segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O BEIJO NA BOCA



Casais que não se beijam na boca estão se separando. Vão se tornando amigos, parentes, irmãos, até se esquecerem de caminhar de mãos dadas. Vão se apartando do cheiro da pele, do gosto do abraço, das provocações infantis de corredor, das pernas alisadas no fundo da coberta.

O beijo na boca é a autêntica aliança, o ouro que vinga, a certidão que não desbota. Só que me refiro ao beijo mesmo, de girar o corpo, o pescoço, o rosto. Selinho não conta, onde os lábios são uma carta para quem já está distante. Beijo seco também não vale, onde não há a ameaça de morder os lábios.

O beijo molhado é que une. Um beijo úmido por dia renova o amor. O beijo de quem tem saudade dos tempos apaixonados, um beijo que ainda sopre de volta os elogios ditos um para o outro. O beijo sussurrado, em que os sons tremem com as respirações próximas.

O beijo que não tenha a necessidade de ser pensado demais senão surge sem jeito, forçado, cinematográfico. O beijo que seja um segredo a dois, que você extravie o horário e suspenda a noção do lugar. O beijo que toque uma canção dentro, que desperte a vontade de dançar.

O beijo de língua não permite o vazio crescer, a lacuna, o lapso. Pois uma ausência dentro de casa ainda tem conserto, duas ausências não têm como recuperar – o par esqueceu o amor em algum lugar das lembranças e não correu para reaver.

O beijo de língua desfaz as formalidades, os medos e a educação que esfriam a relação. Beijo de língua é beijo para combater o tédio, a mecânica repetida dos gestos. Beijo de língua salva os desaforos, perdoa as críticas e as cobranças. É como uma janela batendo com a chegada da chuva, uma porta batendo com o vento. É um susto que põe o coração a bater de novo.

Nem o sexo resolve o que o beijo faz. A transa sem beijo é apenas desafogo, catarse, apego de bichos. O beijo com língua é o que nos singulariza entre os animais. Casais felizes sempre se buscam pela boca. É uma receita simples de longevidade. Sem o beijo, a pessoa tem a vontade de largar tudo e ficar sozinha. Com o beijo, ela não perde a vontade de largar tudo, mas com a diferença de querer levar junto aquele que ama.

COMO SERÁ A SUA MULHER NO FUTURO?

Foto de Gilberto Perin

Uma manha para projetar como será a sua mulher no futuro é reparando na sogra, o temperamento, a implicância e como resistiu ao tempo. Mas, às vezes, a sua namorada puxa o pai e você estará observando o lado errado da família.

Uma tática mais bem-sucedida para firmar a profecia é esperando o primeiro porre de sua companhia. A primeira embriaguez. Quando acontecer, esteja dirigindo e tome unicamente água. Se beber junto, renunciará a confiabilidade da memória.

O aproveitamento é maior do que mapa astral, cartas de tarô, búzios e borra de café árabe.

Uma mulher quando bebe perde as censuras. Fala o que não deve, fala o que sente, assim como é a na velhice. A velhice potencializa a honestidade. Faz sentido. Uma mulher bêbada é uma idosa sóbria. Pois o idoso não espera o melhor momento para derramar a verdade em sua cara, ele cria o momento, impõe a sua opinião. Tanto o velho como a criança são cruéis em sua sinceridade e não tem como controlá-los.

Deste modo, a mulher alcoolizada revela o que será. Não se trata de uma pomba-gira ou de uma nova personalidade se mostrando, é ela mesmo daqui a algumas décadas.

Há vários tipos de embriagadas.

Existe a mulher-encrenca: que abre a pista e grita a cada novo drinque, que arma coreografias impensadas, apresenta uma versão invertida do Lepo Lepo e troca o beijinho no ombro pelo improvável beijinho no umbigo,  seduz estranhos e certamente lhe envolverá em uma briga até o final da noite. Nunca estará satisfeita. Vai sugerir uma saída à francesa e ela criará um barraco à brasileira. Você tentará ajudá-la e ela confidenciará segredos do casal:

- Ele é filhinho da mamãe!

- Ele não aprendeu a amarrar os cadarços!

- Ele ronca!

- Ele é um desastre na cama!

Colocará na roda coisas deste tipo para baixo. Se vir a aparição da mulher-encrenca na alma de sua namorada, cogite seriamente a separação, enquanto é possível se desligar, porque sofrer vicia e talvez nunca se afaste desse terremoto.

Existe também a mulher-sensível. Bebe e chora, bebe e se emociona, bebe e passa a pedir desculpa por tudo aquilo que errou na vida. Como sua voz está incompreensível, perdoa sem entender, como um padre diante dos murmúrios da extrema-unção. A velhice dela não será uma ameaça, mas certamente você nunca terá razão, ela será sempre a vítima de qualquer briga.

Existe ainda a mulher-amiga-de-todo-mundo. Talvez seja a mais estável. Empina os copos e continua aparentemente sóbria. Circula gentil e atenta, apenas aumenta a sua capacidade agregadora na noite. Improvisa piadas, mobiliza os casais entediados, é simpática com os garçons, consegue mesa vip, e não provoca escândalo. Parece que engoliu Ritalina em vez de álcool. Terá uma velhice sábia e generosa, com a experiência amparando as suas escolhas.

Não posso esquecer a imbatível mulher-sarjeta, ela fecha os olhos, balança a cabeça e desaparece para dentro. É um ioiô, é um pião, sacode, pula sem parar, não fala com ninguém e só termina a sessão de exorcismo na privada. Não tem limites. Dificilmente chegará na velhice. Seu exemplo antecipa que será viúvo.

E, por último, a mulher que não bebe, a mais misteriosa e indecifrável. Por via das dúvidas, não deixe de monitorar a sogra.

AZAR DO MEDO

Arte de Eduardo Nasi

Passamos sempre uma versão mais tranquilizadora a nosso respeito. Um filme editado, de acordo com as nossas intenções. O rolo bruto fica guardado na câmera para nunca ser mostrado.

Temos medo de não sermos aceitos, e vamos refinando a versão, adaptando, colocando e tirando informações e lembranças. Não que a verdade tenha mudado, dificilmente muda de um relacionamento anterior para o atual, pois a verdade requer tempo, análise e enfrentamento.

Justificamos o nosso nervosismo com uma origem bastarda: ou pela sobrecarga de trabalho ou pela falta de dinheiro ou porque cavamos um descuido da companhia e exploramos o conflito do ciúme e da deslealdade.

Mas a cólera é sinal de alguma falsificação. Perder o equilíbrio é aviso de impostura. Ali está demonstrando que vem mentindo.

Coitada de nossa interlocução que acabará não compreendendo como banalidades geram tamanha raiva, e não geram mesmo – é mera transferência de foco.

Quando alguém chega perto da ferida, rechaçamos para longe. Fomos treinados a não confessar as nossas fraquezas. Como a vulnerabilidade é usada nos momentos errados das brigas, evitamos perder a vantagem.

Arrumamos intenções para esconder as vontades, inventamos argumentos a cada discussão para despistar o que incomoda. Não expomos a raiz do problema, balançamos as folhagens com força para distrairmos a atenção.

Criamos uma ilusão de que o nosso par corresponderá as nossas expectativas. Porém, não percebemos o quanto elas são irreais, montadas, forjadas para confortar e não indicar o que realmente queremos.

Forçamos o outro a ser o que mentimos que somos. Assim não exigimos que o outro seja igual ao que somos, exigimos que seja o que não conseguimos ser – eis a trapaça.

O fracasso é previsível no espelho do impossível. E não tem como dar certo o que não é real: estaremos brigando pelos reflexos de nossas ações e jamais por aquilo que merece e importa. Gritaremos em defesa de projeções, jamais pela natureza autêntica das angústias.

O que devemos falar e não falamos? Não sei. Pode ser uma desavença com os pais ou uma disputa com irmãos ou um bullying na adolescência ou romances equivocados. Algo antigo que não foi cuidado, um quarto trancado vendido com a casa. E tampouco temos a obrigação de saber. A questão é que, em vez de colocar a culpa e a motivação em quem nos acompanha, cabe pedir simplesmente ajuda. Pedir ajuda é começar a entender.

Toda honestidade é pobre, não tem efeitos especiais, não desfruta de excesso de palavras, não soa bonito, não é Shakespeare, não produz encantamento. É ser direto com aquilo que nos provoca receio. Azar do medo, sorte do amor.

A FALTA DE CONTROLE

Não inventaram um portão eletrônico que se abre de longe. Por mais que os vendedores digam que é somente questão de uso. É uma balela. Todos os motoristas de meu bairro passam pelo constrangimento. Não há um objeto mais xingado do que o controle da garagem, mais do que o telefone tocando sem parar no sábado e domingo com oferta de telemarketing.

O controle ativado a distância é a maior mentira da civilização. Não compreendo como somos tão avançados em tecnologia e não resolvemos nem o controle neolítico da garagem, muito menos o interfone, sempre barulhento, sempre trocado semestralmente pelo síndico com a esperança de que "agora vamos resolver".

Você aperta o comando a meia quadra, nada acontece, depois a 100 metros, 50 metros, 30 metros, 20 metros, 10 metros, e não abre. Você está beijando o portão e ele não se mexe.

Quer entrar rapidamente na garagem para evitar assaltos, mas não funciona a mágica. Eles vão dizer que é problema de pilha, a mesma desculpa. Mas o controle é novo, recente, o 15º modelo.

Desejam enganar quem, logo nós, peritos e velocistas dos controles de televisão e ar-condicionado?

Você aperta histericamente os dois botões (por que dois botões? Já sugere que um deles não é confiável).

Não há explicação, tenta encontrar um jeitinho no manuseio, pressionando bem em cima, nos ladinhos, segurando por três segundos, dando um toque rápido, mas nenhum sinal de levantar a grade. Daí você baixa a janela, fica estendendo o braço para fora desesperadamente, pedindo carona para a sorte. Começou a rezar. Começou a proferir o patético "abre-te sésamo". Começou a delirar. Em seu medo, já foi sequestrado, coberto por um capuz, torturado e o seu cadáver repousa agora no porta-malas.

É muito tempo perdido, já estaria dentro de casa se o portão fosse manual como na infância.

É uma vergonha ter que sair, deduz que os vizinhos estão nas arquibancadas das janelas observando a sua incompetência. Só que não tem mais o que fazer. Apaga o veículo, puxa o freio de mão e perde a aposta consigo mesmo. Desce do carro. Desce e aponta o controle perto das barras, derrotado.

E o portão sobe lentamente e você entra na boca aberta do prédio rindo de sua cara.

IRMÃOZINHO CHEGANDO


Depois do terrorismo familiar, estamos preparados para qualquer batalha. Quem é filho único não tem a mesma doutrinação militar.

Morar com irmãos exige resistência emocional. É fundamental suportar as oscilações dramáticas de uma vida coletiva, o que corresponde a errar, contornar o orgulho e pedir desculpa ou a de não assumir a falha, colocar a culpa no outro e fugir do castigo. São várias opções em cada cena, todas complicadas, com o diabinho e o anjo da guarda cochichando nas orelhas.

Além dos tradicionais e declarados bons sentimentos, existe o ciúme, a inveja e o medo, sentimentos que partem do insano ato de dividir brinquedos, a casa e os próprios pais.

Recordo a infância de Luiz Antonio. Ele era o segundo filho, sob a influência do conselho e da proteção do mais velho. A mãe estava grávida do terceiro rebento. A escadinha ganharia mais um degrau.

Luiz partilhava o quarto com o mano maior, distribuído em duas camas e um único armário. Não é que o primogênito lhe chamou para conversar sério.

– Olha, você notou que vamos receber mais uma pessoinha no nosso apartamento? Não terá espaço para você e será obrigado a ir embora.

O menino de quatro anos levou a sério a brincadeira. A ideia do orfanato da rua pesou em seus ombros. Enfrentou os meses finais da gestação de modo casmurro e lacônico. Mudou o seu comportamento na escolinha e na mesa. Mal falava. Mal ria. Mal fazia alguma pergunta com receio da clara resposta de despejo. O silêncio cobriu o seu semblante e não duvido que não tenha surgido a sua primeira ruga precoce.

Quando os pais foram para o hospital, Luiz tratou de fazer uma malinha. Botou dentro dela o pijama, o uniforme da escola, um par de kichute, as bolitas e o pião. Estava conformado com a partida.

Foi a mãe chegar com o bebê no colo que ele pediu licença, desculpou-se pela má hora e se despediu.

– Tchau, gente, amo vocês!
– Que foi, filho?
– Não há mais cantinho para mim, e o nenê é pequeno demais para dormir no chão.
– Não, Luizinho, você fica e a gente arruma um jeito.

O pai resolveu a situação chorosa brincando, com espírito leve, acostumado a comandar a diplomacia dos meninos quando disputavam a bola e os talheres.

Já o irmão mais velho, malandro, pressentindo que sobraria para ele, ainda deu uma de herói e foi elogiado pela generosidade durante muito tempo:

– Pode ficar com a minha cama!

Ninguém nunca soube a verdadeira história.

ATÉ A SORTE TEM LIMITE

Foto de Gilberto Perin

Pode escapar ileso de um acidente ou sobreviver a uma moléstia séria: em vez de se abrir à fragilidade do cotidiano, você se fecha totalmente e jura que é imortal e nada irá atingi-lo. Assume uma onipotência na família e nos relacionamentos, achando que é mais forte do que a morte e não muda a insensibilidade do trabalho e das tarefas.

Não se deu conta que recebeu o aviso prévio da vida. Desprezou a notificação dos limites. Desdenhou da censura das fronteiras.

É um reflexo natural de quem se aproxima do fim e não tenta recuperar a qualidade dos laços, desfazendo inimizades e realizando os desejos mais genuínos. Acredita que o acidente foi impessoal, uma casualidade externa, jamais uma necessidade interna, que não é uma formalização do término de sua história por aqui. O envolvido favorece, portanto, o desfecho impiedoso, quando deveria aceitar a ampulheta virada, acolher as dúvidas e questionar o sucesso de sua existência no espaço que lhe sobra.

Mas a invencibilidade desafia a prevenção. E o comum é empreender a viagem de volta com a reserva do tanque e parar abruptamente no caminho.

Assim, quem transa sem camisinha e contrai uma doença venérea, suspira de alívio que não é HIV, HPV e sífilis, e continua tendo relações sem proteção. Não assumiu a gravidade da advertência, pelo contrário, reforçou a ideia de que jamais vai lhe acontecer algo de ruim. Troca a felicidade de posteriores cuidados para comemorar o provisório alívio.

O mesmo ocorre com quem dirige bêbado em alta velocidade. Mesmo ao colidir, não remodela a sua conduta depois, pois permaneceu vivo longe de desfechos dramáticos e apenas enfrentou danos materiais.

A trégua não corresponde ao encerramento da guerra, refere-se a um período para se recompor e acertar as contas. Por isso todo doente terminal tem uma alta antes de cair definitivamente. Joga-se de volta ao mundo em que estava, carregado de obrigações, e não vê que não desfruta de condições para seguir de modo igual. Ele pensa que pode tudo, porém só ganhou um tempo para se despedir.

O destino sempre é educado e oferece um sinal antes de levá-lo embora. A noção de que a tragédia é exclusividade dos outros embota o entendimento da mensagem.

O aviso prévio deveria ser aproveitado como uma sobrevida para colocar a alma em ordem. Ou para legar saudade, e não culpa, a aqueles que ficam.

FALAR É AMAR

Arte de Eduardo Nasi

Tudo o que é bonito e não tem com quem dividir dói por dentro. Pássaros na janela, bolinho de chuva, lua cheia, um filme sensível, um livro feito de suspense, a neblina cobrindo o rio, as estrelas no alguidar da noite, uma orquídea brotando sua pétala de colher. Tudo o que é lindo se não é partilhado sufoca, cria ansiedade, maltrata a solidão. Não temos como segurar a beleza muito tempo dentro da gente, senão ela vira dor muscular, tensão, medo.

Olhar é esquecer. As palavras são nossos olhos para guardar.

O impacto das recordações reside no fato de contá-las. A vida pede passagem muito rápido e temos que anotar o que sentimos na primeira pessoa que aparece em nossa frente. A folha de rosto é o rosto do amigo.

É descrevendo que a beleza aumenta, que o quintal se transforma em rua.

Beleza retida é angústia. Beleza falada é deslumbramento.

A emoção vem da transição do mundo interior para o exterior, do choque da passagem.

Da minha infância, mantenho o que falei ou que viram que eu fiz. O que amei em silêncio sumiu no turbilhão de imagens sem a senha e a frase de segurança.

Guardei apenas o céu da meninice porque narrava aos pais onde a  minha pandorga ia, quais nuvens caçava, se era rinoceronte ou javali.

A pandorga é a minha gaveta do céu. Quando ainda toco na pandorga, vejo o que senti naquele tempo de caça aos ventos, vejo as minhas letras presas nos gravetos.

Esqueceria se não descrevesse. A memória pode vir a ser um terreno baldio ou um jardim. Podar é cortar e editar as lembranças. Aquele que não escolhe o que foi não é nada.

Fale o quanto você ama alguém, para o amor multiplicar. Não economize. Não seja lacônico. Não deduza que é desnecessário, que o outro já sabe. Não confie na telepatia e na leitura de pensamentos. Palavras também são gestos. Longe das testemunhas, o que vivemos é ilusão.

APAGAVA OS LIVROS PARA O MEU IRMÃO MAIS NOVO

Quando terminava o ano letivo, eu tinha a missão de reunir os livros usados em aula e apagar o que escrevi para oferecê-los ao caçula. Era uma obrigação limpar as respostas. Levava dias e duas borrachas brancas para desaparecer com aquilo que aprendi durante uma série inteira.

Da lista escolar, apenas comprávamos os cadernos. Estudávamos na mesma escola e reutilizávamos os livros de exercícios.

O meu irmão mais velho reproduzia o gesto comigo. História, geografia, matemática, língua portuguesa e ciências, as obras migravam de um nome para outro na aba de rosto sem trocar o sobrenome. Folheava os fascículos e em cada pergunta constava o relevo da letra emendada do Rodrigo, como um adubo do meu conhecimento, papel vegetal de minha alma. Ele nunca deixava nada sem preencher — a sua inteligência e presteza me apuravam. Queria ser como ele, desta forma seria melhor do que eu.

Suas marcas me inspiravam a não desistir, a cavar a solução dos problemas e equações. Pois, se ele respondeu, é que existia a resposta, isso me confortava a continuar buscando o resultado no fundo da memória. Às vezes, quando não sabia a questão, tentava trapacear e passar a minha letra por cima da dele. Nunca estive sozinho na dúvida. Ele me apoiava secretamente, tal tutor da caligrafia.

Predominava na época uma grave consciência de herança, de que deveria seguir os seus caminhos curvos da palavra e retos de conduta.

Jamais recebia um livro inédito. As linhas sempre estavam pressionadas pela mão direita do Rodrigo. Quando realizava os temas, eu também mantinha o capricho de não afundar demais o lápis, para não atrapalhar Miguel no ano seguinte. Escrevia leve, acariciando a folha. Não podia estragar o conjunto, rasgar algo, prejudicar a capa, desenhar nas bordas, colar adesivos. A responsabilidade já aparecia na ponta de meus dedos.

Havia a noção de que o livro era coletivo, não pessoal. Representava um patrimônio de todos os filhos. Não seria posto numa caixa de pertences para nunca mais, nem jogado fora. Estudar significava cuidar. Assim eu fui educado a não ser egoísta e possessivo, a não me sentir dono da verdade, a ceder o espaço para quem vinha depois de mim.

Livro importante era livro passado adiante. 

ÚLTIMO SAMURAI


Tenho uma nota de R$ 100 na carteira que já vem durando uma semana. Não vou entregá-la. É só pagar algo, e ela desaparece. É só virar uma de R$ 50 e duas de R$ 20 que ela some e nem sei com o que consumi. É só uma balconista usar a expressão troco – “toma o seu troco” – que ela se sente diminuída e se desintegra. Uma nota de R$ 100 jamais poderia ser insultada de troco, é bullying.

A nota de R$ 100 é o último samurai da família, o derradeiro guerreiro do níquel. Fará a vingança do cofrinho quebrado, do porquinho desmanchado em pedaços, do porta-moedas vazio.

Lutarei por ela, e ela lutará por mim. Não deixarei a garoupa ser pescada ou a efígie da República ser pichada. Mesmo que seja necessário atravessar um shopping inteiro com os filhos, atalhar um parque e encarar as carrocinhas de cachorro-quente e churros como um vegano convertido.

As tentações são muitas, em especial no final de semana. Sábado e domingo são inimigos declarados da nota de R$ 100.

A vontade de cinema apertou, mas não cedi e esperei um bom filme aparecer na tevê. Preparei pipoca no micro-ondas, estendi os pés no sofá e não reclamei que a metade do milho não estourou.

Reclamar esvazia o bolso. É dizer que não está feliz que o descontentamento aumenta. É dizer que não tem dinheiro para nada que você gasta o dinheiro que nem tem.

No dia seguinte, estava cansado, pois dormi tarde, vi os imãs de tele-entrega sorrindo para mim na geladeira, mas resisti aos números fáceis. Guardei as propagandas no armário e fui cozinhar. Preparei uma massa para bodear os pensamentos, jiboiar os desejos, enjaular este safári de impulsos.

Decidi empenhar a faxina senão a nota ia embora na segunda. Pensei com ternura na faxineira que é minha amiga, coitada da Vera, mas as intenções não podem demonstrar misericórdia. Esmurrei os tapetes na janela enquanto o vizinho dormia, empurrei a geladeira e varri até o braço cansar, até desistir de erguer a nota de cem.

Não bastando, desci para lavar o carro todo empoeirado da recente visita à chácara de minha mãe, em Eldorado do Sul. Eldorado é agora a nota de R$ 100. A ânsia para repassar o trabalho ao lavador do bairro era imensa, não sei como me contive. Coloquei música alta para fingir que estava cantando e dançando, e não lavando o carro.

Nota de R$ 100 não é mais papel, não é mais uma simples cédula, mas uma armadura. Tomara que eu mantenha a abstinência e bata o recorde de minha vida de oito dias com a nota de R$ 100 na carteira.

JÁ ERA AMOR NO INÍCIO

Foto de Gilberto Perin

Às vezes é amor desde o início, mas recebe o nome errado do medo, é chamado de amizade por engano e demora para ser anunciado. Até virar hipótese improvável.

Você não segurou a mão no cinema quando deveria, você não beijou a boca na primeira vez que saíram, você não usou a licença poética da embriaguez para subir ao apartamento na hora da despedida, você não arriscou e não se entregou, como nos blecautes anteriores. Foi possuído de pudor, a proteger uma afeição pura e inédita. Foi tomado de respeito, não queria avançar o sinal.

Veio um estranho medo de ferir e de ser ferido. As pernas fraquejaram, o aceno pendeu no ar pela metade, os olhos se contentaram em voar com um tchau desajeitado.

Os dias se passaram e não retornaram mais ao início onde a amizade era para ter sido amor.

Trocaram confidências para domesticar o encontro, esconderam a atração forjando lealdade, espantaram a possibilidade de sexo para não sobrecarregar de dúvidas a cumplicidade que corria dentro do toque.

Sufocaram, com as forças da juventude e da dissimulação, a inquietação que reinava no silêncio e na saudade.

Vocês se encaixavam perfeitamente. Concordavam antes mesmo da conclusão da história, decoravam datas e gostos, adoravam caminhar lado a lado e discutir o que vinha à mente com liberdade, sem censuras e filtros.

Usaram todas as palavras um com o outro, menos aquelas que mudariam tudo. Empregaram todas as verdades um com o outro, mas mentiram justamente na confissão que transformaria o relacionamento.

Não arriscaram declarar o que sentiam. Ou porque era cedo demais e estavam se conhecendo. Ou porque era tarde demais e já se conheciam excessivamente.

Não perceberam o quanto se envaideciam no momento que alguém na rua se confundia e elogiava a intimidade:

- Formam um casal muito bonito!

- Ah não, não somos um casal...

Não? Tinham um dialeto, um riso sempre fácil, conversavam por músicas e canções, atravessavam a clareza das madrugadas e a claridade dos dias, mas não apostaram na intuição, o único conselheiro que desfaz dilemas.

Esperaram reunir provas do sentimento mútuo quando nunca existiu tribunal no amor, quando nunca existiu justiça no amor, quando nunca existiu reparação de perdas e danos no amor, é sempre esse agora e sempre, essa execução sumária.

Não há como culpar ninguém por aquilo que não aconteceu, a não ser lamentar a timidez. Permitiram que namorados e namoradas aparecessem no vácuo que não ocuparam, e complicaram o que podia ser fácil. Agora estão condenados a ouvir descrições apaixonadas e lamúrias, fins e abandonos, recomeços e novos romances. Agora estão forçados a mergulhar num ménage espiritual, a suportar indiscrições, a fingir desinteresse e chorar em segredo. Agora serão empurrados pela vida a serem melhores amigos eternamente, a serem convidados para os papéis de padrinho e madrinha de um casamento errado, de um altar que no fundo era destinado aos dois.

ÓBVIO PROFÉTICO

Arte de Eduardo Nasi

Tenho uma inquietação filosófica familiar: os pais têm intuição ou agouro?

É assim mesmo comigo, não há certeza se é sexto sentido ou o desejo do pior.

Quando vejo um copo ou um prato em lugar estranho, que não uma mesa, aviso ao filho que é melhor tirar dali senão vai quebrar.

Ele não tira, e realmente quebra. Reprimo o meu ímpeto de sermão para ajudar a recolher os cacos. Mais grave do que avisar é depois dizer que avisou. Existe um sadismo na censura.

Mas não sei se fui eu que apressei o acidente com as palavras ou, ingenuamente, previ porque todo pai é profeta ou, ainda, usei apenas a lógica.

Todo alerta e advertência dentro de casa se realizam.

Cuidado para não se machucar e o filho se machuca. Cuidado para não escorregar no chão molhado da cozinha e a esposa escorrega. Cuidado para não deixar as janelas abertas e a chuva inunda a sala.

Sou uma gralha do mundo interior, das observações mais triviais às receitas de proteção. Exponho o óbvio como não esquecer o casaco ou não lavar o cabelo para não gripar ou não colocar papel na privada para não entupi-la até o inusitado “aquele cachorro está faminto, tenha cautela”.  Termina acontecendo, e depois vem um sentimento misturado de tristeza e revelação. Como se um anjo estivesse soprando mandamentos do bem estar em meus ouvidos. Eu me transporto para o Antigo Testamento, com a substituição da sarça ardente pela samambaia morrendo de sede.

Fico matutando: se não houvesse aberto a boca será que aconteceria? Será que torço para ter razão? Para ganhar importância e status de sabedoria caseira? Não seria preferível errar? Mas se erro eu sou apenas chato. Acertando sou um chato clarividente.

O sobrenatural será sempre o sobrenome da vida minúscula.

FILHO OU UM ALIEN?

Pai e mãe não conseguem colocar fora nada do filho. Fracassam.

É um esguicho de tinta no caderno e pretendem emoldurar.

Sofro da mesma síndrome e entendo direitinho a compulsão.

Nem me refiro a retratos desfocados ou aos primeiros sapatos de crochê.

Você ganha a coleção de desenhos das creches, todos os trabalhos realizados em aula, desde a mão com tinta na folha até a colagem de gravetos, e deseja achar um lugarzinho no armário abarrotado.

Não há folga na estante, talvez seja necessário descartar a escritura e os documentos do imóvel, afinal filho é filho, filho é prioridade.

São pastas e pastas coloridas e você acha que descartar é como jogar o amor no lixo, que será estigmatizado como insensível, que o filho um dia irá descobrir: "Onde está o meu desenho de caramujo subindo na árvore?".

Você mantém a montanha de rabiscos como se fosse a evolução artística e mirim de um Picasso. Para preservar o acervo escolar de dois filhos, por exemplo, você tem que comprar um outro apartamento. Estará entre a cruz e a espada, o desapego ou o despejo.

O que não raciocina é que, se o desenho fosse uma obra de arte, a creche ficaria com o material, mas ela faz questão de passar adiante. No final do ano letivo, a professora entrega o dossiê criativo de 600 páginas com um riso sarcástico:

— Pai, não esquece que é para mostrar para ele quando ficar adulto.

Guardar durante 15 anos, isso? Não conserva sequer os canhotos da reforma durante tanto tempo.

A culpa é uma colecionadora compulsiva.

O momento trágico ainda é quando inventa de estampar uma camiseta com foto do filho. Como se desfazer dela depois?

A imagem estará granulada, apagada, desbotada, já é a de um alien, não mais de um bebê, e não contará com coragem para o descarte. Ninguém mais lê o nome da criança e a manifestação mimosa, mas se engasga inteiro para se despedir dela. Comparativamente, o uniforme da pelada com os amigos, que serve para lustrar os móveis, tem mais condições de jogo.

A impressão é de que vem sendo perseguido por uma câmera registrando os seus movimentos pela casa e que o ato seria visto como um crime imperdoável. Não há como liberar o pano para a caixinha da campanha de agasalho discretamente, sem fungar de piedade.

Você não possui uma recordação, é ela que possui você.

Age desconfiado e paranoico com a sua sombra, como um guarda do Vaticano protegendo o sudário.

Amor de pai e amor de mãe desrespeitam o aproveitamento de espaço. Talvez porque ambos intuem que na adolescência dos filhos não receberão mais nenhum cartão e declaração emocionada e tremida de "eu te amo". O excesso da infância termina sendo uma reserva de carinho nos períodos de longo silêncio.

BOM DIA, ALEGRIA



Não confio em pessoas sempre, mas sempre alegres. São mentirosas, megalomaníacas, exageram e distorcem os fatos. Não aceitam as pequenas derrotas, os números quebrados, as desilusões, não pedem desculpa, sufocam as contradições naturais do temperamento. Quem sempre se acha não se conhece, está próximo da loucura.

Todos os meus amigos têm uma pequena melancolia no olhar. Uma tristeza nos fundos dos hábitos. Não são depressivos nem chatos, muito menos pessimistas. Não reclamam de tudo, só que não aboliram a contemplação de seus dias. Entenderam que a tristeza é fundamental, como a solidão, a fé, o amor.

Ficam quietos por horas a fio lendo um livro e vendo um filme, sem aquela ansiedade histérica e falsa do alegre em tempo integral. A tristeza é como uma doença benigna, que não mata e não atrapalha, que apenas precisa tomar cuidado para não se agravar.

Meus amigos estudam a si mesmos, para as provas dos relacionamentos. Reservam um momento para examinar seus atos. Não somente põem a mão na consciência, lavam as mãos na consciência.

Essencialmente sadios porque conservam este sentimento reflexivo guardado. Já perderam alguém importante, já enterraram um familiar, já sobreviveram a romances errados. Não foram sempre felizes, descobriram que a felicidade acaba e se transforma em esperança.

Persevera neles uma honestidade da imperfeição que resulta nos conselhos mais ajuizados.
Meus amigos não experimentaram uma infância idealizada, cresceram entre encrencas familiares e não se fizeram de vítima. Não namoraram o menino e a menina mais famosos da escola, não há glórias unânimes no passado, sofreram bullying e não se diminuíram.

Doces porque deram espaço para amargura. Cumprimentam com ternura, abraçam com cuidado, mantêm um pouco da fragilidade de vidro na pele. São meus soldados com cicatrizes das batalhas no corpo. Não aplacaram essa sensação miúda de desencanto e humildade. É como assobiar sem querer, ou suspirar fundo sem motivo. Não acreditam no sucesso e no fracasso, ambos sinônimos da farsa.

Uma tristeza que é charme, que é simpatia, que convida para a conversa, engajada nos problemas e ruminando soluções em segredo. Uma tristeza que se contenta com pouco, que oferece pão aos peixes. Uma tristeza subterrânea, necessária para melhorar o mundo. Uma nostalgia do futuro, de escrever cartas e não mandar.

Uma tristeza que veio de algum lugar longe da memória, de uma desconfiança, de uma lealdade quebrada, de uma viagem adiada. Uma tristeza que não salva o pensamento, e sim conforta e acalma. Uma tristeza sábia, que não é excluída do contentamento. Uma tristeza capaz de dizer bom dia para a alegria e esperar a resposta.

Meus amigos não choram com esta tristeza, podem estar rindo. E ninguém notar que estão tristes. Demonstram o sorriso sereno de descoberta das limitações de cada um. Uma tristeza de saber que as coisas não são como a gente gostaria, porém são como a gente pode, que dar o melhor de si ainda não é dar o melhor para os outros e que tudo bem, a vida não é nossa, é somente emprestada para aprendermos a nos despedir.

NÃO PODE SER VERDADE

Foto de Gilberto Perin

O homem não é capaz de fingir o orgasmo, mas de despistar.

Uma de suas manhas de simulação é quando diz que vai gozar. Não acredite que ele está gozando. Pois ouvirá dele várias e várias vezes que está gozando durante o sexo e ninguém pode gozar tanto.

Quando ele grita que vai gozar é apenas um regra cavalheiresca, pede a autorização do par para finalizar o prazer. É o equivalente a obter uma licença verbal já que não tem como ser por escrito naquela hora: "Posso terminar ou ficará chateada?".

Certamente evidencia uma suplência maternal masculina. Como se ele não tivesse condições de controlar o próprio gozo. Homem é um bicho dependente que nem na transa decide sozinho.

O aviso não é um ultimato, um fuzilamento, não significa que será naquele instante. Indica que o desfecho está perto, próximo, eminente. Abriu o chamado, não realizou a visita.

O alarmismo pontua o desempenho e também previne a decepção. Vigora como uma desculpa diante do pior, algo do tipo "nem vem reclamar da rapidez, pois avisei antes".

"Vou gozar!" é o gemido falso dos varões. Igualmente pode ser um tatear às cegas do universo feminino, numa tentativa de desesperada de descobrir por onde anda o orgasmo dela, se ainda está na fase de contar carneirinho ou de tirar a sua lã.

"Vou gozar!" costuma ser uma súplica para que ela venha junto, um chamado para a sincronia, porém, em alguns casos, a exclamação não é solidária com a mulher, não partilha de nenhuma conexão generosa com o ritmo alheio, revela uma ameaça de que o sujeito não aguenta mesmo segurar e que agora não se responsabilizará mais pelos seus atos.

Quando gozar de verdade, o homem não falará nada, no máximo soltará um grunhido.

CADEIRA DE BALANÇO

Arte de Eduardo Nasi

Reverencio as cadeiras de barbeiro e de balanço.

A primeira é aquela que me inspirou a crescer, lembro perfeitamente que dependia de uma almofada e fui dispensando os apoios até o queixo alcançar o espelho. Tempos ambiciosos, em que festejava cada centímetro da altura.

A segunda é a que sinto mais saudade.

As casas estão abandonando a cadeira de balanço. É um animal de vime que está desaparecendo, quase extinto.

A cadeira de balanço é uma síntese poética da família. Do ideal de família.

Revela uma extensão do berço, perfeita para cantiga de ninar. Servia para amamentar as crianças. Todo quarto de gestante dispunha de uma delas ao fundo, para as madrugas de cólica e insônia. Acalmava o bebê e também não castigava as costas maternas.

Não é uma peça de madeira qualquer, trata-se do mais próximo que uma cadeira chegou do status de poltrona.

As crianças faziam fila para experimentar. Misto de brinquedo e assento, de balanço e cômodo.

Meninos e meninas brincam nela e logo pulam porque se divertem com o corrimão de escada.

Ninguém se recosta numa cadeira de balanço e levanta em seguida. Ela tem uma hipnose vadia de rede.

Ninguém se recosta numa cadeira de balanço e não se movimenta. Ela impulsiona os pés a testar a gravidade do dia.

Uma cadeira de balanço é um cavalo apeado. É a nossa nostalgia rural, do pampa e das ininterruptas fazendas. Talvez seja uma carrete que roubamos do interior para não nos perdermos de todo o campo. Tanto que as suas pernas são enxadas descansando.

Uma cadeira de balanço embeleza onde estiver, preenche o espaço como uma escultura e não machuca os pés distraídos.

Ela é uma varanda dentro de casa, feita para educar os suspiros.

É um ioiô de lembranças, o passado vem e some, vem e some.

Uma cadeira de balanço é uma companhia para diminuir a solidão dos mais velhos. Ela rumina de um lado para outro. Com piso encerado, pode, inclusive, falar.

Uma cadeira de balanço é um assento que tem frio, que sofre com o inverno, e recebe o xale de crochê aos ombros.

Uma cadeira de balanço é como sentar no colo da mãe, da avó, da bisavó. Apresenta um quadril largo de praça, de conforto e brisa.

É o único móvel onde se pede licença para subir e benção para descer.

Ó, DE CASA

Era certo como Natal e Ano-Novo.

A família se reunia na véspera das aulas para encapar os cadernos.

Sentávamos todos os irmãos e a mãe ao redor da mesa para colocar uma capa transparente ou uma estampa que sobrava dos presentes.

Um dos únicos dias do ano em que dormíamos tarde, atravessando de longe a meia-noite.

Lembro da função: recortar papel bonito, dobrá-lo nas orelhas e paramentar uma por uma das obras para o começo do ano letivo.

Estudar significava um prêmio. Não podia chegar de qualquer jeito na escola. Assim como revisávamos o uniforme (podia ser pobre, mas sempre limpo, podia ser gasto, mas sempre lavado), não permitíamos que nenhum livro viesse sem uma sobrecapa. Tinha que durar. Tinha que sobreviver aos sanduíches do recreio e às gotas perdidas do Nescau da térmica. Tinha que aguentar as viradas de página e o manuseio infinito.

A mãe transformava a tarefa em festa. Ela nos ensinava a embrulhar devagar, a preencher o nome e a série que iniciaríamos em todos os itens, colava durex com o nosso nome nos objetos do estojo de madeira, incitava o orgulho da letra e do capricho.

Ela descia à nossa idade para mediar a ansiedade, perguntava se manteríamos a mesma turma ou viriam colegas novos, questionava qual tinha sido o professor preferido, de quem sentíamos mais saudade, se escondíamos um amor secreto nas amizades. Quando não respondíamos nada, nos atacava com cócegas debaixo dos braços: "Fala, fala, fala!".

Ninguém recebia um caderno diferente de outro irmão. Tudo igual, para não gerar ciúme e competição. A maior parte não contava com fotografia e desenho famoso, não descendia de grife e marca. Cadernos simples, pautados, sem espiral, pequenos, incluindo o temido de caligrafia. As folhas costumavam ser duplas, não havia como arrancar nenhuma página sem fazer estrago na costura.

Apontávamos os lápis, como quem repassa um exército enfileirado. Dois para cada filho. Eu queria ser famoso como Faber-Castell. Partilhávamos as mesmas iniciais. Jurava que Faber-Castell era filho do Johann Faber.

Não usávamos caneta. Caneta pertencia ao mundo do escritório, coisa de adulto. Nossa condição estava restrita a escrever rascunhos até crescer e virar gente grande.

Amava aquele tempo de expectativa, de preparação para momentos importantes da vida. Não vivíamos apenas, mas nos preparávamos para viver.

Existia uma paciência que não existe hoje, de esperar a televisão aquecer até vir a imagem, de furar a lata de azeite com um preguinho, de aguardar a foto revelar, de escrever cartas, de descontar um cheque, de lustrar os móveis com o óleo de peroba, de catar cidades no mapa, de ir até o orelhão para falar com parente no Interior, de mandar telegrama em caso de doença ou morte, de suportar o leite fervendo e a massa do bolo descansar, de degelar a geladeira, de pensar como seríamos felizes se passássemos naquele ano por média.

ELOGIE A EX PARA NUNCA MAIS VOLTAR



– Olá!
– Quem é?
– Você pode conversar?
– Quem é? Não identifico o seu número no WhatsApp. Parece estrangeiro.
– Falo do Panamá.
– Explicado o número diferente. Quem é?
– Aqui é o namorado da Bianca.
– Ela está bem?
– Sim, tudo bem.
– Ótimo. O que houve, então?
– Queria saber se ela é confiável.
– Por quê? Aconteceu algo?
– Não, ainda não. É que penso em assumir um compromisso sério e não tinha a quem perguntar.
– Como conseguiu meu celular?
– Copiei do celular dela.
– É bom que ela não descubra, pois senão você já era.
– O quê? Não entendo tudo.
– Olha, não costumo dar recomendações de ex-namoradas.
– É que somos um povo desconfiado.
– Ok, mas se alguém fosse falar com as minhas ex, elas só falariam mal de mim. Ninguém me pouparia. Por isso é ex! Ex é exu sem luz. Se fosse bom, estaríamos namorando até hoje.
– Não compreendo tudo o que está escrevendo. Mas depois procuro no Google.
– Esquece. Bobagem.
– Você viveu com Bianca, ela é confiável?
– Sim, muito! É a melhor pessoa do mundo, perfeita para casar e ter filhos, equilibrada, companheira
nas horas difíceis, amiga de verdade, compreensiva, cozinheira de mão cheia, jamais implicava, nunca
bebia e fazia barraco, não sentia ciúme e me inspirava a viajar e descobrir novos caminhos, cuidava dos meus amigos como se fossem os dela, não me pressionava, não mudava de humor, sempre controlada e constante, uma maravilha de ânimo e otimismo.
– Ela é confiável, por aquilo que vem dizendo, ela é muito confiável.
– Muito! Nós só terminamos porque ela era perfeita demais, estava ficando monótono de tanto que eu a
elogiava. Nunca brigávamos, nunca nos desentendíamos, acabamos como irmãos.
– Ah, lamento.
– Já é passado. Ela não era para mim. Estava precisando de alguém como você. Vocês nasceram um para o outro. Parabéns!
– Obrigado! Não imaginava que os brasileiros fossem tão civilizados no amor.
– Somos. O divórcio aqui é um querer bem, uma maneira de homenagear quem nos ajudou.
– Que diferente.
– Boa sorte! E me convide para as bodas de prata, não quero perder.
– Bodas?
– Comemoração dos 25 anos de casamento.
– Ah, ainda falta. Só estamos 25 dias juntos.
– Ih, passa rápido, nem vai notar. A alegria voa.
– Abraço, meu amigo.
– Abraço!

QUANDO EU CANTO

Foto de Gilberto Perin

Quando estou feliz, canto. Quando estou triste, canto.

Não é preciso ter razão para cantar.

Vou cantando sem saber a letra, errando uma ou outra rima, esperando o refrão para ir junto de novo. Canto com o rádio do pensamento ligado à toa, numa estação remota da memória.

Canto para não dizer tudo o que resta a dizer. Para guardar um amor na letra. Para despejar um amor que estava na letra.

Canto como quem tenta distrair a falta. Canto como quem põe perfume na voz. Canto como quem toma banho na linguagem.

Canto para me sentir na estrada, livre, sem ninguém para julgar o meu escândalo cantando.

Canto para interromper uma morte.

Canto para sarar palavras feridas.

Canto como quem dá um conselho a si mesmo.

Canto ainda que com timbre desafinado, arranhado, rouco de gripe.

Canto para despertar o apetite.

Canto irresponsável como um guarda-chuva em tempestade.

Canto festivo como um guarda-sol em praia radiante.

Canto para cessar a sombra, multiplicar a claridade.

Canto quando pago as contas, canto para esconder as dívidas.

Canto para brindar a solidão.

Canto para chamar os amigos.

Canto para ultrapassar a mágoa, para não ter motivos.

Canto para desobedecer as ofensas, para brigar com os traumas.

Canto para fazer drama, para exagerar os gritos.

Canto para entender os problemas, para não mais entender os problemas.

Canto para lembrar das cantigas de ninar da mãe, canto para desafiar o silêncio severo de meu pai.

Canto para mastigar o mundo, triturar o gelo da indiferença.

Canto para jogar uma pedra no rio e produzir movimento no dia, ver a beleza dos círculos.

Canto para importunar os vizinhos, para assustar os pássaros, para gerar piedade nos filhos.

Canto para me curvar à vida.

Canto para sair do meu canto.

ELEVADOR DO TEMPO

Arte de Eduardo Nasi

Várias escadarias que serviam para cortar caminho foram fechadas em Porto Alegre (RS). Terminaram gradeadas, com um portão de ferro e uma placa intimidando a entrada.

Eram escuras, eram mal iluminadas, eram apertadas, mas faziam parte de minha história. Como poderei esnobar que conheço o meu bairro se não tem mais nenhum atalho?

As escadarias das ruas João Obino  e Itajaí foram os cenários de meus namoros. Após a escola, no intervalo entre o sol deitando e a lua subindo, emprestava a mochila para a menina sentar e evitar as pedras frias. Da educação, partíamos diretamente para a loucura. Beijávamos-nos ansiosamente até aparecer alguém, parávamos, trocávamos algumas palavras de despiste e voltávamos a nos beijar. O primeiro seio que toquei aconteceu ali, o primeiro seio mudou o sentido da minha mão para o resto da vida.

Escrevia mensagens apaixonadas nas paredes para a namorada que mantinha comigo a fidelidade do esconderijo.

Não sofria com o medo de assalto, muito menos fraquejava em atravessar o beco no breu. Apreciava a ausência de poste de luz e a vegetação alta. O abandono me conferia privacidade – sigilo que não encontrava em meu quarto dividido com três irmãos.

As escadarias estreitas inspiravam molecagem. Raros conheciam o seu acesso. Surpreendi amigos em corridas, ganhei alguns pilas de aposta. Chegava antes no lugar combinado partindo bem depois. Ninguém desmascarava o meu truque.

Eu descia os degraus de olhos fechados. Absorvi o seu andamento de cor: três degraus curtos, dois longos, quatro longos, três curtos, um menor do que todos, vinte curtos, dez longos.

Bloquearam o acesso ao meu elevador de tempo. Já não tenho como ir dos 44 anos aos doze anos e voltar sem que ninguém note o meu sumiço.

THE VOICE ANÔNIMO

Eu faço questão de pagar o couvert artístico, peço silêncio na mesa para escutar o artista no restaurante.

Aquele desconhecido afinado pode vir a ser uma Ana Carolina, um Tiago Iorc, uma Cassia Eller — cantores que também começaram em microfones de bares.

As bandas e músicos que tocam em lugares desertos são os meus heróis. Vencem anonimamente um The Voice Brasil por dia. 

Acostumados à rejeição, sofrem horrores para virar as cadeiras dos clientes. Seus adversários são críticos cruéis: a comida, os garçons, as discussões de relacionamento, os namoros, os copos quebrando, os grupos de amigos, as confraternizações ruidosas, o amigo-secreto da firma, as crianças brincando nos corredores.

Superam inimigos invisíveis para conquistar o respeito. A conversa paralela estará mais alta do que a canção, os espectadores almoçam e jantam com o desprendimento de uma tevê ligada. A mesa mais procurada é a que fica longe do palco, o palco é próximo do banheiro.

Qualquer político desistiria diante do desinteresse geral. Pois a indiferença é mais insultante do que a vaia.

Mas eles não. Tiro o meu boné para eles.

Alheio às dificuldades, os músicos são atentos e vibrantes como se a casa estivesse cheia só para vê-los. Chamam o coro para o refrão, não reduzem o ânimo apesar da ausência de eco, puxam palmas que virão dispersas.

Não têm nada para provar que existem, a não ser aquele momento. Não têm cartazes com os seus rostos, CDs com as suas letras e muito menos produtores preocupados com o tempo do espetáculo. Não saíram no jornal, ninguém comprou ingresso para assisti-los. Não foram escolhas do público, e sim acasos da rotina.

Entraram desconhecidos e vão deixar o endereço do mesmo jeito, longe do tumulto e da tinta dos autógrafos.

Seus únicos fãs são a família, mais ninguém. O camarim acaba sendo o estojo de violão, único espaço que possuem para guardar os seus pertences.

Devem trabalhar no turno inverso para pagar as contas. No expediente comercial, sonham com essa uma hora e meia de som ligado.

Mantêm uma relação pura com o talento, sem retorno imediato, sem a pressa da fama, sem a pressão da vaidade, dispostos a encontrar a melhor versão de si mesmos.

Esses artistas demonstram uma teimosia na voz que beira à loucura, porém fundamental para sobrevoar as desconfianças dos outros.

De repente, não serão conhecidos, mas estão tentando. Se não são futuro, pelo menos enfrentam o passado.

Mostram as suas composições só depois de reproduzir um repertório inteiro de covers, como uma esmola da audiência. Não se desesperam com as interrupções e não se diminuem com a solidão das sombras. Recebem uma ninharia ou ganham a refeição pela noite trabalhada. Não é o dinheiro que está em questão, e sim o espaço ocupado, a chance de ensaiar mais um pouco, o milagre de ser ouvido sinceramente por alguém.

Para quem escuta, é música de fundo, para quem canta é música a fundo.

Para quem escuta é obrigação, para quem canta é vocação.

Para quem escuta é favor, para quem canta é sempre show. 

O SELFISTA


Sempre que me aproximo de quem está tirando uma selfie, eu tenho medo de atrapalhar. É como encontrar alguém nu ou se masturbando. É ser vítima de um atentado violento ao pudor.
Fico com vontade de pedir desculpa, viro o rosto, evito encarar.

O selfista demonstra uma carência extrema, é um solitário pretendendo demonstrar que é conhecido. Desperta compaixão, insinua uma orfandade de amigos.

Quem faz selfie pensa que ninguém está olhando, está possuído da vaidade e não compreende o quanto é patético.

O rosto sério passa a ser falsamente sorridente com a mão levantada. Um minuto atrás era uma careta, um minuto após é um sorriso de canto a canto da boca, sem nenhuma motivação secreta. Como pode rir se nada aconteceu de diferente?

As pessoas comuns inventaram o riso súbito, para concorrer com o choro profissional e o beijo cênico dos atores.

O selfista transforma a tela em uma metralhadora de toques, até achar um momento que preste. A busca pelo ângulo perfeito beira a obsessão. Tem gente que posa 10 horas para si mesmo, à procura de um instante de satisfação. Lota a caixa de imagens somente para atualizar as redes sociais. Um flagrante salvo significa 99 deletados. Já é compulsão, já é doença, já é vício.

Não tem como não se incomodar com o autorretrato virtual. Ele se baseia numa mentira. Boa selfie é aquela que parece que foi clicada por uma outra pessoa. Precisa de extensão do braço e de uma mirada ao lado, como se pego de surpresa. Ou seja, selfie é a negação da selfie. Se fosse algo agradável, ninguém teria vergonha de esconder como foi feita.

Quando testemunho alguém manipulando o celular freneticamente para todos os lados, a minha ânsia é chamar a Samu. É um ataque epilético do narcisismo.

O homem ou a mulher vai se debatendo com o aparelho, esfaqueando-se com o celular, quase se esganando de contorcionismo. Coloca o cabelo para frente e para trás, morde os lábios, encolhe a barriga, suspende a respiração, gira o quadril para enquadrar a melhor paisagem, não poupa esforços para fingir leveza.

Qualquer um que enxerga a cena acaba nervoso.

Trata-se de uma tragédia silenciosa. O selfista não se contenta jamais, percebe um defeito invisível no nariz, nos olhos, no penteado, mesmo quando há nada de errado. Alucina, não está mais entre nós. A ausência de confiança produz uma tortura infinita. Cada foto é o reconhecimento do que falta na aparência, cada foto piora a vontade de viver, cada foto é um aborto.

O selfie virou um espelho que anda e substitui a realidade. Nem estou falando dos filtros e retoques, onde você tenta apagar as imperfeições e simplesmente desaparece dos registros, só ficando o lugar em que estava.

QUANDO TRAI

Foto de Gilberto Perin

Homem ou a mulher, quando trai, quando sustenta um caso por meses ou anos, quando alimenta vida dupla, quando falseia descaradamente onde estava e o que fazia, perde moralmente qualquer posição para exigir meio a meio na separação.

É um sentimento, não o que está na lei.

Deveria sair de casa com a roupa do corpo e não levantar o queixo para resmungar ou ensaiar  qualquer apelo.

É baixar a cabeça e sair de fininho, como numa canção sertaneja.

Perderá a sua metade da louça, a sua metade dos móveis, a sua metade da casa. Aquela metade que tinha direito não tem mais - a indecência mandou embora.

O que vier de volta será lucro. Mas não deve pedir nada, depende da generosidade de quem ficou. Na maior parte das vezes, aquele que é traído cria nojo e despacha um frete do que restou, já que não quer guardar nada que lembre o ex ou a ex.

Mas aquele que trai deve deixar tudo para trás. Não é por compensação ou para amenizar o prejuízo amoroso, mas por vergonha mesmo. Precisa ter vergonha na cara para não exigir mais nada e apenas pedir perdão.

Profanar o santuário a dois impactará no uso da verdade dali por diante. Uma mentira não mata somente uma verdade circunstancial, mata a retrospectiva das verdades de uma vida. Porque envolve amantes, porque estabelece a paranoia de uma disputa. O que foi enganado não tem noção daquilo falado fora da residência.

Quando errei, deixei apartamento, deixei biblioteca, deixei coleção de décadas de vinil, deixei gavetas de sapatos, deixei dezenas de ternos, deixei objetos de infância, deixei álbuns de fotos, deixei o que comprei com o meu dinheiro. E aprendi o quanto custa uma traição. É matar a esperança do amor mais do que o amor, é perder tudo o que fez de valioso dentro da fidelidade, é trocar os dias sem segredos pelas noites de mistério.