Arte de Fatturi
Não tenho medo do passado de minha mulher.
Não há receio de nenhum ex. Não ardo de ciúme por relacionamentos anteriores. Não pago pedágio por aquilo que aconteceu.
Não mexerei no celular para comparar felicidade e entrega, não analisarei a alegria que irrompeu e deixou de ser. Tudo o que ela viveu, agradeço, apressou o caminho para estar comigo.
Mas sofro com um rival. Há um opositor no tempo que preciso duelar e reverencio, sei que a luta será difícil e desigual, sei que será duro excedê-lo, ele tem larga vantagem sobre meus ombros estreitos (pois a carregou no colo com a leveza de brisas).
Estou falando do mar de Búzios.
O mar de Búzios foi sua melhor companhia. Até então insuperável convivência.
Ela passou a infância e adolescência correndo pelas suas vinte e três praias, mergulhando nas claridades das manhãs e tardes, permanecendo de chinelos e bermuda luz a fio, comendo nos restaurantes onde seu pai trabalhava como garçom, arredando amizades com a simplicidade de um aceno.
Seus cabelos loiros são mais loiros pelo mar de Búzios.
Sua pele é mais macia pelo mar de Búzios.
Seus olhos são mais verdes e transparentes pela cor da maré de Búzios.
Seu rosto vem para a frente quando ri para acompanhar o mar de Búzios.
Sua audição é refinada por se demorar nas cantigas das ondas de Búzios.
Sua coragem é aventureira por desafiar as curvas do oceano de Búzios.
O mar de Búzios desposou sua alma antes de mim. O mar de Búzios chegou primeiro, com entardeceres que nunca terei condições de reproduzir.
Poderia ter um outro adversário, porém veio logo o pior: logo o mar de Búzios com um histórico amoroso de Dom Juan, logo ele que conquistou Brigitte Bardot.
Como ser um amante mais completo do que aquela água sempre morna, alternada de ventos quentes ao dia e suaves no escuro?
Como massagear seus pés e mãos e superar o delicioso conforto da areia fina?
Como oferecer joias tão cintilantes quanto às conchas que ele colocou em seu pescoço?
Como despertá-la de bom humor sem aquela luz batendo na janela? Como fazê-la dormir sem aquela noite estrelada forrando o telhado?
Como ser mais exuberante do que a península de oito quilômetros?
Eu me sinto tedioso, monótono, chuvoso perto dele. É um inimigo com muitos apelidos, todos mais estranhos do que os meus: Geribá, João Fernandes, Ferradura, Ferradurinha, Armação, Manguinhos, Tartaruga, Ossos, Tucuns, Brava e Olho-de-Boi.
Se eu for metade do que Búzios significa em sua memória, serei o melhor homem de sua vida.
Apenas metade. A metade já transbordará em velhice de mãos dadas.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 29/09/2013 Edição N° 17568