sábado, 28 de setembro de 2013

O MELHOR AMANTE DE MINHA MULHER

Arte de Fatturi

Não tenho medo do passado de minha mulher.
 
Não há receio de nenhum ex. Não ardo de ciúme por relacionamentos anteriores. Não pago pedágio por aquilo que aconteceu.
 
Não mexerei no celular para comparar felicidade e entrega, não analisarei a alegria que irrompeu e deixou de ser. Tudo o que ela viveu, agradeço, apressou o caminho para estar comigo.
 
Mas sofro com um rival. Há um opositor no tempo que preciso duelar e reverencio, sei que a luta será difícil e desigual, sei que será duro excedê-lo, ele tem larga vantagem sobre meus ombros estreitos (pois a carregou no colo com a leveza de brisas).
 
Estou falando do mar de Búzios.
 
O mar de Búzios foi sua melhor companhia. Até então insuperável convivência.
 
Ela passou a infância e adolescência correndo pelas suas vinte e três praias, mergulhando nas claridades das manhãs e tardes, permanecendo de chinelos e bermuda luz a fio, comendo nos restaurantes onde seu pai trabalhava como garçom, arredando amizades com a simplicidade de um aceno.
 
Seus cabelos loiros são mais loiros pelo mar de Búzios.
 
Sua pele é mais macia pelo mar de Búzios.
 
Seus olhos são mais verdes e transparentes pela cor da maré de Búzios.
 
Seu rosto vem para a frente quando ri para acompanhar o mar de Búzios.
 
Sua audição é refinada por se demorar nas cantigas das ondas de Búzios.
 
Sua coragem é aventureira por desafiar as curvas do oceano de Búzios.
 
O mar de Búzios desposou sua alma antes de mim. O mar de Búzios chegou primeiro, com entardeceres que nunca terei condições de reproduzir.
 
Poderia ter um outro adversário, porém veio logo o pior: logo o mar de Búzios com um histórico amoroso de Dom Juan, logo ele que conquistou Brigitte Bardot.
 
Como ser um amante mais completo do que aquela água sempre morna, alternada de ventos quentes ao dia e suaves no escuro?
 
Como massagear seus pés e mãos e superar o delicioso conforto da areia fina?
 
Como oferecer joias tão cintilantes quanto às conchas que ele colocou em seu pescoço?
 
Como despertá-la de bom humor sem aquela luz batendo na janela? Como fazê-la dormir sem aquela noite estrelada forrando o telhado?
 
Como ser mais exuberante do que a península de oito quilômetros?
 
Eu me sinto tedioso, monótono, chuvoso perto dele. É um inimigo com muitos apelidos, todos mais estranhos do que os meus: Geribá, João Fernandes, Ferradura, Ferradurinha, Armação, Manguinhos, Tartaruga, Ossos, Tucuns, Brava e Olho-de-Boi.
 
Se eu for metade do que Búzios significa em sua memória, serei o melhor homem de sua vida.
 
Apenas metade. A metade já transbordará em velhice de mãos dadas.
 
 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 29/09/2013 Edição N° 17568

terça-feira, 24 de setembro de 2013

LOJA DE HORRORES

Arte de Lauren Hamilton

Confesse que já aconteceu com você!

Experimenta um vestido na loja, adora, decide comprar, levita com o pressentimento de usá-lo, imagina qual será a ocasião, sonha com os movimentos do quadril, cogita onde irá estrear e com quem, mas o feitiço não dura nem duas horas. É como penteado em salão. Na hora em que aterrissa na residência, o vestido não é o mesmo. Não adere como antes. Não tem o mesmo efeito hipnótico. Não parece raro e indiscutível, você não alcança o que gostou tanto no caimento e nas costas, parece normal e trivial, não vale a metade do investimento, bate uma raiva de que gastou à toa e agiu por impulso consumista, jura que foi enganada pela pressa ou pela carência do armário. O que entrava fácil custa esforço, tempo e paciência e transmite a incômoda sensação de que pegou o número errado sem querer.

Este é o tormento de minha amiga Claudia Tajes. E o martírio é coletivo, responsável por destruir a maior parte das fantasias românticas.

Chegamos à conclusão de que o espelho da loja é diferente do espelho de casa. Não vieram de igual fábrica. Não pode ser de idêntica fibra. Deve conter algum ondulamento salvador, um reflexo de circo, uma profundidade espírita. Algo ocorre que não se prevê.

Não é loucura, não é histeria – os terapeutas também padecem desse sofrimento.

Há uma mudança de ares certamente, de atmosfera que ajuda a miragem. Talvez a iluminação da loja privilegie a tez da pele, assim como os filtros da câmera salvam fotos desfocadas. Testemunha-se um impacto alucinógeno no provador. Talvez seja obra das cortinas. Abrir e fechar as cortinas confere um andamento de teatro que melhora a roupa. É como um abracadabra, um passe de mágica, um aviso de que o espetáculo vai começar. As mulheres se enxergam como personagens, livres dos limites da própria vida e da cintura. Uma ideia seria colocar mais cortinas no apartamento, e não somente nas janelas. Cortinas nas portas para perpetuar a ficção e o palco. Seria uma saída, não uma solução.

A certeza da aquisição que se torna dúvida no lar é um mistério inviolável, como a fórmula da Coca-Cola e da Minancora. O provador possui um esquema de lambe-lambe, de câmera escura, isola aquele momento do mundo e dos barulhos familiares. É como uma cabine de desmaterialização. O corpo é outro, emagrece milagrosamente, como os lutadores do UFC na véspera do enfrentamento no octógono.

Uma das hipóteses é que a respiração fica mais tranquila. É quase uma aula de ioga, uma saudação ao sol. Todo mundo está cabeludo de saber que prender a respiração é o melhor zíper do jeans – a fobia asmática apenas surge em casa, quando se está sozinha novamente e o desespero paga para ver.

Claudia Tajes não cansa de devolver suas roupas, nem tira mais as etiquetas. Vive colecionando tíquetes de estacionamento dos shoppings.

Só a poesia para ser fiel à beleza feminina.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 24/09/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17563

LENÇOL LIMPO

Arte de Cy Twombly

Se você está decidido a se separar, talvez seja só cansaço.

Se você quer pedir demissão, talvez seja só cansaço.

Não há terapia que supere a nossa própria cama.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (24/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O JARDIM E O QUINTAL


Arte de Fatturi

Não basta ser fiel, tem que ser leal para dar certo.

Foi o que a minha namorada me disse.

A lealdade é tão importante quanto à fidelidade.

A lealdade é o pensamento da fidelidade. A fidelidade é a ação da lealdade.

A lealdade é a amizade do amor. A fidelidade é o respeito do amor.

Há casais que são fieis entre si, mas não são leais, e se distanciam um do outro.

Há casais que nunca se traem, mas tampouco se apresentam: vivem pulando a cerca nos gestos.

Podem, aparentemente, conviver em harmonia, só que não expressam o que sentem, não descrevem suas frustrações, conservam uma fachada até a relação estourar. Cuidam do jardim da residência, descuidam do quintal.

Não cooperam com o entendimento, não são didáticos, colocam a sujeira debaixo da cama, deixam os atritos passar sem mediação.

Parece que estão alinhados, porém apenas não estão conversando.

Não respondem onde andam com a cabeça, o que querem de verdade.

Na separação, descobrirão que não se conhecem, pois jamais descreveram suas emoções mais básicas, sequer revelaram o ciúme e o descontentamento no momento da eclosão.

Lealdade é esclarecer as dificuldades e as rusgas. É uma exposição gradual das diferenças que geram as semelhanças.

Fidelidade é uma vontade do casal diante dos demais, lealdade é mostrar a vontade de cada um no decorrer do tempo.

Fidelidade é cumplicidade, lealdade é intimidade.

Fidelidade é um posicionamento público, lealdade é a vida privada.

Fidelidade é projeção, lealdade reflete aquilo que você é para si. Se contraria seu sonho com o casamento ou o namoro, está sendo desleal, mesmo que seja fiel.

Fidelidade é um passo externo, lealdade é um passo interno.

Fidelidade é honrar o compromisso perante o trabalho e os amigos, lealdade é honrar o compromisso em casa.

Lealdade é expor o que se está pensando, o que se procura, não omitir suas intenções, manter sua companhia atualizada de seus problemas e de suas soluções.

Fidelidade é proteger o relacionamento, lealdade é não esconder o que está acontecendo dentro do relacionamento.

Sem lealdade, o amor cansa, o amor estanca, o amor não cresce.

A deslealdade separa mais do que a infidelidade.

A deslealdade é se trair por dentro.

 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 22/09/2013 Edição N° 17561

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

JABUTI



Sou um dos dez finalistas na categoria Contos e Crônicas do 55º Prêmio Jabuti de Literatura, da CBL - Câmara Brasileira do Livro. O anúncio aconteceu nesta terça-feira (17/9). A premiação é a mais importante e prestigiada da cena literária brasileira. No dia 17 de outubro, serão revelados os vencedores. E na cerimônia de 13 de novembro, serão conhecidos os autores do ‘Livro do Ano’ de ficção e não ficção.

Concorro com a coletânea "Bem-vindo: Histórias Com as Cidades de Nomes Mais Bonitos e Misteriosos do Brasil" (Bertrand Brasil).

É a quinta vez que me classifico entre os melhores - já venci duas vezes o Jabuti, em 2009 na categoria Contos e Crônicas com a coletânea "Canalha! " (Bertrand Brasil), e em 2012 na Categoria Infanto-Juvenil com Votupira (SM Edições).

SE O MUNDO FOSSE ACABAR, DANÇARIA CONTIGO

Arte de Eduardo Nasi

Minha namorada me convidou para dançar em público. 

Público significa meus amigos e os dela em nosso apartamento. Era uma festa com mais de 35 pessoas. 

Dançar para os outros é uma loucura para mim: eu que me encostava nas paredes na adolescência, eu que mexia a garrafa de cerveja para fingir desinteresse na pista das baladas, eu que era travado e de pernas duras, incapaz de sambar sem olhar para os pés.

Em um único movimento de mãos, com seu gesto de bandeja "Vem fazer uma performance!", Katy desafiou todo o meu passado, todas as minhas amarras, todas as minhas fobias.

- Performance? Que performance?, questionei.

- A que vamos inventar - ela respondeu.

O salão abriu para nos assistir. Tremia, mas fechei as pálpebras com a consciência de uma boca. 

Ela colocou nossa música, "O Último Dia", de Paulinho Moska, e me puxou com força.

Rodopiamos, descemos os joelhos, ela confiava em mim, ela dançava simples e fácil, como o vento é simples e fácil a uma criança - pegava impulso para o balanço e chegava o mais próximo possível das traves.

Jogava os cabelos para trás e me adivinhava. Seus braços eram pernas, suas pernas eram asas enraizadas em minha cintura, voei com os ouvidos. 

O ritmo recebia apenas uma breve trégua dos lábios ou do rosto roçando, para o torvelinho nos arremessar de novo aos lados. Não concebia se aquilo que fazíamos era dança ou patinação artística. 

Não encarava mais ninguém, o apartamento foi esvaziado pelo nosso desejo de se pertencer, de não ser ninguém para ser dois.

Celebrávamos o amor, nos oferecíamos ao amor, amadores e espontâneos em cada movimento, viscerais e intuitivos, animais que confundem fome e pressa. 

No final da canção, ela se curvou e não estava próximo para segurar sua cintura. E caímos com violência no chão. 

Só deu tempo de deixar meu dorso como travesseiro de sua cabeça.  

Enquanto os amigos acreditavam que havíamos nos machucado, descobríamos que havíamos nos curado. 

Deitados no tapete, gargalhamos da ensurdecedora queda. Porque a queda é também improviso. A queda é onde acontece o melhor abraço. O mais humilde abraço. O mais sincero abraço. 

Naquele momento antes de subir e finalizar a coreografia, lembrei de nossa conversa durante o primeiro beijo.

Eu tinha dito com orgulho "Somos muitos!", quando ela me corrigiu "Temos que ser menos, cada vez menos, até ser um só". 

Em uma noite, aprendemos a cair juntos, a nos levantar juntos, a matar o medo do vexame. 





Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 17 de setembro de 2013

PEQUENOS CÉUS SOMADOS

Arte de Carel Fabritius

O pássaro que voará mais alto é o pássaro que nunca desistiu de puxar a coleira.

Será a ave amarrada pelas patas que não se conformou com o confinamento da gaiola e que toda manhã esticará seu corpo até o máximo.

Até o máximo daquele dia.

Não pode se soltar, mas nem por isso se sentirá preso. Não é livre, mas nem por isso deixará de admirar a possibilidade de flanar.

Se não tem condições de brincar com as árvores, brincará com sua sombra.

Se não tem como brigar pela comida, valorizará o alpiste que recebe em sua tigela quebrando minuciosamente cada grão.

Se não tem vento para expor sua plumagem, baterá as asas para fazer vento em si.

Se não tem o sol na cara, levantará as unhas pelas barras das grades por um punhado de luz.

O pássaro que voará mais alto sempre é o que – enquanto não pode voar – canta, é o que – enquanto não pode subir – caminha, é o que – enquanto não pode planar – afia 

o bico.

Não reclamará da falta de opção, usará as opções que tem.

Não pode voar, mas treina seu voo esticando a coleira até o máximo. Até o máximo daquele dia.

Puxará a corrente ao limite. Somará pequenos céus com os centímetros de sua corrente.

Tudo o que voará depois será resultado de tudo o que andou em seus limites. Cinco passos repetidos à exaustão darão o condicionamento de quilômetros. Não estará 

destreinado para as alturas, já que exercitou seu fôlego no chão.

Não desistiu de avançar mesmo com a ausência de espaço. Não se restringiu a uma aparência apagada. Não se encabulou pelo sofrimento.

Quando não havia chance de sair dali, aproveitou a solidão para se conhecer.

Quando não havia com quem conversar, aproveitou o silêncio para afinamentos.

Deveria ser triste pelas suas circunstâncias, porém é feliz pelo temperamento.

Deveria ser melancólico pelo destino, porém é confiante no acaso.

O pássaro que desaparecerá um dia no alto das nuvens, como se fosse mais uma nuvem, foi o pássaro que jamais parou de tentar.

Só voará alto quem carregou suas penas.

Só voará alto aquele que criou seu lugar um pouco por vez, aquele que formou sua virtude em segredo, aquele que não culpou a vida para se manter parado.

Liberdade vem com o tempo, liberdade vem devagar, liberdade é esforço. Não ser do tamanho de nossa prisão, mas ser do tamanho de nossa vontade.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 17/09/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17556

BURRICE EXTREMA

Arte de Jim Dine

Todo apaixonado é bobão, distraído, feliz demais para pensar em como se defender.

Não dá para amar e ser inteligente ao mesmo tempo. 

Tem que escolher. 

Quem banca o inteligente vai se proteger, vai criar estratégias, vai se esquivar, vai fazer restrições. Não se entregará para não penar. Só encontrará defeitos em sua companhia para não se envolver. 

Quem é inteligente não ama.

Precisa ser burro para viver intensamente uma relação. 

Só o burro entrega sua vida sem pensar nada em troca.

Só o burro não está preocupado em agradar os outros. Mergulha direto, com vontade, desprezando a temperatura da água e dos olhos.

O amor depende de uma reserva de ignorância.

É começar uma história e acreditar que será para sempre. Se começar uma história duvidando, ela termina. Se começar uma história sabendo que um dia irá acabar, ela acaba no primeiro mês. 

Sou aquilo que você percebeu já no meu primeiro comentário na Rádio Gaúcha: sou burro. Maravilhosamente burro. Alegremente burro. Graças a Deus. 

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (17/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

NAMORO MADURO

Fotos de Mauro Vieira

Vinham pelo Parque Harmonia de mãos dadas no meio de uma tarde de 30ºC. O bagual e sua prenda. À moda cavalheiresca.

Ele com lenço no bolso para limpar suor, ela com leque na bolsa para abanar o rosto.

Gente antiga vivendo emoções novas.

Era o grande evento do início do namoro: visitar os pavilhões do Acampamento Farroupilha.

Eles mal andavam, paravam para rir, acarinhar, alisar os cabelos um do outro. Um casal de adolescentes no banco de shopping não faria igual vexame de arrebatamento.

– Estamos nos pegando – brinca Nilva.

Ela beija a boca dele e rouba um riso. Ele ri e devolve o beijo.

Aníbal Cardoso, 68 anos, e Nilva Barbosa da Rocha, 70 anos, namoram há 15 dias. A velhice passou reto por eles.

– O tempo nem acenou para nós, nos esqueceu dentro da paixão – completa Aníbal.

Nilva tem dois casamentos e três filhos. Aníbal, por sua vez, tem no currículo um casamento e quatro filhos. Uniram as histórias e as famílias.

– Juntando nossa parentada, montamos um piquete – brinca Aníbal.

Apesar dos divórcios e das separações, não renunciaram à esperança de encontrar uma alma parecida (“já que alma gêmea é muita ambição”, explica Nilva). Não foram chatos ou complicados ou cerimoniosos, toparam na hora a aventura de se mostrar novamente e recomeçar relacionamentos.

Os dois vivem se provocando. Como cavalos xucros.

– Vamos ver se completamos bodas de ouro – diz Nilva.

– De prata está de ótimo tamanho, né mulher? – atenua Aníbal.

Não há limite para se apaixonar. A paixão remoça.

Ambos se conheceram em um baile no CTG Cabos e Soldados do bairro Partenon, entre galanteios e cortejos.

– Chamei Nilva para conversar, falei que ela era bonita e dançadeira. Ela estendeu o laço do vestido, perguntei se era solteira e se queria ficar com gaúcho que gosta de sapatear.

Nilva não negou o fogo dos saltos.

– O amor maduro é o ideal, temos o pé no chão para não pisar nos calos do companheiro, temos vida própria para não se desesperar de saudade – pontua Nilva.

– E não é o sexo da noite, da virada, louco, mas o sexo de sesta, pensado, com carinho e colo – finaliza Aníbal.

Sexo realmente é melhor com intimidade, e produz, de graça, cintilação nos olhos.

O par brilha sem querer. Caminha feliz na sombra dos eucaliptos, alheio à fumaça dos churrascos. Esbraseados pela cumplicidade. Nilva chama atenção de Aníbal.

– Tá de braguilha aberta!

– É mesmo, desculpa, não vi.

– Não é para Ele passear, só você.

– Também não sei porque coloquei fecho na bombacha, bombacha deve ser com botão. Isso que dá inovar.

A observação já é coisa de quem está casado há tempo.

Um pequeno ato falho entre tantos acertos juvenis.


Publicado no jornal Zero Hora
Coluna especial Farroupilha por um dia, p. 23
Porto Alegre (RS), 15/09/2013 Edição N° 17554

domingo, 15 de setembro de 2013

AMIGAS SÃO MAIS QUE AMIGAS


Arte de Fatturi

As mulheres são incríveis.

Elas têm amizades para todas as tarefas e assuntos. Não dispensam uma segunda opinião. Sempre coletivas em suas decisões.

Perguntam até o que já sabem, para não sacrificar o costume, para ter certeza de que fizeram a melhor escolha.

Enquanto o homem é genérico, elas são específicas, altamente especializadas. Não querem correr o risco de se enganar, de cometer uma injustiça e unem suas curiosidades e somam seus talentos. Odeiam serem passadas para trás, adquirir algo pelo dobro do preço e sofrer os juros da pressa.

Minha namorada Katy, por exemplo, quando vai comprar roupa conta com a escolta de duas amigas.

Suas amigas superam a condição de amigas, ganham a dimensão de consultoras.

Ela parte para o shopping com uma ou com outra, jamais convida as duas juntas.

Por quê? Cada uma atende um propósito diferente.

A Letícia é chamada quando é o caso de garimpar peças e promoções. Há uma cota X para gastar e não tem como extrapolar. É a companhia da grana curta, da economia, com o faro do particular e do acessível em grandes lojas. Opera milagre com pouco. Transfigura água com gás em vinho. Ajuda a Katy a cumprir a meta. Não foram poucas as vezes em que ela voltou com sete peças festejando o orçamento de R$ 350.

Já Júlia é convocada no momento de uma superfesta, na hora de esnobar as etiquetas. É para procurar O Sapato, O Vestido, A Blusa, o artigo definido do figurino. As duas tumultuam as lojas mais chiques. Sequer mexem nos cabides, despem logo os manequins da vitrine. Saída fadada à falência e para se arrepender do exagero cometido com as demais amigas. 

Depois que regressa da expedição nababesca, Katy não realiza propaganda nenhuma, permanece calada, nunca confessa quanto gastou, e suspira mais seguido diante do espelho. Ela adquiriu uma saia na última semana e nem por chantagem abrirá os dígitos do investimento.

A Letícia é a inteligência da simplicidade, colega com traquejo para caçar nas araras um modelo incomum, revirar pilhas, bagunçar os provadores e aproveitar o que quase saiu de moda, mas ainda mantém o toque eterno do estilo.

Júlia é o equivalente a um sequestro. Compõe o momento faraônico, de puro e insano arrebatamento. É uma boa orientadora do que entrará em estação, da cor dominante, dos acessórios de tendência. Cúmplice da bebedeira consumista, com direito a ressaca e esquecimento financeiro nos próximos meses.

Ao partilhar suas dúvidas, a mulher encontra testemunhas de sua felicidade. O que é uma obrigação se transforma em intimidade, o que é um passeio se converte em autoconhecimento.

Comprar roupas é vestir amizades.

 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 15/09/2013 Edição N° 17554


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

HOMEM MAÇANETA

Você faz parte da portaria do banheiro?
Acompanha a mulher cada vez que ela levanta no bar ou na festa?
Pensa que ela pode desaparecer misteriosamente?

DRnaTV foi descobrir quem são os "homens maçaneta". O programa foi ao ar na terça (10/9), na TVCOM, com mediação de Sara Bodowsky.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

QUANDO O CACHORRO OLHA TUDO

Arte de Eduardo Nasi

Não consigo transar com cachorro olhando.

Eu fico pensando o que o cachorro está pensando daquilo.

É um menage à trois espiritual.

Coitado do cachorrinho condenado a presenciar a sequência de loucura carnal, gritos e acrobacias estrambólicas para sua espécie.

Não tem problema de o cachorro adormecer com sua dona, a gravidade está em não colocá-lo na sala durante a transa.

Pode ser limitação de minha parte, mas é traumatizar o bichinho.

Meu amigo Carlinhos pagou o pedágio do constrangimento.

Iniciara uma relação com Emília, corretora de imóveis. Estavam cochilando quando o jogo das carícias esquentou.

Ele experimentava aquele momento de entender a mecânica da casa: intimidade recente, mergulhado na condição fantasmagórica de visitante. O respeito era maior do que a própria opinião, fase que não se usa o banheiro sem pedir licença.

A namorada tirou a roupa enquanto o Terrier roncava no canto da cama.

Carlinhos arriscou argumentar:

— Não é melhor…

— Não, ele não dá bola…, ela respondeu de supetão, não permitindo que concluísse a frase.

Não dar bola remeteu a cenas anteriores com outros parceiros. Não foi legal. Quer dizer que ele não incomoda, e isso já aconteceu várias vezes, por sinal.

Para o homem, o sexo deveria ser superior a um cachorro olhando. Carlinhos não desperdiçaria a chance e também tirou a roupa.

Quando desenvolveram o vaivém frenético, não é que o Terrier se aproximou de Emília e passou a lamber seu rosto?

A interrupção levemente incomodou Carlinhos, que fingiu entender a queridice, mas também cuidou para registrar onde o Terrier lambia e não repetir o lugar da investida.

Manteve sua postura concentrada. Homem distraído broxa.

Além de namorar Emília, precisava encontrar rapidamente um jeito de se proteger do ciúme canino.

Simultaneidade não é o ponto forte do macho. Fez de conta que estavam a sós, que o cachorro representava um boneco de pelúcia. Um boneco com pilha, pois se mexia.

Com o aumento dos gemidos da namorada, o cão acirrou o cerco. Já rosnava, já latia, já mexia o rabo com violência, já ia para trás com o corpo e para frente com o focinho, como um animal de guarda pressentindo perigo.

Apesar dos inconvenientes, Carlinhos insistia em transar com Emília. Ela, invocando os espíritos de quatro; ele, segurando a cintura dela com força.

O Terrier não desistia. Ainda era possível gozar, ainda, até o instante em que Emília se preocupou em acalmar a mascote:

— Para de latir, ele não está machucando a mamãe!

Só um ninja para não se abalar com o comentário.


 



Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 10 de setembro de 2013

MINHA FILHA E EU




Minha filha saiu de casa para morar com o namorado.

Estávamos estremecidos. A gente não se falava tanto quanto antes, não nos perguntávamos tanto quanto antes.

Os telefonemas e os encontros foram ficando econômicos, com pausas apressadas e interrupções súbitas.

Dois cachorros magros escondendo as vozes como ossos no quintal.

Ela tem 19 anos, já é adulta e não aceita coisa alguma que seja imposta e que fuja daquilo que planejava.

Eu sou pai, e minha chatice é eterna, não escapo da preocupação com o futuro e com a universidade que pretende cursar.

Incomodo mesmo, recupero o assunto do vestibular sempre que abre uma brecha. Ela se irrita com a pressão.

Decidi ser duro, inflexível, ganhá-la no cansaço. Acredito que, com paciência, a ditadura poderia render frutos.

Só que a vida não pede para que a gente tire os óculos para nos bater.

Com o divórcio, eu adoeci e a filha armou uma trégua e veio me cuidar. Dar sopa, chá e oferecer seu olhar caído para levantar o meu.

Desde que viu seu pai enfraquecido, ela mudou. Ou eu mudei. Na verdade, ambos mudaram. Não existe mudança no amor que não seja recíproca.

Mariana assumiu o posto de conselheira e sentei na cadeira de aconselhado. Invertemos os papéis. Ela me ajudando a entender e organizar o passado e eu, absolutamente surpreso e estarrecido com sua maturidade.

Meses de intensa troca, convívio miúdo e a certeza de que não perdemos em nada de nossa intimidade.

Mas faltava algo, faltava atravessar uma fronteira entre as palavras amenas e educadas. Ainda era gentileza. Ainda havia formalidade entre nós.

Faltava algo que somente tive em sua infância: que demonstrasse uma fé, uma confiança, uma esperança em mim mais do que em qualquer homem.

Quando regressávamos de viagem de São Paulo, testemunhei o milagre.

Lado a lado, no meio do voo, ela adormeceu em meus ombros.

Fazia muito tempo que eu não vigiava seu sono. Fazia muito tempo que não se entregava ao cheiro de meu casaco. Fazia muito tempo que não controlava sua respiração.

Naquele instante, com a mão trocada, acarinhei seus cabelos e cantei baixinho sua música de ninar: “Lá vem a morena subindo a ladeira, com o pote de mel, um pote de luz, bem perto do céu...”.

Ela regressou ao meu colo, ao colo de pai, que é muito mais importante do que voltar para casa.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 10/09/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17549

QUE SEJA EXPLÍCITO

Arte de Hans Hofmann

Há elogios perigosos, elogios que atendem mais à educação do que a verdade, elogios que são tiros pela culatra.

"De outro planeta": ET
"Simpático": feio
"Ficou diferente": ficou estranho
"Fofo: gordo
"Está bem melhor": antes estava horrível
"Foi um bom filho": não resta nada mais a dizer do morto

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (10/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

MUDEZ NECESSÁRIA

O silêncio na relação pode ser positivo?

Silêncio no cafuné depois do almoço, silêncio de mãos dadas?

Qual o momento em que ele se torna perigoso?

DRnaTV foi ao ar na terça (3/9) na TVCOM, com produção de Fernando Muniz e mediação de Sara Bodowsky.


sábado, 7 de setembro de 2013

CORAGEM DA CHUVA

Arte de Fatturi

Na véspera da tempestade de granizos, minha família se dividia em dois grupos: os que se protegiam da chuva e os que festejavam a chuva.

Mãe e irmãos ajudavam a fechar as venezianas, a desalojar as velas das gavetas, a lacrar as portas e se esconder na sala com pavor dos relâmpagos. Receavam o pior, o destelhamento com as pedras, a infiltração pelas paredes. Formavam uma brigada de prevenção.

Já eu e meu pai nos dirigíamos para varanda como se fossemos passear. Sentávamos no banco de madeira, com a aguaceira nos pés, a admirar a tempestade.

Leves, livres, convictos. Adorávamos os pinotes das folhas, as cambalhotas dos galhos, o pipocar dos blocos nas lajes.

A água maquiava nosso rosto com uma fria camada de pó.

Havia uma cumplicidade com o céu violáceo, estranho, absurdamente surpreendente.

Apontávamos qual o raio mais bonito, o mais sonoro, o mais longo, o mais próximo.

Não tínhamos medo, mas ansiedade feliz pelo espetáculo nervoso da natureza. Era como um teatro vazio, só eu e ele, armados dos dois únicos ingressos vendidos, para ouvir a orquestra das árvores deslizando seus violinos de vento e seus violoncelos de assombro.

Ríamos de nossa coragem, enquanto os familiares gritavam em desespero para que a gente entrasse logo, que parasse com aquela brincadeira estúpida.

– Você são loucos!

E meu pai respondia:

– Sim, somos! Agora nos deixe com nossa loucura – e me abraçava carinhosamente entre seus ombros.

Meu pai recolhia uns blocos de gelo para colocar em seu copo de uísque e no meu de limonada. E brindávamos os sabores da vida adulta com o da infância.

No amor, é igual: há os que temem a chuva e os que se jogam para vê-la na sacada.

E não adianta ensinar alguém a amar a tormenta – ela deve estar no sangue.

E não adianta fazer quem gosta de participar das trovoadas se recolher em casa.

Os opostos não se atraem. Os opostos disputam quem tem razão.

Não dará certo juntar aquele que é travado para o relacionamento com aquele que é intenso, aquele que pretende controlar os fatos e o que pretende inventar seus próprios fatos.

Sua companhia irá parar de repente, e você puxará pela mão jurando que um dia tomará confiança e virá. Não virá, jamais virá.

Pode desejar carregá-la que ela cansará do mesmo jeito. Pode querer explicar que não é necessário ter medo, que não acreditará.

Enquanto exclamar “venha dançar na chuva”, ela se trancará no quarto esperando que passe.

Meu pai me explicou, lá na minha criancice, que temos que procurar a parceria certa.

Só dois passionais não cobram passos, estarão correndo e nenhum dos dois se sentirá desacompanhado.

Não vão se atropelar porque partilham a mesma velocidade da ventania, o mesmo gosto pelo imprevisto, o mesmo susto de ser.

Os relâmpagos iluminam os loucos.

 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 8/09/2013 Edição N° 17547


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

DILEMA

Arte de Marcel Duchamp

As pessoas são curiosas, engraçadas.

Quando nos separamos de alguém, elas não toleram o nosso sofrimento. Pedem para terminar logo o coitadismo, a dor, as ladainhas da angústia. Avisam que é hora de sair da depressão, abandonar a casa, procurar relacionamentos.

Mas quando nos levantamos e passamos a namorar de novo, elas reclamam que foi cedo demais, que parecia que não era amor, que não respeitamos o luto.

Os amigos estão a favor da nossa vida ou da vaia?

Não há casamento que não se faça no velório.

Ouça o que falei na manhã de sexta (6/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

SELVAGENS

Arte de Eduardo Nasi

Eu gozo quando a vejo gozar.
 
Não resisto aos seus gritos derradeiros, aos seus gemidos abafados, ao gesto imponente de morder o próprio dedo na euforia.
 
É você gozar que eu gozo.
 
As paredes são janelas quando amamos. As portas parecem abertas quando amamos. Os vizinhos acordam quando amamos. Uma igreja no domingo não faria tanto barulho.
 
Com o assobio do beijo, se aproxima de meus ouvidos para me avisar que está vindo, e vou junto, me entrego junto.
 
O tempo torna-se um longo zumbido, a ponto de não diferenciar seu timbre do meu, a ponto de não diferenciar o que é voz do que é voo. Nossas respirações não respeitam os limites do terceiro andar.
 
Você desliza com sua língua em meu pescoço, faca que me cicatriza, e se afasta um pouco para oferecer a distância mínima de um espelho. Enquadro seu rosto no meu, e todo esgar me excita, todo pronunciamento de seu queixo me excita, toda mudança de expressão me excita. Alucino-me com sua tez ardendo suavemente, guardando nossos dias em sua pele.
 
Descobrimos as melhores lembranças já no momento em que vivemos. É a memória da memória. É o desejo do desejo.
 
Eu me controlo até vê-la gozar. Depois não há mais o que fazer, senão aceitar o destino e acompanhá-lo.
 
Meus braços serão alavancas de seu salto para dentro. Minhas mãos serão âncoras de seus cabelos loiros. Meu peito é puro encordoamento do seu impulso.
 
Tudo é breve e infinito, tudo é transparente e denso.
 
Não há espaço para recuo, chance de voltar. É agora avançar ao desmaio, à plenitude do cansaço, ao esgotamento do riso.
 
Você gira seu corpo com a fúria de uma árvore no inverno, com a fé de um mar no verão.
 
Sua delicadeza me contagia de ciúme. Você é unicamente minha. Eu sou unicamente de você.
 
Não peça que tenhamos modos, controle, equilíbrio. O que sentimos é posse, é possessão, é pertencimento.
 
Você que toma água mirando o fundo do copo acaba me sorvendo jamais se desviando do fundo dos meus olhos. Você que me abraça na ponta dos pés estica as pernas ao balé do desenlace.
 
Fixa, inteira, absoluta.
 
Sua cintura é mais musical do que as curvas de um violino. Seus seios só me agradam de tanto me agredir. Sua nudez é sempre outra nudez: mais linda do que aquela que conhecia antes.
 
Eu gozo por vê-la gozar.
 




Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira

terça-feira, 3 de setembro de 2013

AS VELAS DE MEUS DIAS


Enquanto acendo as luzes da casa, ela as apaga.
 
Uma por uma. Como se fosse uma sombra me economizando, me escoltando.
 
Se amo as mulheres, se nunca desisto de amar as mulheres, se admiro as mulheres, é também por ela: Cléo, minha empregada.
 
Ela é meu anjo moreno de cabelos crespos, minha mãe, minha irmã, minha confidente.
 
Já me levou no colo quando estava exausto para repor os caminhos. Já velou meu sono na sala quando não me restava ânimo para acordar.
 
Recolheu minhas roupas no porre. Recolheu minha estima em separações e me colou com bonder na manhã seguinte.
 
Nunca estou sozinho, porque minha solidão tem as janelas abertas pela Cleunice.
 
Nunca sou longe, ela vem de catamarã com a simplicidade de quem caminhou apenas duas quadras.
 
Já a vi chorar no meu lugar, já vi me defendendo da indiferença, já vi brigar com raiva em nome de minha paz.
 
Ela é um romance inédito. Foi separada, viúva e agora vive casada. Quando fala, meus ouvidos deitam. Sua memória é meu melhor conselho.
 
Sofreu bem mais do que eu, e me cuida como se meu sofrimento fosse único. Não subestima as pálpebras pesadas.
 
Ela ri no momento errado para torná-lo certo. Quer me explicar, com suas echarpes coloridas e suas botas de cano longo, com seu batom escuro e seus brincos de argola, que a alegria nos devolve a humildade. Todo triste é arrogante, por sua vez o temperamento alegre se dedica a carregar as pedras dos pensamentos sem reclamar.
 
Quando enfrentei dificuldades, Cléo me trazia uma camiseta do Centro Espírita para vestir na hora de dormir. Durante um mês, benzia o pano e me alcançava. Fora do horário de serviço, em sua folga.
 
Há pessoas que nos amam neste e em outros mundos. A fé ainda pode ser muito visível para o olfato: ela é minha santa, minha protetora, minha benzedeira.
 
Não tem ensino universitário, mas ninguém lê meus textos com tamanha devoção. Ela reza meus textos. Copia frases de crônicas que ainda não foram publicadas em seu Facebook – a impressão é de que me tornei seu plágio.
 
Ela tem 1m53cm, mas é imensa. Quando a observo, meus olhos vão para o alto: sua estatura é do tamanho da voz.
 
Ela canta quando cozinha. Já comi várias de suas canções.
 
Ela acolhe meus filhos como se descobrisse minha segunda e terceira infância.
 
Sempre ela, sempre presente: Cléo completa 50 anos, e os dois anos que dividimos são séculos de amizade, séculos de admiração, séculos de afinidade.
 
Enquanto a casa vai no escuro, acende uma por uma das velas.
 
Por mim. Por mim. Por mim. Por mim.
 
Sou feito de sua chama. E de sua concha das mãos me guardando para quem me mereça.



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 3/09/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17542

BILLY THE KID


No faroeste do amor, não dá para atirar a todos os lados. No meu bando de comparsas, temos regras, um código de ética. Mandamento básico: não ficamos com a ex de amigo. Ex de amigo é homem. Ex de amigo é barbado. Ex de amigo é barbudo. Pode ter sido um relacionamento antigo, pode ter sido namoro de infância, um selinho inocente, a ex de amigo é riscada do vocabulário. Nem começamos, não jogamos corda, cortamos o mal pela raiz.

Nunca definiremos se o sujeito superou ou não o passado. Ele pode mentir seus sentimentos. Não há como arriscar. Não vale a pena castigar o passado de um colega. Amor é bom quando não maltrata a amizade.

Não basta ser homem, precisamos ter hombridade.

Já as mulheres, já as mulheres, já as mulheres....

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (3/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:
 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A MÁQUINA RECEBE MV BILL

O rapper MV Bill conta que a figura paterna provocou revolta na sua infância.

Foi a música que falou na adolescência o que ele gostaria de ouvir do pai.

Ele foi o entrevistado de meu programa A Máquina, exibido na terça (27/8), na TV Gazeta.

domingo, 1 de setembro de 2013

MEU CORAÇÃO EM TUAS MÃOS

 
Arte de Fatturi


– Escute meu coração! – ela me pediu.
 
Achei bobagem. Concluí que era coisa de criança, que adultos não deviam perder tempo ouvindo o coração.
 
Lembrava uma infantilidade, uma doçura extravagante.
 
Apesar de minha recusa, ela colocou minha palma esquerda sobre seu peito.
 
Fingi interesse até que a sequência virou música.
 
Fazia muito que não ouvia o coração com as mãos.
 
A mão é o ouvido perfeito.
 
A mão é uma concha natural; o oceano nos dedos.
 
Naquela hora, eu capturei o animal acelerado, seu silêncio enervado, seu desejo correndo para todas as veias da boca.
 
Espantei-me com a banalidade, a redescoberta do óbvio, como se estivesse aprendendo a amarrar os cadarços depois de velho.
 
Eu entendia o que ela estava sentindo melhor do que se falasse. Eu via que ela era real, e que ela era possível.
 
As palavras foram se tornando palpáveis. As frases cresciam em sentido. É como um coro que desmancha a solidão do pensamento.
 
Eu me apavorei com o meu desconhecimento do gesto. Por que não cumprimento as pessoas escutando seu coração?
 
Por que abandonei o hábito de pequeno? Por que reservei a mecânica ao médico?
 
Por que não me permitia ser despudoradamente emocional?
 
Ouvir o coração é como acompanhar os passos num piso de madeira. A gente identifica o familiar avançando pela casa, somos capazes de adivinhar o cômodo em que se encontra.
 
Ouvir o coração é como ouvir um órgão numa igreja, não um piano.
 
Há uma diferença de fundo. Os tubos de metal e de madeira ressoam como um segundo sino, em caixas de cinco andares.
 
Ecoa um planger épico, inevitável. O corpo já treme ao andar.
 
O coração é mesmo um altar, mas quem ainda escuta?
 
Ouve-se o batimento da criança no ventre, os pais se emocionam com os primeiros sinais de vida de seus filhos, mas nos desacostumamos com o próprio ritmo. Ninguém nos inspira ou exige sua consulta.
 
Esquecemos de conferir o beijo, o abraço e o toque registrados lá, na linha cardíaca.
 
Com o coração dela em minhas mãos, compreendi qual o nosso medo. Quem escuta o coração não machuca o outro. Será responsável pela fraqueza. Sofrerá esperando o próximo suspiro do som. Estará consciente do intervalo de cada batida. Tem noção do que é ferir, e como dói ser sozinho.


 
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 1º/09/2013 Edição N° 17540