precisa perguntar sobre seu passado, ele está intacto no armário. O marmanjo joga ali e esquece. Não se despede de nenhuma intimidade, sempre abandona.

Não propõe uma faxina ou uma limpa, não reconhece a cueca como vestimenta, é uma fatalidade. Seu desejo é voltar a ser Adão com folhas de parreira. Não toma esta atitude primitiva porque a planta revelaria o tamanho do seu documento.

Ele sequer dobra o tecido, como a mulher empreende sutilmente com a calcinha. Não busca o capricho da coleção. Não estende ao artigo o refinamento do mulherio com a peça de cima. Uma cueca é amassada, enfiada de qualquer jeito. Já o sutiã dorme de conchinha com as duas alças encaixadas.

Homem nem supõe o preço, não guarda nota, não reclama do valor. É o raro produto que não pechincha. Compra em saquinhos de cinco ou seis, para se livrar da tarefa. Arrebata o varal inteiro numa promoção. Não analisa a costura, não se submeterá a experimentar em loja. Nenhum macho testa cueca em provador, é quase um rebaixamento moral. Compra em segundos para pensar no assunto seis meses depois, evidente que nunca por iniciativa própria, mas para se defender das críticas. Mulher já renova a lingerie e, simultaneamente, lança as antigas no lixo, curada do dó e da piedade.

Tamanha sua indiferença, o homem somente descobre a cueca que vestiu no final do dia ou no momento de transar. No baú de inutilidades, se as menos gastas estão lavando, o varão toma a primeira da fileira de cima. Não confere os modelitos, apanha o tecido pela cor. Ele nunca estranhará o sumiço de uma, pois sequer registrou sua chegada. Algo inadmissível para a ala feminina, que prefere sair sem nada a contrair juros da deselegância.

O hábito pode resumir um desprezo, uma avareza emocional ou uma dependência materna. Que as patroas nos perdoem, a cueca é nossa única humildade.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 30 de março de 2010

A GINGA DA LITERATURA



Armando Nogueira morre aos 83 anos. Ele não foi o que foi porque teve a chance de testemunhar Pelé e Garrincha. Pelé e Garrincha foram o que foram porque tiveram a sorte de contar com a escrita dele.

Leia minha homenagem.

segunda-feira, 29 de março de 2010

ROMÂNTICO DEMAIS

Rolo Compressor apostava em Jorge Fossati, um nome culto e educado, leitor da boa prosa uruguaia, para organizar o Inter. Mas não deu: seu destino é de Werther, morte por desilusão amorosa.

Leia nosso obituário.

sexta-feira, 26 de março de 2010

VICENTE E MARIANA



Meus filhos não são impossíveis, eles me tornam possível.

Há segredos de Mariana que Vicente sabe, há segredos do Vicente que Mariana sabe. Não sei de nenhum dos segredos e não sinto falta. Eles se bastam.

Sou pai e meu trabalho é fazer com que eles se defendam de mim, inclusive de minha paixão por eles, que não é pouco.

Mariana tem 16 anos e fica uma criança ao lado do caçula. O caçula tem 8 anos e fica um adolescente ao lado de sua mana. Trocam as fases com facilidade. Eles me enganam com suas frases espirituosas.

A árvore tem frutos para poder voar. Temos idades diferentes para não morrer.

Mariana decidiu pintar o cabelo de vermelho. Vulcânico. Vicente decidiu que seu cabelo irá crescer. Vendaval. Uma atitude é ligada à outra. Complicado definir quem segue o exemplo de quem. Eles dividem um quarto virtual, o blog, radiomilpontozero.blogspot.com, para trocar suas canções prediletas.

Mariana toca violão, Vicente é que dirige seus videoclipes. Quando estão juntos nas férias, atravessam a noite conversando. Eu finjo que estou dormindo. Não vou atrapalhar se não há escola. Estou errado, mas é um erro emocionado.

Vicente me explicou como fazer para interromper a tristeza da Mariana. "Conversa sobre signos com ela, pai". Ele decorou os horóscopos para dar colo às suas dores.

Mariana me explicou como distrair o choro do Vicente. "Fale sobre as raças de cachorros, pai." Mariana estudou a fundo os pedigrees para passear com a angústia do menino.

Ambos me chamam de "Pánceps". Tento fazer barriga para honrar o apelido.

Eles guardam uma mãe em comum, apesar das mães diferentes: a amizade.

Fácil identificar quando os filhos se amam. No momento em que aprontam. A bagunça detém o mistério da cumplicidade.

Não se entregam, nunca se denunciam. Não importa a pressão. São leais no tropeço. Não consigo ficar brabo. Estou errado de novo. Deliciado com o improviso, ouço um completar a história mais maluca do outro.

Num dia de palestra, eles ficaram com a avó. Meia-noite e recebo a ligação materna, incapaz de controlar a felicidade dos dois.

- Eles não me respeitam. O Vicente está com um abajur na cabeça fingindo que teve ideias geniais.
- O que , vó?
- Isso, ele falou que a eternidade não dorme.
- Depois a gente se fala, tá?

Meia-noite e meia e Vicente me liga.

- A gente só estava brincando.
- Precisam respeitar a avô?
- Tá, mas posso te contar....

Meia-noite e quarenta e Mariana me chama.

- Não foi bem assim.
- Mari, não força a barra. Cuida da avó que está velha.
- Tudo bem, mas não é justo. Posso te contar....
- Ok, mas desliga a cabeça do Vicente, por favor!

Repetiram exatamente a mesma versão. Igual até nos engasgos. Não sou bobo, aquilo que é ensaiado é mentira. Mas eles não escondem a verdade, protegem e cuidam da verdade melhor do que eu. Um dia vão me devolver.

Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 119, Número 196
Março de 2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

PESSOA PREDILETA

Arte de Tereza Yamashita


Sou barman da memória.

Misturo as bebidas, as lembranças e giro de um lado para outro tentando entender. Dependendo do que vejo, sou capaz de dançar.

Minha primeira vez com a Cínthya, não recordo o que tomei, nunca consegui repetir. Permaneço com ela somente para descobrir a receita. É mentira, já estou brincando porque estou emocionado. Costumo fazer isso: brincar quando estou nervoso, brincar quando estou desesperado, brincar quando estou angustiado, o que me torna um homem aparentemente bem-humorado. Se não fosse minha cultura, dançaria sertanejo. E sertanejo universitário, para mostrar com que copo derramado você vem conversando.

Não desejava amar de novo. Acabava de me separar. Experimentava um pavor corajoso, o mesmo que sentia de pequeno, quando tinha que atravessar o pátio escuro correndo, correndo acelerado, para buscar a bola abandonada na grama.

Fui trocar prosa fiada com um grande amigo no bar. Mandei um torpedo antes para Cínthya, de quem somente conhecia a voz ao telefone, avisando que estaria no Apolinário. Ela desenhou camisas com minhas crônicas. Um trabalho artesanal para oferecer de presente aos amigos.

Ela veio em quinze minutos, meu amigo não acompanhou o relâmpago. Imaginei que conversaria com uma fã, alguém que gostava do meu estilo, que inflamaria a vaidade. Mas não. A gente começou a discutir a ponto de fazer uma queda de olhos mais do que de braço.

O amigo se isolou, assistia ao entrave como a uma partida de tênis, cuidando os arremessos na marca. Logo desistiu e pagou sua parte na conta.

Não que ela fosse truculenta. Pelo contrário, educada e delicada, tomada de uma fragilidade de quem prende a respiração e tira vidro da pele. Havia uma leveza em seus cabelos, um vento próprio, a impressão é que andava com um pajem em suas costas. Vá que seu anjo seja um pajem.

Luminosa, aérea, linda em seu despojamento, percebia nela uma pobreza de paraíso. Ela era toda essencial, não se conseguia roubar coisa alguma de seu temperamento. Não usava nenhum vestido, não apareceu produzida, estava de jeans e uma camisa básica, sem pintura. Como se fosse descer para pegar uma carta em seu edifício. Não me concedeu importâncias de visita.

Aquele primeiro encontro é incompreensível mesmo. Não criamos nenhuma cumplicidade imediata, nenhuma sintonia evidente; cortejamos o deboche. Os garçons não diriam que ficaríamos juntos, apostavam 3 por 1 que não sairíamos no mesmo carro. Nem nós. O destino escreve rápido e esconde a folha. Mudo a cena, viro de cabeça para baixo e não capturo o que nos aproximou. Por quê?

Talvez o riso dela, que aumentava a altura do teto. Talvez a boca límpida, que não sobrava em nenhuma palavra. Ou sua capacidade de se devotar a cada frase com “o quê?” como se não houvesse escutado para ganhar tempo do revide.

Ela foi lavar as mãos e me aproximei e passei a lavar seus braços, seu rosto, a ensaboá-la, nem pensando em como receberia meu gesto, se me afastaria com violência ou aceitaria mansamente a minha loucura. Naquela hora, eu queria dar banho nela. Naquela hora, esqueci o lugar. Esqueci que estava cheio. E beijá-la era beijar sua pálpebra por dentro.

Somos tão diferentes e tão apaixonados. Ela tem disciplina, eu tenho obsessões. Eu guardo minhas culpas no desejo e distribuo desculpas. Ela odeia culpa e não perdoa. Sou alucinado por casamento, ela jura que é cativeiro. Cansamos com frequência, não aceitamos fácil um ponto de vista, não falamos amém para uma teoria ou uma descoberta, o que é estranho para mim depois de imprevisíveis metáforas. Convivemos com réplica, tréplica, uma curiosidade infinita pelo avesso. Não convivemos com o suspiro, porém com o soluço. O soluço é o nosso suspiro. O soluço é o suspiro da discussão.

Ela tem um medo assombroso de mim, do quanto posso feri-la. Eu tenho um medo danado dela, porque é bem capaz de viver sem mim. A linda cretina nunca disse que não vive sem mim, acredita? Nunca, nem dormindo…

O amor dela é tranquilo, imutável, o meu é para agora, renovável. Ai se ela não demonstra apego numa tarde, mergulho em surto. Ela não depende de jura e declarações, está bem assim, cercada de um silêncio atento, sabendo que a amo. Quando preciso dela, ela supõe que é drama e mais uma artimanha para ser o centro dos acontecimentos. Quando ela precisa de mim, eu deduzo que ela procura se afastar e perdeu o interesse. Já brigamos no carro, no elevador, no shopping, acordamos vizinhos, assustamos os donos e seus cães na rua e insistimos e nos perdoamos porque somos tão apaixonados.

Existem enigmas guardados na pequena mesa de um bar da Cidade Baixa. O enigma é o futuro do segredo. Muito mais do que poderia beber naquela noite. Muito mais do que poderia conservar numa vida. Muito mais do que possuo condições de antecipar pela minha ansiedade.

A esperança pode vencer a experiência. A esperança é uma experiência.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 23 de março de 2010

O PRECONCEITO QUE AINDA EXISTE NO RS

Palestra com Pedro Juan Gutiérrez, 13/10/2008
Fronteiras do Pensamento, Salão de Atos da UFRGS

To: carpinejar@terra.com.br
Sent: Tuesday, March 23, 2010 7:39 PM
Subject: Vergonha


Ficamos muito indignados com o que vimos hoje na TV. Estava um cidadão ao microfone, devidamente pilchado e para nossa surpresa, com as unhas da mão esquerda pintadas, feito uma mulher! Por favor Sr Carpinejar, tenha mais respeito com o nosso Rio Grande. Um estado diferenciado, um estado com tradições e façanhas como nenhum outro desta Nação. Tenha mais respeito com os filhos do RS. O que será que nossos antepassados estão comentando, a esta hora com esta tua atitude? Sempre respeitei muito tuas obras, porém a partir de agora?????

Eduardo
Porto Alegre RS

POSTAIS POÉTICOS

Arte de Gabriel Martins


TWEETS

Quem erra ao se apaixonar só pode corrigir amando.

Não sair do lugar chama mais a atenção do que correr como um louco. A árvore é naturalmente escandalosa.

Já pensou na frustração do morcego? Todo mundo espera um pássaro.

Cócegas é quando o corpo conta piada.

Podemos chegar atrasados nas próprias lembranças.

Do livro www.twitter.com/carpinejar (Bertrand Brasil, 2009)

Publicado na Revista Vida Simples
Edição 91, abril de 2010, p. 82

segunda-feira, 22 de março de 2010

O PASSADO DO PERFUME

Arte de Magritte

Brinquedo de verdade unicamente no aniversário e nas datas festivas.

Extravasava minha infância com brinquedos de mentira. Na época, criança significava o que havia de mais avançado em lixo reciclável. Acolhia produtos, potes e latas para criar cidades em miniatura e povoar minha imaginação. Tudo o que acabava para os pais ressuscitava em minhas mãos. Não foi uma vez que a mãe me entregou uma embalagem de sabonete: olha que bonito, quer ficar?

Eu ficava e embrulhava o olfato. Gostava de receber os frascos dos perfumes, minha oferenda predileta. Ainda mais que vinha o refil para borrifar, potente como uma pistola de piscina. Eu chegava a gastar o perfume paterno no ar para logo ganhar o recipiente. Apressava seu uso. Não existia banheiro mais cheiroso do que o nosso.

Sobrava um resto de fragrância, cerca de um milímetro dos cinquenta iniciais, justa a medida que o canudo não alcançava. Eu me encarregava de misturar com xampu e água. E passava no pescoço e nos pulsos para ir à escola. Confiava que tinha restaurado o conteúdo. Não me constrangia de ser só vapor. Transbordava a seco. Forçava as narinas a descobrir o espírito do vidro, a fingir que nada mudou desde a compra.

Mantinha uma caixa especial com os perfumes que nunca terminavam. Quando atingia a seca, recarregava da torneira e voltava a fingir pólen. Meu quarto era um free shop mais barato do mundo.

Acho que sou o igual na vida pessoal. Um pouco de cheiro e trato de encher o resto. Conservei a herança. Sofro muito diante de posturas secas e anti-românticas. Armo os olhos a surpreender e ser surpreendido e depois sereno as frustrações.

Deliro que sou desnecessário, talvez seja. Incomoda-me a minha gula, o nível de exigência, já cogito que devo ser louco, daqueles perfis inclassificáveis, em que a carreira não é mais importante do que o namoro. Posso aguentar a semana inteira trabalhando, desde que partilhe um final de semana de juras mútuas. Não pretendo descansar, e sim trabalhar a delicadeza. Se fosse para estar sozinho, não pagava a pensão e terminava preso.

O que me comove são os programas em comum: assuntar coladinho, despistando os problemas e repetindo as declarações óbvias por todo sábado e domingo. Sou um retardado afetivo, que me diga que me ama sem parar. Pelo menos, não conheci um retardado acabrunhado.

Não vejo maior arrebatamento do que alguém perguntando o que desejo fazer. Curtir a sequência de agrados até dormir com profunda nostalgia e levantar com desgosto diante do alarme. Quem não acorda ranzinza na segunda-feira não foi feliz no final de semana.

Mas o relacionamento está em baixa. Permitimos a companhia desde que nosso par não invente de existir e atrapalhar. Somos capazes de nos dedicar mais aos amigos do que à própria mulher. Nem percebemos, são distrações imaginárias. Se surge uma fresta de duas horas no serviço, não ventilamos a possibilidade de telefonar para a namorada e convidá-la repentinamente ao cinema ou a um motel. Geramos tarefas nas tarefas para justificar o tempo tomado. A indiferença é involuntária, até moderna, charmosa, atraente. Tenho consciência do meu perecimento, exalo antiguidade, ando curvado sobre a vaidade como um animal pré-histórico. O individualismo é apelidado de independência e qualquer um que ameaçá-lo será comparado a Fidel. Ninguém mais confessa que se vestiu para o outro, por exemplo. A gente diz que se veste para nos agradar e pronto, que se dane o mundo.

Eu acredito sinceramente que, ao morrer, não terá sido em vão se minha mulher confessar que não houve quem a divertisse tanto. É mais uma crença idiota.

Meu perfume acaba e abasteço o pote novamente. Só eu sei que é água. Mesmo dentro do relacionamento, grande parte do amor permanece platônico.

sexta-feira, 19 de março de 2010

ACÁCIA OU EUCALIPTO?

Para o amigo Gabriel

Arte de Helen Frankenthaler


Não adianta ser fiel ao outro se a gente não é fiel a si. Mas não é simples assim: arenoso descobrir a nossa própria natureza e aceitá-la. Conhecer-me significa também não gostar daquilo que sou e ter que passar o resto da vida ao meu lado.

Até hoje eu só me amei por amor platônico. Nunca tive coragem de me aproximar. Escrevia cartas, fazia elogios, me criticava, mas sempre controlado, contido, parava quando me julgava ameaçado.

Não subestimo a força do engano. Talvez seja leal ao que meu pai queria ou ao que a minha mãe desejava ou ao que jurei ser a melhor solução para conseguir aprovação da turma. Quem diz que não gastei uma vida inteira para atender aos anseios dos demais e ainda não descobri as minhas ambições. Quem diz que não segui escrevendo porque um dia a maldita professora da 4ª série me chamou de escritor e não gostaria de decepcioná-la, muito menos ofender sua intuição.

Minha voz não é aquela que eu escuto. Meu rosto no espelho não é aquele que as pessoas enxergam. Meu beijo não está na minha boca.

Posso ser generoso pelo egoísmo. Posso ser amoroso pela tirania. Posso ser educado pela vergonha. Vê só o quanto uma virtude esconde uma maldade. Eu sou o resultado ou a origem daquilo que cumpro? O que tem peso maior: minha vontade ou o ato?

Ao me doar para uma mulher, não desfruto de condições para prometer coisa nenhuma, pois nem defini o que eu mesmo me ofereço.

De repente, vou me trair e ser fiel no casamento. Ou trair uma relação e ser fiel a mim. Antes deveria cuidar de ser monogâmico comigo.

Viajava pelo interior do Rio Grande do Sul, com o rosto cochilando na vidraça do ônibus. De música de fundo, escutava histórias de boiadeiros sobre acácia e o eucalipto, um grande dilema das plantações. Ao escolher a acácia, é natural deixar o gado debaixo das árvores. Ao plantar eucalipto, não haverá terreno propício ao pasto, ele é arrogante, absorve a água dos arredores, elimina a concorrência e suga a terra com gula.

Diante do impasse, logo problematizei: sou acácia ou eucalipto?

A acácia se oferece inteira, é mais familiar, caseira, procura um ideal de família e casa, transmuda-se em telhado e alimento aos animais. É recomendada pela sua renúncia, admirada pelo sacrifício voluntarioso. Quanto mais se anula mais aparece. Ampara o amadurecimento do conjunto, socorre carências. Em compensação, dura menos, de 7 a 10 anos. E não sobe muito, tem uma altura própria para recolher as crianças em seus galhos. Ela abdica de grandes vôos para acompanhar de perto os passos em sua folhagem.

O eucalipto é individualista, confiante, não se afeiçoa às carências do lugar, segue sozinho, desafia os próximos a obedecer seu ritmo, não irá recuar para confortar o solo e os bichos. Usa o que precisa, aproveita o contexto e se despede para o céu. Atinge uma altura muito superior à acácia e dura de 25 a 30 anos. Porta-se com o descaso de estrangeiro, como realmente é; um artista do vento, flautista das folhas, disposto a render um espetáculo e espalhar suas raízes para atrapalhar a soberania das pedras.

Previsível que todo mundo afirmará que é acácia. Para não frustrar a expectativa amorosa de entrega incondicional. Alguns, como eu, tratarão de pensar que são as duas opções, mas não é verdadeiro, tenho que escolher. Somente a renúncia permitirá que valorize o que ficou. No momento em que acumulo, não sou nada, não devo nada, não me é exigido nada. Sequer posso me trair.

quinta-feira, 18 de março de 2010

VOLTANDO PARA MINHA UNIVERSIDADE

Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação/UFRGS
(Rua Ramiro Barcelos, 2705, Porto Alegre, RS)

quarta-feira, 17 de março de 2010

BOLSA-LADRÃO

Arte de Tereza Yamashita


Sofri um assalto na frente do edifício da namorada. Onze e meia da noite. Eu me atrevi a buscar a identidade esquecida na mesa da sala. Dois ladrões encostaram seu carro e apontaram um 38 para que não me mexesse. Ensaiei uma ré quando identifiquei o par suspeito de faróis na traseira. Não tive chance de nenhum movimento brusco. Um deles se aproximou ferozmente e me ordenou para abrir a janela e sentar ao lado. Desci do carro para não ser levado. Ele girava o revólver em minha cabeça. O cano como parafuso. Eu o observei lentamente: o boné, os olhos esbugalhados, a barba rala. É um pesadelo facial de que vou me lembrar ainda que reúna todas as forças para acordar.

A dupla arrebatou meu Cross Fox e desapareceu. Comecei a festejar a série de sortes dentro do azar. Fui colecionando o que poderia acontecer de pior. Se meu filho Vicente estivesse no banco de trás. Se os dois testemunhassem a minha namorada abrindo o portão — que ficou pela metade. Se a namorada decidisse descer com sua cachorra — ela partiria correndo para a rua. Se contasse na hora com a minha carteira e cartões de crédito. Se portasse meu celular mais avançado com nomes e e-mails. Se ele se assustasse com qualquer movimento da vizinhança e me ferisse como castigo.

Ainda me via abençoado porque somente roubaram o veículo e sai ileso.

Conversando com um amigo depois do acidente, ele me deixou angustiado, cheio de remorso. Advertiu das imprudências e censurou minha completa ausência de treinamento: não poderia olhar no rosto do criminoso e desobedeci suas ordens. Mais: disse que o assalto foi um milagre. Zombei dos meliantes ao não carregar dinheiro no bolso, necessário para as cervejas da fuga. Lamentou que escapei ao serviço militar na adolescência e, por isso, rompi a hierarquia. Frustrei o trabalho de coleta dos bens.

Quase chorava, minha vontade era voltar à cena do crime e pedir desculpa, deixar uma oferenda de flores e uma caixa de chocolates na rua.

No meio dos conselhos, confidenciou que guarda 197 reais em sua carteira, na hipótese de ser assaltado. O rolo de notas hiberna no fecho ao lado da niqueleira. É uma quantia que ele não toca nem usa para outro fim — seus filhos sabem e não devem desfalcar, qualquer que seja a emergência.

O amigo preserva o volume há três anos. Três anos aguardando um roubo.

O destino é sagrado, imutável. É para não irritar o trombadinha muito menos apanhar de graça. Sua obsessão atinge às raias da perfeição, a verba não é agrupada aleatoriamente, mas dividida caprichosamente em uma nota de cem, outra de cinquenta, uma de vinte, duas de dez, uma de cinco e uma de dois. Separou todas as cédulas disponíveis no Banco Central. Os números são quebrados para não ter o nariz ou as costelas quebradas. Tem lógica severa de não contrariar nenhuma das expectativas do agressor. Seu cuidado é tamanho que ele se preocupou com o troco para o crack.

Contrariou a perspectiva, não seria incomodado pelo assaltante, dada a realidade inevitável do encontro, mas se prevenia para não desagradá-lo. Preparava-se para não ofender o sacrifício e a paciência daquele sujeito armado. Não desejava que ele perdesse tempo e se aborrecesse com coronhadas e perguntas irrelevantes. Ao invés de contratar um segurança ou um guardinha, o amigo gerencia o caos com uma linha de crédito. Criou uma imprevisível propina do bem. Disciplinou o medo como um verdadeiro homem de família.

Antigamente destinávamos parte do salário para uma poupança, com o propósito de comprar uma casa ou cuidar da educação das crianças. Agora existe a reserva econômica para assalto. Dos nossos ganhos mensais, direcionamos uma comissão ao bandido. Já aceitamos que não haverá viaturas, reforço de policiais, vigilância; aceitamos que os presídios estão lotados, que os regimes são mais abertos do que amizade colorida, que o governo não mudará a insegurança. Na minha infância, os ladrões arrancavam bolsas, hoje podem receber em casa, desde que mantenham seus comparsas matriculados na escola.

Decidimos resolver, sozinhos, o problema para manter — pelo menos — a própria vida e as reuniões do condomínio. O negócio não tem fim, cada vez mais sofisticado. Logo abriremos uma conta-sequestro e apenas entregaremos o cartão e a senha.

— É para o senhor, economizei durante uma década.



Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 15 de março de 2010

DALAI LAMA JÁ FOI TENSIN GYATSO

Arte de Otto Dix


Bisbilhotava uma loja de artigos esportivos. Nenhum vendedor veio em minha direção. Corri para caçá-lo no fundo dos corredores e não desperdiçar muito tempo. Experimentava meu curto intervalo de almoço, que cada vez mais tem a duração de um café com bolachinhas Maria. Entre as araras de camisetas de times, enxerguei um senhor com a cor salvadora de atendimento, toquei levemente em suas costas, já com a bola da Copa do Mundo nas mãos:

- O preço, por favor?
- Não sei...
- Não poderia verificar...
- Não sou da loja, está me confundindo.
- Desculpe.
- Desculpa nada, vai se foder.

Eu não tinha culpa se ele saiu de casa com uma camisa polo laranja e entrou numa loja em que todos os vendedores tinham camisa polo laranja. Não fui tão cego assim. A pressa nos iguala. Mas ele ficou enfurecido, ofendido, por pouco não mordia as minhas próprias bolas. Uma confusão singela, absolutamente justificável, assumiu uma proporção de briga de trânsito. Levantou os braços tatuados para me empurrar e lavar a honra.

Ainda era um careca com rabo de cavalo. É triste um sujeito que tenta negar a calvície pelas costas. Não tem como levar a sério uma reputação com aquela trança raquítica, mais próxima de uma rédea do que de uma crina. Mostra que é avarento. Homem que não aceita perder cabelo nunca será generoso.

Tudo bem, estou me vingando agora. Como o lado mais fraco da história, eu apenas me afastei, abandonei a compra e a futura baixa no cartão de crédito. Não me habilitei a encher as mãos com as balinhas de morango oferecidas no caixa. O desconforto permaneceu no bolso, como um tíquete do estacionamento que não poderia perder.

É costume ecoar como agressão a troca de um cliente por um funcionário, superando em desavença aos atos de errar o nome ou intuir a gravidez numa conhecida. Não alcanço qual é a humilhação. Há debaixo disso um preconceito de classe enraizado, um medo de ser menos que forma o recalque. Ninguém quer ser faxineira. Nem a faxineira. Ninguém quer ser vendedor. Nem o vendedor. Lavador de prato no Brasil é ralé, uma submissão. Um lavador de prato nos Estados Unidos, mesmo clandestino, é chique, uma escolha.

Eu me enganei em farmácias, locadoras, supermercados, sex shop, sempre a mesma reação estapafúrdia. Uma vez abordei uma jovem de babados brancos jurando que trabalhava como garçonete e desconfio que me colocou em sua lista negra. E sumi com a sorte do bar lotado, torcendo para que ela não fosse a dona do lugar.

Não somos perdoados por não antever que o desconhecido é um procurador de justiça ou a desconhecida é uma atriz famosa. Tomá-los por outro não é uma gafe, não é uma distração, representa uma ação de dano moral. Uma injúria em último grau. O anonimato no país é uma difamação. Não vigora compreensão nem no primeiro contato. Temos que adivinhar o alto escalão de cara. Como se a carreira estivesse impressa nos traços físicos. Na rua, a sensação é que somente passeiam pessoas jurídicas.

Insuportável receber a censura típica da soberba:

- Sabe com quem está falando?

Certo que não ficarei para ouvir a resposta.

Aceitar o engano é cristão. Aceitar que não seria desagradável ser o engano é budista. A simplicidade não ofende.

Mas talvez embaralhei as figuras de propósito. O gaúcho mantém um argentino provocador por dentro, pulando no alambrado e puxando briga.

sexta-feira, 12 de março de 2010

CERA QUENTE

Arte de Cy Twombly


Casal feliz não tem amigos. Não tem testemunhas. Eu não caracterizaria de felicidade, é desinformação. Ninguém sabe da intimidade deles para definir o quanto estão ou não contentes.

Meu amor é brigado. Passa a imagem de tormenta, de crise, de luta, mas corresponde a uma convivência normal, de altos e baixos. Anormal é uma relação sem nenhuma anormalidade.

Não guardo pena de mim ou de minha namorada, mas dos amigos que seguram velas. Há sempre mais cera do que fogo.

Vivo pagando mico. Eles têm que suportar a bi-polaridade do amor. Uma coisa é segurar a vela no início do namoro, outra é segurar o próprio bolo com a teimosinha acendendo e apagando a cada sopro ou vento da janela.

Num dia cinzento, ligo para chorar que me separei, suspiro o uísque, fumo os soluços. Sou um suicida perigoso. Exijo cumplicidade, imunidade poética, obcecado em comprovar que não havia jeito de continuar. Falo mal à beça da namorada, destrato e subestimo o passado. Eles concordam.

No sol seguinte, fico condicionado a telefonar na maior desfaçatez e comunicar a reconciliação. É extremamente constrangedor. Contornei o que julgava irreparável, reabri o que anunciava como definitivo. Sou o salvador do suicida. Mudo o tom e a esperança. Falo bem à beça da namorada, elogio e exalto o futuro, reconheço o tanto que ela me apóia, descortino argumentos favoráveis e destaco a resistência da união que supera a mortalidade infantil das ameaças. Eles concordam.

Depois de publicar o retorno no Diário Oficial, eu me penitencio. Já estava na hora de entender: o par que apronta escândalo na despedida permanecerá junto. Perigosa é a separação seca, abrupta, cansada de explicações.

Às vezes, acho que não tenho que ceder, que amigo que é amigo providenciará um desconto e ouvirá a história pela enésima vez com o interesse da novidade. Na maior parte do tempo, acho que cometi bobagem e meus confidentes estão de saco cheio. Eu me afogo no raso. Talvez necessite mudar, vejo que engrandeço a vida a ponto de recusar uma mísera contrariedade e me vingo com o exagero.

A angústia é uma falsa urgência. Todo casal separado deveria não fazer absolutamente nada dentro do prazo de cinco dias. Não decidir movimentação alguma, permitir o corpo esfriar o desaforo, talvez entrar numa clínica ou num spa para desintoxicação vocabular.

O que acontece é cômico. Não transcorreu uma manhã do tumulto, vem uma sanha do remorso, uma conspiração maquiavélica a destruir os antecedentes. O amor se torna um crime impronunciável e mergulhamos numa mobilização desenfreada para limpar a memória, o computador e apagar as pistas. As fotos do orkut são excluídas, as senhas trocadas, as telas de proteção e os porta-retratos desaparecem, os livros afrouxam a costura sem a página da dedicatória, as cartas recebem a visita do picotador de papel. Até o chaveirinho mimoso, comprado no Brique da Redenção, é removido da argola das chaves.

Quando os dois voltam, sacrificou-se metade da memória. É aquela flutuação de fantasma na primeira semana. Uma impressão de que somos facilmente substituíveis e descartáveis.

Não se conservou nem o número no celular e experimenta-se a perversidade de perguntar de novo. O que foi construído durante meses entra numa caixinha para a caridade.

Qualquer morto depende de 24 horas antes de ser enterrado. O mesmo é indicado aos relacionamentos. Confie na ressurreição, não apresse a cova, poderá ser apenas mais um buraco no jardim.

quinta-feira, 11 de março de 2010

PRECOCIDADE

Jovem já foi comparado ao lendário Claudiomiro


O atacante colorado Walter, 20 anos, desapareceu dez dias. Não fez greve de fome, até engordou. Mostrou-se insatisfeito com o banco de reservas e por não ter sido vendido no início da temporada.

Rolo Compressor analisa seu sumiço como mais um caso de precocidade...da arrogância.

Defende que ele tenha um desmotivador emocional. Para que descubra um pouco de humildade em seus 86 quilos. Reprimenda aqui.

quarta-feira, 10 de março de 2010

A EXCEÇÃO DO OLIMPO


Arte de Tereza Yamashita


Não há corpo fechado. Qualquer macho será bagaceiro por um motivo, ao palitar os dentes, ao arrotar alto ou ao cuspir na rua.

Meu desleixo monstruoso é manter uma carteira cheia no bolso de trás. Lembro uma saúva. Como se houvesse um rolo de meia amontoando o jeans.

Hábito que partiu da infância, onde colecionava os cartões de crédito vencidos da mãe e brincava de falência com os irmãos. Guardo a mínima coisa que recebo: tíquetes, carnês, recibos, guardanapos de amores platônicos.

Careço de conhecimentos praianos para desaparecer com o dinheiro nas pernas e mergulhar no mar. Se morasse no litoral, não estaria escrevendo. No Rio de Janeiro, vejo banhistas sempre pagando os biscoitos Globo sem retirar a bufunfa de nenhum acessório. Ou lá é a cidade do fiado ou a sunga é uma niqueleira.

De todos os modos de proteger os documentos, o que me incomoda é a capanga. Aquela carteira larga com uma cordinha de rádio de pilha. É meu pai andando na Riachuelo nos anos 70. Combina com calças boca de sino, correntes no pescoço e cabelo de cesta de basquete.

Repare na coragem do seu dono; é uma bolsa atrofiada, uma bolsa escrotal doente.

Quem carrega a capanga não tem grana, muito menos graça. Nem tente assaltar. É tamanha cafonice que destrói a reputação do bandido. Ele pode ser ladrão, mas é sério, tem família a zelar.

A capanga parece uma cápsula ejetada da nave-mãe. A cordinha é o ó do borogodó. Eu enforco a fé na humanidade em seu terço desdentado. Melhor enlaçar o pulso com as fitas do Bonfim, que são coloridas e puxam o trio elétrico dos anéis.

Ainda mais danosa do que ela, somente a pochete. Não existe justificativa nem num pampa safári. É filha de uma relação proibida do alforje e da trouxa no Nordeste.

Forma a dupla de coleiras masculinas com a capanga, sua irmã caçula. Atesta que o homem é masoquista e desfruta do prazer de ser chefiado. Com certeza, ele lava a louça em casa todo o dia e leva o lixo antes das 19 horas.

A pochete evoca um boi sendo puxado, é uma sela que vem com rédea. Aniquila com a virilidade braçal, mesmo que destinada a servir as crianças no passeio ao parque. É um autorama na cintura. Serve como almofada para a barriga. Imperdoável quando usada como cinto.

O desastre aumenta porque a ala masculina julga exibir sua praticidade. Alega que é possível carregar tudo. Tudo, menos a elegância. Oferece a visão de um boxeador fracassado, com seu cinturão de nylon.

Pois o que me transtornou numa manhã de março foi encontrar o professor Cláudio Moreno em minha rua. Eram oito horas da manhã, a luz não havia aberto seus camelôs, Paulo Coelho dormia nos Montes Pirineus.

Moreno é um sinônimo de altivez vocabular e de português escorreito. Não vai errar a concordância sequer num palavrão. Duvido que fale um, por sinal. Ele descia a ladeira com a mulher Ana e seu cachorro branco. Até suas sobrancelhas estavam penteadas.

Maldito momento em que ele surgiu de foto inteira. Eu vi, eu vi uma pochete preta, exuberante, em sua cintura.

— Pô, professor, de pochete?

— Qual é o trauma?

— Você fica a mais inofensiva das criaturas. Não conheço deus grego que andasse de pochete.

— Está me estranhando?

— Só falta dizer que Afrodite e a Ana adoram.

Não respondeu, abriu fragorosamente o zíper e tirou uma faca imensa. Transformou-se em Ares, deus da guerra, ou Hades, deus da morte. Não me lembrava com exatidão de suas aulas.

— Nossa, professor, obrigado, tem colaborado para a segurança do bairro.

A conversa terminou naquele impasse, caminhei lentamente para casa. Muito cedo para correr no fio da navalha.

Proíbo, portanto, a pochete para todos, menos para Cláudio Moreno.




Crônica publicada no site Vida Breve

segunda-feira, 8 de março de 2010

VIÚVA ALEGRE

Arte de James Rosenquist


Cada um sofre como pode. Alguns precisam se retirar por dias e permanecer incomunicáveis. Outros nem deixam a dor esfriar e vão para festas.

Não há padrão de comportamento. As paredes são árvores, as árvores são paredes.

Mas existe um preconceito com quem reage com senso de humor. Pois se voltou a trabalhar e a sorrir é como se não estivesse sofrendo. O luto determina um protocolo de solenidade de governo: choradeira, náusea e comiseração.

Não dá para passar a palavra antes das lágrimas.

Sou estranho. Uma viúva alegre. Podem me condenar, preparar uma fogueira na Praça da Matriz, ao som do violino e acordeon do Tangos e Tragédias. Eu me recupero com ligeireza porque sou pai. A paternidade é minha sobrevida.

Não vou forçar meus filhos a sofrer comigo. O luto é meu, não deles. Não ficarei duas horas chorando e assoando o nariz para constrangê-los com minha vulnerabilidade. Não utilizarei nenhuma desculpa para não cumprir as atividades. O almoço me chama, a escola me chama, os temas me chamam, as tarefas de organização da casa me chamam, atendo mesmo quando não estou em mim. Não irei diminuir meu ritmo, apesar de somente pensar na incurável distância da mulher que amo.

Há de tocar a vida mesmo que o corpo seja mais lento e menos obediente. Não que eu não deixe de sentir, eu não me excluo de sentir nada. Mas eu não sinto somente isso. Não construirei arquibancadas para o grito. Dispenso a exclusividade. Apenas não posso me sentar e me esbaldar na cama no escuro, penarei de pé, andando apressado pelos corredores, girando pelas salas, conversando suspirado, misturando as lembranças boas com as ruins. Não me fixarei no problema para odiar alguém. Sou contrário a mobilizar nossas forças e nossa disciplina para não ter dúvidas. Eu adoro as dúvidas. As dúvidas regeneram as verdades. Uma verdade parada não é paz, é abandono.

Arco com toda pontada e naufrágio amoroso ao mesmo tempo em que conservo os cuidados paternos.

Desconfie dos tumultos. Não mostrar o sangue não elimina a chance de hemorragia. Assim como encontro as caretas mais assustadoras na comédia, não em filmes de terror.

O riso é catarse. O riso é muito mais nervoso do que a coriza. O riso é mais um jeito de gemer.

Meu sofrimento não é cerimonioso. Vou me distribuindo entre telefonemas e crônicas. Parcelando a angústia. Guardo a consciência de que não resolverei a dívida afetiva à vista. Não mentirei fundos. Não me envergonho da falta, do vazio, não me encabulo de pedir ajuda o quanto antes.Não espalharei embalagens de comida chinesa e redomas de papelão de pizza pela sala, não convidarei moscas e baratas para coroar a tortura, ou permitirei que a barba cresça, atenderei o interfone, não sumirei para chamar atenção. O suicídio faz um drama excessivo, as pequenas mortes se contentam com a humildade de uma cruz e um nome.

Não enxergará uma anormalidade em minha fossa. Meu quarto estará limpo como num dia de trabalho, a louça estará lavada.

A explicação é simples: aquele que é capaz de atender uma tele-entrega tem condições de voltar a atender sua vida.

Criarei as pequenas desculpas para me aliviar dos grandes medos. Sintomático que na enxaqueca procuro primeiro um AS infantil para depois admitir que cresci e dependo de uma aspirina adulta.

Não me dou nem o direito de jejum, de emagrecer, de afundar olheiras. Esperneio os olhos com cebolas e sigo viagem pelos varais. Não conheço tempo para drama. Não gozo do direito da frescura. O luxo de parar a rotina e me exilar na chácara de um amigo. Eu mesmo me sirvo e me atendo. Não é errado procurar a solidão, curtir o couro e ajeitar as fotografias por ordem de datas. Tampouco estou errado. As mães me entendem. Talvez transmita a ideia de reprimido. Não creio que seja.

Lenços, para quê? Os abraços do filho e da filha são lençóis e me põem a dormir acordado.

O sol lava a minha cara. O suor é a mesma água da lágrima e mata igualmente a sede.

sexta-feira, 5 de março de 2010

REZE PARA SER PERDOADO

Arte de Georg Baselitz


Eu não chamaria uma mulher de exótica.

É bonito, sugestivo, mas considero arriscado pronunciar para uma beldade que sua beleza é exótica. Dependerá do alzheimer ou de muita intimidade para ser esquecido.

Ainda que não seja ofensivo, ela vai sentir que é mais estranha do que bonita. Destacaremos uma anormalidade enquanto desejávamos anunciar sua singularidade. Não cai bem mesmo no baile a fantasia.

Paira sobre a frase uma nuvem negra: ele está me chamando assim para não me ofender? Beleza exótica tem um quê de educação. Prefiro mentir a usar.

O elogio que gera dúvida já é ofensa. Se ela não entendeu, não ouse explicar. Cantada não admite explicação.

Falta apenas completar que ela é um animal em extinção e tem que se reproduzir contigo para salvar a espécie.

Não há como festejar o enigma desse jeito, talvez encontre o estigma e lamente a casa vazia.

Cautela no momento de abrir a boca, o golpe deve ser empregado uma vez em toda vida, quando não há saída, quando não tem mais nada a falar, na total imobilidade, como o pulo de garça do Karatê Kid.

É uma expressão ambígua. Ao mesmo tempo em que se mostra encantado denuncia uma eventual perplexidade, um susto, tipo nunca vi nada igual. Percebe a sutileza?

O exotismo não ajuda na sedução. Afora a pressão que cria no relacionamento.

Ela não vai mais relaxar. A conversa será séria, quase um noivado, com a presença dos pais aborígenes e canibais.

Crescerá o medo de decepcioná-lo. Ela assumirá a responsabilidade descomunal de surpreendê-lo. Não ficará mais livre para ser comum. Proibida de cumprimentar com “oi” ou “tudo bem?”, forçada a comprar charutos na Finlândia e desdenhar dos doces de Copenhague. Terá que ser exótica para qualquer coisa, condenada a honrar a fama.

Você abriu a porta ao surrealismo, ao insólito, ao absurdo.

Convidará a garota para sair e ela dirá que não pode, vai pular de pára-quedas de noite, após cumprir seu serviço de espionagem dos rótulos de cerveja numa boate gay. Oferecerá uma carona e ela dirá que não pode, há um tanque da antiga União Soviética em seu quintal, que impede visitas civis. Chamará para um café, e ela dirá que não pode, que somente toma biotônico fontoura.

Depois do primeiro contato, a mulher exótica desaparece. O que não é exótico perto da grosseria de tentar reduzir seus encantos a uma jaula de zoológico.

quinta-feira, 4 de março de 2010

ORKUT

Arte de Karel Appel

"Usamos a hostilidade para exigir respostas quando nem sabemos direito quais são as perguntas."

O amor tem que cuidar da pirataria digital. Fotos e recados no Orkut são o tema da nova consulta no divã. Confira minha resposta ao tormento de um namorado que não suporta sua crise de ciúme.

A entrada para o Consultório Poético é por aqui.

OFICINAS NO STUDIO CLIO

Arte de Mariana Carpinejar


Início de temporada e a alegria de voltar a dar aula no StudioClio, pelo terceiro ano consecutivo. Estão abertas as inscrições para minhas oficinas de Poesia e de Crônica.

Há quinze vagas para cada uma delas. Os encontros semanais acontecem no casarão da rua José do Patrocínio, 698, em Porto Alegre (RS). Informações pelo telefone (51) 3254.7200 ou pelo e-mail clio@studioclio.com.br.

O curso de criação lírica ocorre às quartas, das 19h30 às 21h30, a partir de 17/3. O objetivo é conscientizar poetas e leitores da importância da brincadeira da linguagem e das inversões do ponto de vista. Para acentuar os movimentos de dedução e fantasia literária, serão desenvolvidas tarefas como cartas, troca de sapatos, esvaziamento de bolsas, jogo da forca, lista de mercado e relação de objetos perdidos.

Nas terças-feiras, das 9h30 às 11h30, com início em 16/3, é a vez da oficina de crônica. Trabalho a despretensão, a simplicidade e a surpresa do texto breve. Abordarei a história comentada do gênero, as diferenças em relação ao artigo e ao conto, a importância do exemplo pessoal na elaboração da atmosfera e a força do humor na prosa contemporânea, de João do Rio a Luis Fernando Veríssimo.

quarta-feira, 3 de março de 2010

OLHO ROXO

Arte de Tereza Yamashita



Ele sentou de lado para conversar de frente. Depois escondia a face. Além dos óculos escuros, um adereço que utiliza exclusivamente para enterros.

— O que foi?
— Nada.
— Mostra, vai? O que está tapando?

O amigo Mário Corso não experimentava tranquilidade. Tive que arrancar seus dedos da cara para descobrir um inchaço debaixo das pálpebras, quase um segundo nariz respirando em linhas escuras.

— Apanhou?
— Não, foi a Diana. Pulou na piscina e foi me abraçar, suas unhas fincaram de jeito na carne.

Ele é ruivo. O hematoma fica mais acentuado na pele branca. Se meu comparsa pudesse, sairia de casa com uma máscara de gripe suína. Mentiria que se prevenia de uma nova corrente de surtos que vinha do Afeganistão.

Arredio, nervoso, buscava se esquivar do exame assustado dos fregueses do bar. Temia inclusive o barulho do gelo do copo e a sombra do vidro. Seu constrangimento era maior pelo fundo doméstico e cômico da cena. Todo mundo pensaria que se meteu numa briga e nem isso aconteceu. Não tinha como se vangloriar de pose de valentão porque simplesmente se encabula ao mentir.

É capaz de remorsos fundos, de acreditar que agiu mal diante do pulo involuntário da esposa. Não queria ter sangrado. A sangueira encabulou, gerou culpa. Os dois não mais relaxaram, envolvidos em desculpas, curativos, pomadas e comiserações. Fecharam a conta no hotel e anteciparam o regresso das férias.

Não havia como explicar, mas ardi em inveja. Eu desejava ostentar aquela marca garbosa. Por que não fui escolhido? Para quem não tem olhos azuis, o olho roxo é uma dádiva. Seria imediatamente prepotente. Ostentaria o machucado, talvez fizesse uma sinalização de esparadrapo, um heliporto para os mosquitos. Cumprimentaria estranhos, levaria os braços à cabeça para atrair a curiosidade. Aquela lesão traria uma dignidade. Uma confiança hostil e excitante.

Ganharia assento no ônibus, passaria à frente nas filas bancárias, sobrariam vítimas para histórias malucas, despertaria interesses humanitários.

É um ímã de mulheres. Mais do que uma tatuagem de dragão ou bíceps avantajados. Elas se interessariam pela sua origem, me achariam perigoso, enigmático.

Nenhuma namorada nunca me bateu. Faltava essa medalha de guerra, essa etiqueta de passionalidade, essa luta vencida ponto a ponto. Mesmo que por um acidente.

Meu rosto ainda é de uma criança.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 2 de março de 2010

BRASILEIRÃO DA AMÉRICA



Rolo Compressor raciocina que a Libertadores é o Brasileirão das décadas de 70 e 80:

"O torneio dá gosto porque é uma forma de disputar o campeonato brasileiro antigo. É um playstation retrô. Corresponde a um vale a pena ver de novo.

O vestiário recua no túnel do tempo. Enquanto a fórmula atual é de pontos corridos, a competição internacional trabalha com o mata-mata, no esquema de superação de expectativas e violenta atenção. Traz para a torcida a sensação de final em cada rodada, dobrando a emoção e a ansiedade. Coisa que o Brasileirão perdeu em sua maratona incansável, turno e returno, todos contra todos."


Acompanhe toda conversa na beira do gramado.

segunda-feira, 1 de março de 2010

OS OLHOS SÃO COADJUVANTES DO OLFATO

Arte de Magritte



Repassarei um truque aos filhos. Como selecionar um brigadeiro. Nunca compre o doce enorme. Logo se imagina que aquilo deve ter uma latinha inteira de leite condensado.

Na prateleira, é o imperador das bandejas, o pai do quindim, com o formato achatado de capuz. Sua criança babará no balcão, sofrerá um ataque de epilepsia. Por favor, contenha o impulso dela.

Apesar da aparência lustrosa e crocante, coberta de granulado, é uma enganação. Todo chocólatra fareja que é falso. Não pode ser real. Ele vai durar para sempre porque é impossível comer. Na primeira mordida, a arcada perderá seu fio. Procure um moleiro para recuperar a lâmina. É uma pasta com farinha. Até Taiwan seria mais caprichosa na pirataria.

O brigadeiro mais gostoso curiosamente é o pequeno, do tamanho de uma unha. Uma titica. A panelinha guarda lugar para mais dois. Não transmite nenhuma superioridade. Sozinho, não será localizado no mostruário, é uma formiga sendo carregada por uma folha. Depende de lupa, microscópio, pinça.

Mas é esse que fará você pagar o dobro e repetir à exaustão. A gana é obturar todos os dentes com seu conteúdo.

Com o minúsculo confeito, o desejo vem em caixa alta. Somente a língua trabalha, é quase líquido, desmancha no céu da boca e adoece o pensamento.

Portanto, repassarei também um conselho aos netos. Como duvidar do primeiro encontro. As estrelas não escrevem, unicamente brilham.

Ainda temos a expectativa de que ele teria que ser mágico, com efeitos especiais, relâmpagos, tremedeira, suor, frio na barriga. O corpo pescaria a clarividência, estaria certo do destino, pressentiria o casamento no primeiro toque, no primeiro beijo. Seria uma moleza, uma ejaculação precoce, uma tensão infindável. Abandonaríamos os compromissos pela certeza indomável das pupilas. Em madrugadas de lareira, o par esbaldaria aos amigos de que não houve hesitação, foi uma junção perfeita, um golpe de misericórdia no batimento cardíaco.

Já testemunhei amores avassaladores e cinematográficos que não duraram nem a manhã seguinte. O casal experimentou cenas de porta-retrato na cômoda, com todos os sintomas do cortejo romântico e idealizado: a música parou e as casualidades se moveram secretamente. E os dois não seguiram adiante, pois sequer se esforçaram.

O contato inicial pode ser uma droga, a pessoa irritar e bancar a arrogante, cometer grosserias e atazanar a paciência e mesmo assim despertar a curiosidade. Nada mais promissor do que a confusão. A proximidade surgirá pela desconfiança, pelo desafio desagradável, pelas visitas diárias ao ódio, até o momento em que não falará de outra coisa senão dela. Expulsará lentamente os preconceitos e aceitará de que não escolhemos o melhor, mas o necessário.

É a insistência que produz o amor, não o deslumbramento.

Paixão à primeira vista não existe com brigadeiro ou com mulheres. Mas cheiro à primeira vista é imbatível. A química não costuma falhar, desde que tenha tempo para misturar os ingredientes.