quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CACHORRADA

Arte de Cínthya Verri

Escova de dente é um item de higiene particular. Seguia na merendeira da escola, ao lado da toalhinha de rosto e avental bordados, com o nome do dono colado com durex. Poderia emprestar pente aos coleguinhas, escova nunca.

Mas vá explicar privacidade a um irmão.
° ° °
A mãe confundia a partilha, obcecada por harmonias invisíveis (combinava a tonalidade da esponja com os ladrilhos do banheiro ou da toalha com o sabonete).

Ela comprava quatro escovas azuis: turquesa, marinho, calcinha e petróleo. E avisava aos quatro filhos de igual forma:

— Sua escova é azul.
E deu! Sem nenhum parêntese, detalhamento, explicação das diferentes matizes.

Qual azul: a forte, a fortíssima, a fraca, a fraquíssima?

° ° °
Acabávamos descobrindo tarde demais que a nossa escova servia a dois senhores ao mesmo tempo, a dois homens, um marido e um amante. Havia indícios contundentes: na primeira escovação do dia, ela continuava úmida. No momento do almoço, surgia estranhamente no box do chuveiro. Não parava no lugar que deixávamos.
° ° °
Não me importava em dividir as cáries, não tinha nojo de mim, mas Rodrigo sim, até porque não usava aparelho como eu. Ele fazia careta quando guardava a minha dentadura de adolescente no estojo.

° ° °
Acho que tomei sua escova sem querer. Complicado definir o corno da história, e quanto tempo demorou o caso.
° ° °
Com as suspeitas, o mano pirou, a ponto de diversificar esconderijos e me perseguir. Eu entrava no banheiro e ele batia na porta, pedia para entrar; um inferno, sempre no meu pé, sempre me controlando, ferrando meus devaneios com as revistas eróticas.

° ° °
Sua vigilância se transformou em doença. Colocava pimenta, catchup e mostarda nas cerdas, tudo para me prejudicar por tabela. Desejava me pegar em flagrante e me denunciar aos pais.

° ° °
A guerra fria durou de 1980 a 1983.
° ° °
Não suportava seu ciúme. Com a mesada, adquiri uma escova vermelha para me diferenciar.

° ° °
Em seguida outras cores apareceram no copo terminando a ditadura materna.

° ° °
Tristeza é azar. Na hora de lavar o nosso cachorro e limpar sua boca, apanhei uma escova amarela, velha, guardada no fundo do armarinho.
° ° °
Não tinha como saber que aquela escova era do irmão, disfarçada de suja para prevenir meus ataques.

° ° °
Ele dividiu a escova com o cachorro por alguns meses.

° ° °
Meu irmão ainda me odeia por isso.
° ° °
Fui visitar sua casa no interior do estado. Ao procurar lenço de papel, encontrei uma gaveta inteira repleta de escovas de dente.

Mais de cinquenta, ele que não é dentista e não trabalha como representante comercial.

° ° °
Eu me senti todo culpado.







Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 30 de agosto de 2011

O MORTO ESCUTA

Arte de El Greco. Texto dedicado ao amigo Marcelo

Sou místico, acredito no sobrenatural, em Deus, em anjos, fantasmas, duendes, rezo ao entrar no carro, faço sinal da cruz ao passar por igreja, enxergo coincidências e sigo rituais.

Quando pequeno, queria ser santo. Hoje, percebo que é difícil ser apenas um homem honesto.

Fiquei abalado pela história real de uma enfermeira mineira. Foi a descoberta espiritual mais importante de minha vida. Não dormi por duas noites seguidas relembrando as verdades ditas por aqueles olhos azuis enormes.

Ela trabalhou por 30 anos na Santa Casa de Misericórdia, cuidando e socorrendo pacientes terminais.

Confessou que a pessoa morre como ela viveu.

Os mais alegres têm despedida leve, tranquila, independente da enfermidade. Vão daqui para o outro lado sonhando. Não realizam drama, tampouco articulam chantagem. Tamanha a suavidade, não dá para identificar o último suspiro. Aceitam o destino, agradecidos pelo amor recebido.

Já os que estavam acostumados a reclamar de qualquer coisa também definham contrariados. Atolados de culpas e dívidas, esbanjam esgares de sofrimento, protestam pelas dificuldades adquiridas na doença, gritam a cada arrepio, lamentam ausência de atenção; o hospital nunca é bom, a dor sempre é insuportável.

Eles falecem com o rosto contraído, fechado, apunhalado. De quem apanhou da morte. Uma feição tensa, de escultura inacabada.

Mas, então, a enfermeira revelou um hábito surpreendente de sua equipe: conversar com o defunto.

Diante do morto sofrido, refratário e penoso, ela cochichava conselhos em sua orelha. Pedia para que ele reconsiderasse sua raiva, que desistisse da cara amarrada e emburrada, que se arrumasse para o velório e abandonasse o ressentimento.

Explicava que os familiares esperavam com ansiedade para vê-lo, que ele precisava se despedir bonito, que os parentes mereciam seu perdão e não valia a pena comprar briga por orgulho e teimosia.

Com as palavras delicadas de incentivo, não é que o morto ia soltando os traços e transformava a aparência na hora: libertava as bochechas, alforriava a boca, relaxava por completo.

O morto incrivelmente escutava. Entendia a súplica da enfermeira mesmo depois do seu fim. Atendia ao pedido e desinchava a amargura e serenava o espírito.

Nossos ouvidos não terminam com a morte. Continuam ouvindo onde quer que estejamos.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 30/08/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16809

FILHO DA MÃE!


CONVERSA DE LIVRARIA AO VIVO
Com Maria Carpi e participação de Fabrício Carpinejar

Dia: 31 de agosto (quarta-feira)
Hora: 15h30
Local: Auditório Barbosa Lessa do Centro Cultural CEEE Erico Veríssimo
(Rua dos Andradas, 1223, Porto Alegre)
Inscrições gratuitas: (51) 3226.7974
e-mail: secretaria@cccev.com.br

sábado, 27 de agosto de 2011

O MILAGRE DAS RAPADURAS

A estratégia é simples, mas funciona: vendendo cada doce a R$ 9, seguido Hilberto fica com o troco pela simpatia. Foto de Tadeu Vilani
A vida é dura como um pé de moleque, mas no fundo é doce.

Esta frase só tem sentido na boca de Hilberto Helvino Von Frühauf, 76 anos, morador de Victor Graeff, município de 3 mil habitantes, situado a 263 quilômetros da Capital.

Ele pagou a universidade de seis filhos vendendo rapadura de porta em porta. Desde 1975, acorda cedo, sai com uma cestinha verde cheia de confeitos feitos pela mulher Nelvi, caminha 200 metros de barro, embarca no ônibus da empresa Azul na Linha Jacuí e segue oferecendo o produto para quem encontrar pela frente em Carazinho, Passo Fundo e Não-Me-Toque, além de sua própria cidade.

O casal, que completa bodas de ouro em novembro, teve sete filhos; três já morreram: o químico Milton em acidente de carro em 1986; a professora Marilei ao cometer suicídio, inconsolável pelo fim precoce do irmão, em 1991; e Maristela, decorrente de complicações da paralisia cerebral, em 1993.

– Enterrar um filho é doer como bicho – desabafa.

Nelvi lembra que dobraram a produção caseira de rapadura para cobrir remédios tarjas preta de Maristela, que passou 19 anos na cama.

– Ela nunca deixou de ser meu bebê de colo, um bebê grande.

Com escolaridade até a 5ª série, Hilberto nem guarda ideia de como sustentou o ensino da prole.

– Eu lutei, não trabalhei. Trabalhar é fácil.

Sua aparência simples e pobre confirma o milagre. Toda manhã veste uma japona furada, o abrigo cinza com rasgo nos joelhos e as havaianas pretas.

– Juntei pobrezas para conseguir o estudo de minhas crianças.

Crianças? Mania de pai que não enxerga o filho adulto:

Márcia, 38 anos, é formada em Química e reside na praia de Cassino. Moacir, 43 anos, é graduado em Veterinária e Administração e mora em Salvador (BA). Marcos, 45 anos, é pós-graduado em Biologia e escolheu viver em Santa Cruz do Sul. Marize, 48 anos, cursou Filosofia e mora em Mogi das Cruzes (SP).

A saída de rapaduras depende exclusivamente do fôlego de maratonista de Hilberto, que não admite regressar para casa de mãos abanando.

– Questão de honra. Melhor voltar tarde, de madrugada, do que ver a cara triste de Nelvi, após horas cozinhando e embalando o material.

Hilberto comercializa 28 rapaduras de 660 gramas por dia, a R$ 9 cada. Foram 360 mil rapaduras vendidas ao longo de sua história. Isso que sofreu calotes em suas andanças, de clientes que pediram para anotar e desapareceram logo em seguida.

– Não tem problema, vou aceitando que é cortesia de Deus. Homem honesto não cobra o outro, cobra de si mesmo.

A memória fisionômica de Hilberto não perdoa nenhuma recusa. Lembrar quem comprou é o básico, ele tem refinamentos.

– Não esqueço mesmo de quem me disse não.

Um de seus métodos é contar piadas picantes diante da indecisão do cliente.

– Ou ele ri e compra ou ele odeia a gozação e também compra de vergonha para calar a minha matraca.

Sua carência charmosa ainda resulta em comissão de 10%. Afinal, ele é um garçom em permanente trânsito de sua cozinha às ruas.

– O troco é dele, para homenagear as covinhas do seu riso e seus olhos de Sinatra – brinca a bancária Juliana Ferreira, 29 anos, uma de suas freguesas em Victor Graeff.

Hilberto não sonha em ganhar na Mega Sena e se aposentar, muito menos delira com qualquer riqueza súbita.

– Se pudesse mudar algo hoje em sua vida, o que faria? – pergunto.
– Ficar mais novo para lutar mais – ele responde, sem pensar muito.

Sorte grande de seus nove netos.





Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 33, 27/8/2011
Porto Alegre, Edição N° 16806
Veja vídeos de Hilberto

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

CASAL PROBLEMA

Arte de Cínthya Verri

Na discussão de relacionamento, as aparências enganam. Quem grita muito não deseja brigar. Quem fala baixo gosta de brigar. Mariano é do segundo grupo, adepto silencioso da rinha: suplica para a mulher se recompor e baixar o volume. Seu jogo é psicológico. Põe fogo no circo e senta para assistir o espetáculo da plateia.

A impressão é que a Selma grita sozinha: a voz dele nem aparece.

A falsa calma de Mariano irrita Selma. Mas a irritação de Selma passa da conta e apavora Mariano. Não há santo naquele lar. Ambos sabem que não estão certos, mas tramam um jeito de convencer o parceiro de que ele é que está errado.

Ele não descansa sem fazer as pazes. Ela odeia paz forçada. Nenhum cederá: os vizinhos é que sofrem.

Formam o famoso casal problema do prédio. Todo edifício tem um. A reunião de condomínio é dedicada às últimas peripécias do apartamento 201.

No início do ano, a vizinha de cima bateu à porta da dupla. Antes fosse para pedir sal ou açúcar.

— Desculpe incomodar, tenho uma filha pequena, não estamos dormindo de noite, vocês podem gemer mais baixo?
— Como? — Mariano atendeu.
— Dá para ouvir tudo pela nossa janela.
— O que sugere? Que use travesseiro no rosto? — ele ironizou.
— Não sei mais como explicar a minha filha, avisei que eram gatos no telhado.

Episódio mais grave ocorreu em maio. Mariano e Selma não são mesmo calmos. O que esperar do encontro de orgulhosos, ciumentos, temperamentais?

Óbvio que uma carta de notificação da imobiliária, ordem para se comportar senão seriam obrigados a pagar multa.

— Pô, Selma, não podemos transar nem brigar na própria casa.
— É o fim da liberdade, amor. E o síndico desrespeita a lei do silêncio no domingo para apressar a reforma do corredor, né?

E se abraçaram e viveram em paz mais três meses.

Na última semana, após troca de insultos, o interfone do 201 apita:

— Soldado Amauri, Brigada Militar…
— Vizinhos desgraçados… — desabafou Selma.

Duas viaturas estavam estacionadas na entrada do prédio.

Eles pararam de discutir na hora, cheios de cumplicidade.

— Quando roubaram o nosso carro na garagem, à mão armada, nenhum carro da Brigada Militar surgiu, Selma. Nenhum!
— Mas para apartar uma briguinha, a corporação envia não somente um veículo, mas dois, Mariano.
— Querem nos separar.
— Nunca vão nos separar!

Nada melhor do que uma injustiça para desencadear a reconciliação.

O casal desceu de mãos dadas, envolvido em longos e acalorados beijos. Os policiais ficaram constrangidos diante de tanto amor e se retiraram.





Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 23 de agosto de 2011

COMO DESMASCARAR O CHORO FALSO

Arte de Edward Munch

O choro é uma arte. Uma obra-prima. Uma Pietà de Michelangelo. Diante dela, nossos olhos se umedecem na hora, o batimento dispara e até nossa boca se ajoelha pedindo perdão pela nossa indiferença nas sinaleiras.

Mas, como toda escultura, é cheia de réplicas e falsificações.
 
E dá para entender o motivo. Desde bebê aprendemos a fazer manha para ganhar as coisas. Perdemos a autenticidade das lágrimas. A cobiça nos distanciou da verdadeira dor. Assim que descobrimos que os pais não aguentam choro por muito tempo, abusamos do recurso cênico e banalizamos o berro. Nossos sofrimentos são, na maior parte das vezes, reclamações. Os gritos não passam de resmungos. Poderiam ser evitados. Têm uma clara natureza forçada.

Desejando prevenir a população da ação dos impostores, estabeleço mandamentos para identificar e reprimir o estelionato emocional:

& O choro depende de soluço. É um engasgo precioso. Choro sem soluço é poço sem roldana. Trata-se de um motor respiratório para atravessar o vale de lágrimas. Numa visão gramática da tristeza, o soluço é a vírgula e o gemido é o ponto final. São pausas fundamentais que garantem o suspense: parece que o sofredor vai falar, mas ele se cala.

& O choro sincero é um miado. Não conseguiremos decifrar o que a pessoa disse. As palavras são completamente ilegíveis.

& O rosto ficará vermelho, inchado, como um ataque de abelhas-africanas.

& O sofredor não vai encarar o outro de modo nenhum, não se chora de cabeça levantada, isso é coisa de novela e de colírio. O choroso estará acovardado, de boca aberta, já que não consegue respirar.

& Não acredite no tipo que bate a porta do quarto para chorar, está chamando atenção, é carência, não choro, o choroso real desmorona onde estiver. Não é possível guardar o choro, criar um fundo de investimento de dor. O choro é pontual, surge no meio do trabalho, no meio da aula, relâmpago incontrolável.

& Em contato com o travesseiro, a choradeira irá atravessar a fronha e o lençol. Se não mofar o colchão, não é choro.

& No momento em que o homem chora, se a voz vem grossa, ele está fingindo: no choro, a voz sempre é fina, distorcida, de gás hélio.

& Mulher nunca chora sem estar pintada. É regra básica, para borrar feio e oferecer espetáculo. Mulher chorando de cara limpa é farsa.

& Se você usa lenço ou papel higiênico para limpar o nariz, está mentindo: quem sofre mesmo assoa o ranho na manga da camisa, e não se importa com os botões.

& O choro é como orgasmo. Não admite discurso depois. Aquele que aproveita o choro para passar sermão é apenas um chantagista.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 23/08/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16802

sábado, 20 de agosto de 2011

PREFEITO DOS MORTOS


Soares sabe de cabeça a localização das sepulturas, entre as quais chega a percorrer dois quilômetros por dia em vistorias e manutenção. Foto de Emílio Pedroso.
Quarenta e sete mil defuntos num único cemitério.

Quarenta e um mil moradores na cidade.

Há mais morto do que vivo em Rosário do Sul, município da fronteira oeste do Estado, situado a 386 quilômetros de Porto Alegre. A larga vantagem numérica soa como folclore, mas é verdade.

– Caso a arrecadação do IPTU fosse com quem faleceu, Rosário seria rica – diz Ivan Muniz Soares, 73 anos, pai de três filhos e casado há cinco décadas com Terezinha Rosado Soares, 69 anos, a quem chama carinhosamente de primeira-dama.

Soares é o administrador do cemitério desde 1995, um carismático prefeito dos finados. Finalizou a contagem da população em julho, a partir de média de sepulturas por quadra. Seu expediente se inicia às 7h30min e se encerra às 16h45min. Devido ao temperamento cantante e hiperativo, de modo nenhum se aquieta no escritório.

– Do alto dos muros brancos, eu me imagino comandante de um imenso exército, convocando os anjos e as estátuas a combater comigo.

Dono de um otimismo napoleônico, Soares revista as tropas tilintando o molho das chaves pendurado na calça:

– Meu Ministério de Guerra estaria fortemente aparelhado, temos enterrados diversos combatentes da Revolução de 1923. Elegeria como meu chefe de gabinete o morto mais ilustre do local, o tropeiro e general federalista Honório Lemes, o Leão de Caverá, autor da frase ´Queremos leis que governem os homens, não homens que governem leis´.

Se alguém não acha uma lápide, Soares sabe exatamente onde está. Gravou cada uma das fotos 3x4 dos obituários e decorou milhares de epitáfios. Chega a percorrer dois quilômetros por dia arrumando vasos, recolhendo flores secas, vistoriando rachaduras e as condições das lajes.

– Procuro a família Oliveira.
– É no fundo, segue sempre reto, à direita, ao lado de uma capela azul – indica ao visitante Luiz Carlos Oliveira, 48 anos, que veio prestar homenagem ao túmulo paterno.

E a tarefa de localização depende exclusivamente de sua memória. As ruas não exibem número e nome. Não existe nem o registro da data de origem do cemitério por parte da prefeitura: os arquivos começam a partir de 1904, sem nenhum dado conservado do século 19.

– Muita gente se perde por aqui, neste mar de recordações. Faço questão de permanecer visível, por perto. Oriento os pedreiros nos novos enterros e participo da maioria dos funerais.

Soares não teme assombração, sequer enxerga a morte com pesar e tristeza.

Defende a alegria do lugar, ponto de encontro para conversas animadas da velha guarda nos bancos de madeira, à sombra das árvores.

– Em vez de pensar que os mortos deveriam ter vivido mais, penso: que bom que eles viveram.

Seu entusiasmo toma o partido da transcendência. Destaca o lugar como um território curativo.

– Quando atravessa as duas figueiras do nosso portão, qualquer bêbado fica sóbrio no ato. Pode misturar cachaça, cerveja e uísque, não passará mal depois da visita. Pelo dom da graça, cemitério cura ressaca.

Rosário do Sul é toda cercada de rios e arroios, que compõem a bacia Santa Maria. De propósito, segundo Soares, para facilitar as baldeações das almas ao paraíso.






Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 36, 20/8/2011
Porto Alegre, Edição N° 16798
Veja vídeos de nossa visita pelo cemitério de Rosário do Sul

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

TAL PAI, TAL FILHA

Arte de Cínthya Verri

A paternidade nunca desfrutou de igualdade de condições com a maternidade. Havia uma larga desvantagem nos hábitos, além da gestação, amamentação e de todo o cuidado instintivo.

Não há mais. O Muro da Mauá caiu. Minha filha Mariana, 17 anos, empatou os dois papéis a partir de um singelo gesto. Rompeu o último reduto confessional.
Ela pega minhas roupas emprestadas na calada da noite. Assim como fazia com sua mãe.
Desde que ela veio morar comigo, realiza o anarquismo dos armários. Anseia eliminar os biombos, divisórias e formas de governo. Não preserva sequer conjunto novo. Corta etiqueta para usar pela primeira vez. Desrespeita os lacres e a sensação gostosa de estreia do dono.

Leva minha calça, minha camisa, meu terno, meu macacão. Anda furtando inclusive a coleção de camisetas de futebol, que eu julgava pessoal e intransferível como cueca.

Diz que é altamente autoritário esse papo de masculino e feminino.

Surgiu com a seguinte tirada no jantar: “Enquanto existir autoridade, não existirá liberdade”.

Não posso culpá-la. O homem deveria ter pensado um pouco mais antes de se declarar metrossexual.

Acordo e vou pegar um casaco: sumiu! Passo uma hora procurando entre os cabides, a cesta da lavanderia, o varal, e nenhum sinal. Reviso os últimos passos da roupa. Rezo o pai-nosso pela metade, questiono a mulher, enlouqueço a empregada, incrimino o esquecimento da velhice.

Sabe o que é escolher uma combinação inteira a partir de uma peça e ela desaparecer de repente? Um lampejo de harmonia posto fora? E a frustração? E o desejo reprimido? Você me entende, Laerte?

Desisto, e me dirijo ao trabalho com a sensação incômoda de que não mando mais em minha vida.

Quando Mariana volta da escola, percebo que ela carrega justamente a roupa extraviada. E parece mais dela do que minha.

Nostradamus ou mãe Diná não previu isso. Trate de se acostumar. Não reclame que sumiu, investigue direito, está em casa, no outro quarto.
Controlo o ranger de dentes. Demorei uma década para alcançar a guarda, não vale desperdiçar com picuinhas e egoísmo. Não custa nada renunciar às futilidades, preservar os valores e investir no caráter.

Afinal, é o internacionalismo dos botões, é a integração sociolibertária do vestuário, é a difusão global do figurino.

Hoje coloquei a calça de corações amarelos de minha filha. Não esperava que servisse. Entrou certinho. Quero só ver a cara dela ao descobrir.




Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 16 de agosto de 2011

MESA RESERVADA

Arte de Childe Hassam

Sandrinha ama meu filho Vicente, nove anos. Ela coordena a brigada de atendentes no restaurante Suzanne Marie, no Moinhos de Vento.

Amar meu filho é me amar duas vezes.

Não consigo ser pai com Sandrinha perto. Ela não deixa faltar nada. É o menino se acomodar na cadeira que já está cochichando planos mirabolantes em seu ouvido, por certo encomendando pratos especiais fora do cardápio, imagino que seja ovo estrelado em cima do arroz soltinho, bife e batata frita, algo irresistível para uma criança.

Molecagem de amigos, que aumenta porque não escuto a conversa. Identifico que o assunto é proibido pelas risadas e olhos chineses dos dois.

Com Sandrinha perto, Vicente vive um domingo eterno, do jeito que sonhara no ventre.

Eu brinco que ela leva meu filho em sua bandeja para cá e para lá, que mima demais o guri, que estraga a educação com excessiva ternura.

Na aparência, reclamo e faço cena; secretamente, admiro seus cuidados, sei que o amor conserva, não estraga ninguém.

De modo egoísta, a família torce para que não tire férias. Com ela longe, as fadas desaparecem, Debussy se cala, o suco da filha Mariana não vem, meu café enfraquece, o chá da esposa dorme no bolso do garçom.

Sandrinha é insubstituível. Uma monarca da simplicidade.

Tão aplicada e cuidadosa, que nunca a vi de cabelos soltos, sempre de coque. Deve ser bailarina de uma caixinha de música. Dança sem parar no espelho de nossos olhos, num vaivém incessante, destacando-se pela elegância – a sapatilha rosa da boca, as palavras na ponta dos pés, o pescoço erguido mesmo ao apanhar talheres do chão.

Vicente dá corda, eu dou corda, não queremos perdê-la de vista: exemplifica a delicadeza atenta do lugar, a comida curativa.

Mas Sandrinha hoje não poderá vir. Nem amanhã. Nem depois de amanhã. Vai demorar a voltar.

Recupera-se na UTI do Hospital de Gravataí. Foi vítima de um assalto ao descer do ônibus no sábado, no retorno do trabalho. Abordada por um ladrão, entrou em pânico, saiu correndo e caiu na rua. O assaltante atirou friamente em suas costas. Atirou quando ela estava deitada, indefesa, entregue.

Talvez ela não ande mais. Agora eu e Vicente iremos carregá-la no colo.

É hora de servi-la. E ainda explicaremos para Sandrinha que ela é magra, leve, não cansa os braços.







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 16/08/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16794

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

BORRALHEIRO INDICADO


Publicado na revista Nova
Seção Agite&Use, "O Que Ler", p. 27
Edição de Agosto 2011, Ano 39, Número 8

sábado, 13 de agosto de 2011

O VELHO E O RIO

Cego de um olho, com figurino de corsário, Pedro Ibaldi fez do Rio Uruguai o seu quintal. Foto de Emilio Pedroso.

– Onde encontro Pedro Ibaldi?
– Ora, ele fica sentado como avião velho na frente do Rio Uruguai – avisa seu amigo Elias Dias, 67 anos.

O bigodudo Pedro é uma lenda viva dos 36 mil moradores de Itaqui, no sudoeste do Estado, fronteira com Argentina, cidade de maior distância da Capital, a 665 quilômetros de Porto Alegre. Ele pescou uma tonelada de cardume numa noite, entre dourado, piava e grumatã. Para ter uma ideia, é o dobro do recorde de Elias, seu parceiro de barco e vento.

– Eu colhi 518 quilos em três noites, ele puxou mil quilos de uma corda só em menos de 12 horas – confessa o surpreso Elias.

– Quem é Pedro?
– É o nosso velho do rio, dizem que até os peixes se aproximam dele para pedir orientações da correnteza – avisa Ilca Fagundes, 53 anos, presidente da Associação de Pescadores de Itaqui, que reúne 300 filiados.

Pedro se percebe diferente, representado pela figura de corsário. Tira, inclusive, sarro da catarata do olho.

– Meu olho direito é todo azul de dia limpo, bonito, mas inútil – explica.

Ele enxerga apenas com o esquerdo:

– Meu olho esquerdo é marrom, feio, vira-lata, mas leal.

A deficiência não impede de seguir o ofício. Pelo contrário, reforça sua disposição com os remos.

– Em terra de cego, quem tem um olho não é rei, é pirata. Ferido, tenho mais coragem.

Pai de sete filhos, viúvo desde 1972, quando sua mulher Clotilde morreu de derrame, Pedro acampa no casebre de madeira. Mora mesmo nas águas. Prepara fogo de chão no mato, divide as brasas com a ninhada de cachorros, circula entre o galpão de palafitas e as beiradas de barro. O rio é seu quintal, e as canoas são suas bicicletas distraídas: sequer estão amarradas nas árvores.

– Piso na água com cuidado porque acho que é o manto de Nossa Senhora – reverencia.

Balseiro e dono de longa experiência na Marinha de Uruguaiana, Pedro antevê as artimanhas e ciladas da hidrografia. É um doutor dos barrancos invisíveis e um farol dos pesqueiros em manhãs de cerrada neblina. Atravessou a nado, diversas vezes, os dois quilômetros que separam Itaqui do município argentino Alvear.

– Meus melhores amigos são o Uruguai e o Ibicuí. O rio não trai como o homem, não dá as costas, sempre avisa quando está rancoroso.

Como morador ribeirinho, já enfrentou mais de 50 cheias.

– A enchente é minha diarista, limpa a casa de graça – exemplifica, para logo arrematar: – O bom de ser pobre é que não tenho nada a perder.

Pedro Ibaldi carrega um lenço no bolso da calça para secar o suor. Todos juram que ele mente a idade, que não tem 75 anos, que ultrapassou os 90.

Sem saber ler e escrever, Pedro busca uma pastinha verde e aponta aos números de sua certidão.

– 24 de outubro de 1936...
– Viu que não minto?

Elias justifica as rugas do colega:

– O pescador vai aparentar 10 anos a mais do que os outros. São dois sóis para enfrentar, o do céu e o espelhado na água.

Pedro também inventa uma resposta para sua estranha eternidade.

– Não fiz pacto com o demo, mas com o Rio Uruguai – conclui, agora sério, enquanto com um único olho admira seu aeroporto particular de martim-pescador.




Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 13/8/2011
Porto Alegre, Edição N° 16791
Veja vídeos de nossa travessia pelo Rio Uruguai

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

ETIQUETA DA CAVALARIA

Arte de Cínthya Verri


Os homens não confessam suas fraquezas, realmente são discretos em suas lamúrias. Diante da pancadaria verbal da parceira, apanham em silêncio. Têm preguiça de se defender. Resmungam apenas, e se entregam a polir os cascos. Não respondem nem quando cobertos de razão. Esvaziam qualquer xingamento com miados de falsa obediência: “Já vou”, “ok”, “certo”, “desculpa” e “logo faço”.

Se as patroas estão dispostas a comprar briga, eles não emprestam o cartão de crédito. Saem das zonas de conflito, que costumam ser o quarto e a cozinha (não tem sentido brigar na varanda). Procuram os ferrolhos do polícia-ladrão doméstico. Afinal, descobriram que a discussão depende mais do aposento do que da fragilidade de seus envolvidos. Alguns marmanjos se encaminham para a trégua da garagem, outros sujeitos investigam a origem das mesas mancas. Os trabalhos de marcenaria e de mecânica permanecem sendo os favoritos para espairecer.

A verdade é que a turma masculina não sobreviveu à vigilância materna e chegou, exausta, à vida adulta. Porque, na infância e adolescência, nenhuma mãe concedia folga, pedia para ajeitar algo a cada minuto. Arrumar o quarto, então, era uma cobrança implacável. Toda mãe tem alma de governanta, toda criança é vocacionada à camareira.

A esposa deveria pôr a mão na consciência, fazer um exercício de generosidade e concluir que seu marido não é um filho da m. ou da p., e sim o filho da sogra. Um pensamento singelo capaz de revolucionar os relacionamentos. Num instante de lógica, verá o quanto ele sofreu e agradecerá que não é tão sequelado, que pode caminhar e se barbear sozinho.

O macho merecia mais respeito, suporta em segredo o insuportável. Por exemplo, nunca vi marido reclamar dos tufos de cabelos no box. É um argumento implacável, porém proibido pelas regras de etiqueta da cavalaria.

A mulher abandona um monumental aplique nos azulejos do banheiro, larga a cabeleira de Elke Maravilha no cantinho, e não recolhe. E permitimos que ela desfile pelo corredor após o banho. E deixamos que vá impune ao serviço.

A mulher doa mechas inteiras ao piso, empreende um reflorestamento sanitário, e não falamos nada.

O ralo sempre entope; e ela jamais entende o que aconteceu, e dá-lhe inferno e dá-lhe Diabo Verde.

E ainda reclamam dos respingos de nosso mijo.




Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 9 de agosto de 2011

POR QUE EU AMO MINHA MULHER?

Arte de Edouard Manet

Não é nenhum grande ato que desperta o amor, não é um heroísmo, uma atitude exemplar, um feito impressionante.

O que faz um homem amar uma mulher e uma mulher amar o homem é tão pessoal, que é possível passar uma vida inteira sem desvendar o motivo. Não é necessário ter consciência para ser feliz. Não é fundamental entender para amar. Mas é mais bonito.

Fico me perguntando o que inspirou minha confiança na Cínthya. Qual foi a delicadeza que ela cometeu a ponto de me viciar no convívio? O que realizou no começo do relacionamento que mexeu comigo e não quis mais abandoná-la?

O que ela aprontou de errado que deu tão certo? O que me pôs a repeti-la um dia atrás do outro sem cansar? O que me seduziu de tal forma, que entrei uma vez em sua casa com uma mochila e voltei com uma mala?

Talvez tenha sido sua simplicidade. Eu me impressiono com o que é espontâneo. Não havia quadros em suas paredes, nem estantes. A única coisa que estava de pé era o violão. Aquilo me emocionou: a música de sentinela. Ela brincou:

– O violão é meu confidente, meu melhor amigo.

Inventei de dedilhar as cordas para descobrir logo seus segredos, só que desafinei e ri envergonhado. Não estava maduro para o mistério, não merecia ainda suas lembranças, dependia de mais cumplicidade.

Mas não foi isso, ou somente isso, sempre tem algo que se soma.

Acho que ela travou meu olhar na hora em que passeávamos de carro pela orla do Guaíba. Estreava na rádio a canção Janta, de Marcelo Camelo e Mallu Magalhães.

“Eu ando em frente por sentir vontade...”

Cínthya cantava sem conhecer a letra. Aprendia a letra enquanto cantava. Longe do medo da gafe. Em voz alta, errando, tropeçando, gravando o refrão. Completava os trechos que não entendia com melodia e dirigia as rimas até o fim. Descobri que ela tinha coragem. Não iria temer um desafio. Mesmo que fosse complicado como eu.

Pensando bem, me rendi no café da manhã. Quando ela me ofereceu um saco de bolachas doces do bairro Liberdade. Eu peguei as redondas, perfeitas, para explodi-las com exclusividade em meus dentes.

Ela não; ciscou os farelos. Optou pelas bolachas partidas. Do fundo, recolhia os pequenos retângulos, triângulos, quadrados desiguais. Compadecida do pouco, enamorada da miudeza.

Um gesto silencioso que me cativou. Cuidava de mim já na primeira manhã juntos. Comia as quebradas para me deixar as inteiras. Havia cinco ou seis bolachas intactas:

– Toma, por favor...

Reprisando nossa vida, ela avisou, naquele momento, que nunca partiria meu coração.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 09/08/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16787

sábado, 6 de agosto de 2011

TERAPEUTA DOS CAVALOS

Mais conhecido especialista em treinamento de equinos de Passo Fundo, Paulo da Costa Lamison já domou 120 garanhões e éguas em três décadas. Fotos de Tadeu Vilani


O redondel é o divã, as baias são a sala de espera, o minuano agitando as figueiras forma a música ambiente.

Paulo da Costa Lamison, 53 anos, é o mais conhecido terapeuta de cavalos de Passo Fundo, cidade de 185 mil habitantes, situada a 284 quilômetros de Porto Alegre. Domou 120 garanhões e éguas em três décadas de atividade. Criadores largam em suas mãos o destino de animais valiosos, que custam mais de R$ 100 mil.

Natural de Soledade, com passagem por Mato Grosso, pai de dois filhos, Lamison é perito em relinchos e montaria. Não há raça que não se adoce com seu rosto triste, anguloso, de olhos fundos e negros e sobrancelhas em formato de acento circunflexo. Vestido como o figurino campeiro manda, de botas, bombacha, lenço e chapéu, ele não admite frescura no trato com seus pacientes e desdenha o palavrório difundido por filmes como O Encantador de Cavalos:

– Ternura sim, pose não. Ué, cavalo não é retardado para papear todo momento em suas orelhas. Excesso de voz cansa. Treinador que somente fala o que fazer será considerado chato pelo bicho. Cavalo é feito de silêncio.


Lamison suspende o corrimão das legendas e confia na inteligência do envolvimento.

– A rédea é minha voz. E a única verdade é o contato.

Andando de cabeça baixa, para demonstrar humildade, o domador leva quatro meses para cumprir a doma e 11 meses de preparo aos rodeios (o equivalente a uma segunda gestação). A terapia já se inicia pelo modo que se ata o laço e as cordas do cabresto.

– Um nó malfeito irrita e machuca.

Muitas vezes, Lamison é procurado pelos donos para curar traumas. Complexos de Édipo e de Electra, de Cinderela e Peter Pan não têm serventia na cocheira. Os problemas são outros:

– Complexo contornável é quando o cavalo se fere ao pular arame, e passa a temer a proximidade das cercas. Brabo de superar é quando o cavalo corta a boca com o buçal. Estraga a educação: sangrará sempre na mínima mexida. Ele se torna absolutamente arisco, antissocial.

O analista de Bagé, personagem de Luis Fernando Verissimo, conheceria novos métodos do pelego. Assobiar, por exemplo, é pré-requisito do terapeuta, uma graduação necessária nas lidas do inconsciente equino.

– A mãe Benedita me educou ao assobio de longa distância. Sem assobiar, cavalo não abre o coração.

Quem concebia a doma pela força, na base do grito e da pressa, acaba se surpreendendo com as sutilezas da negociação. Seduzir não corresponde a apenas mandar, fazer muxoxo e ter firmeza para colocar a sela e arreios. A longa convivência é que gera o entendimento.

– O bichano é uma antena, não recomendo esconder nenhum sentimento dele.

Distinto de sua fama, o cavalo não é resistente, mas hipersensível. Pode morrer de cólica, gripe ou tétano. Não se deve tirá-lo do campo e substituir sua alimentação simplesmente pela ração. O essencial é reconstituir a atmosfera rural de nascença.

– Cada cavalo é um idioma. Temos que descobrir sua habilidade, ver se gosta de trabalhar com o boi, saber quem foi o pai e a mãe, observar o temperamento de irmãos e irmãs, compor a árvore genealógica para definir quais os melhores comandos e evitar que ele dispare e enqueixe à toa.

O fim da análise – e a alta – representa a fase mais espinhosa. Quando Lamison coloca de lado o atendimento individual e se impõe como terapeuta de casal. Período de explicar e repassar os fundamentos do treinamento ao dono, para que o trabalho de respeito seja mantido. A tarefa agora é domar o patrão para domar o cavalo.

– Trato o cavalo, para depois tratar o cavaleiro, para em seguida tratar os dois juntos e acasalar o ritmo.

Além da liberdade por fora, cavalo feliz é o que fica solto no próprio pensamento.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 33, 06/8/2011
Porto Alegre, Edição N° 16784
Veja vídeos de nossa passagem por Passo Fundo

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

COIMA

Arte de Cínthya Verri

Pedro imaginou que seria emocionante viajar de Porto Alegre a Buenos Aires de carro. Vinte horas e a possibilidade de casar os dois pampas: o pampa e la pampa.

Ao atravessar a Uruguaiana, raciocinou que a rodovia em obras fosse um trecho. Uma breve e momentânea correção no asfalto.

Dez quilômetros, vinte quilômetros, cinquenta quilômetros, setecentos quilômetros e a construção e o estreitamento da pista não terminavam.

A Rota 14 não existia mais, estava sendo totalmente refeita. Pelo menos, suspirou de satisfação ao acompanhar a profusão de barreiras rodoviárias portenhas.

— Nossa, quanta segurança! — pensou.

Admirou a elegância do uniforme dos guardas: o colete, o quepe, as botas.

— Menos mal, estrada difícil, mas segura.

Até que uma blitz sinalizou que estacionasse no acostamento.

O policial argentino se aproximou. Disposto, Pedro já sacou a carta verde, a autorização da financiadora, a carteira, o registro do carro, orgulhoso de cumprir a lista obrigatória de exigências da fronteira.

— Desce do carro!
— Olá, tudo bem, o que houve?
— Você não estava com farol aceso.
— Não sabia que era necessário usar durante o dia.
— Sim, aparecia nas placas.
— Já entendi, serve como advertência e vou corrigir a partir de agora.
— Não, tem que pagar multa de 600 pesos.
— Tudo isso?
— Ou o dobro na hora de sair do país…
— Senhor, não é tradição no Brasil, eu desconhecia a regra.
— É a lei.
— A multa não deveria ser enviada ao meu endereço?
— Não, caso não pagar neste momento não terá permissão de deixar a Argentina.

Pedro quitou os 600 pesos, com a impressão de injustiça. Seguiu o percurso, perdoando o desconforto, a série de pedágios, o gasto desnecessário.

— Ok, foi uma exceção, uma onda de azar.

Para pensar positivamente, entrou no posto YPF. A gasolina argentina é muito melhor, tem o triplo de rendimento, em especial a Super, de 95 octanos, e a Fangio, de 97.

Ele se enxergava fazendo um bom negócio; restaurava as vantagens da viagem. Mas, no retorno à pista, foi apanhado por outra blitz.

— Desce do carro!
— Olá, tudo bem, o que houve?
— Está com luz alta.
— Vocês pediram.
— Nós? Quem?
— Vocês, a polícia argentina, há meia hora.
— A lei pede luz baixa, ela está alta. Você será multado.
— Quê? De novo?
— Foi por problemas diferentes.
— Não, é o mesmo.
— Não ouse discutir com autoridade. Seiscentos pesos! E agradeça que o argentino paga 1.500 pesos.

Não demorou para que ele fosse parado pela terceira vez. Já estava louco para dizer que Maradona nunca seria melhor do que Pelé, trancou a voz nas obturações; afinal, estava de férias, não poderia se estressar, recomendações médicas, risco de infarto, coisas da velhice.

— Desce do carro!
— Para quê?
— Como?
— O que aconteceu?
— Está com farol aceso.
— Mas é luz baixa, olha aqui…
— Pois não se pode trafegar neste trecho com farol aceso, é proibido.
— O que pretende fazer?
— Multa de 600 pesos.
— Quê? De novo? Já recebi duas multas em menos de duas horas.
— Foram em trechos distintos, é a lei, desculpa.
— Desculpa? Nem entrei em Buenos Aires e já perdi mil reais.
— Porque não cumpriu a legislação.
— Vocês mudam de opinião a todo momento. Parece romance de Macedonio Fernández.
— Leu Macedonio Fernández?
— Sim, já li.
— Então, a multa é de 900 pesos.

É óbvio que Pedro sou eu. Fiquei com vergonha de meu próprio nome.



Crônica publicada no site Vida Breve

terça-feira, 2 de agosto de 2011

MISTÉRIOS DA ADOLESCÊNCIA

Arte de Tom Wesselmann

Elias era um camelo.

Mesmo. Amigo de trago da adolescência. Nunca ia ao banheiro. Tomava todas e permanecia sentado, puxando a roda no Bar do Beto.

Sua tática amorosa resumia a resistência: não abandonar jamais o posto de guarda. Monopolizou a condição de maior sedutor da Fabico, pelo simples fato de não se levantar para mijar. Ele me dizia:

– Em algum momento, você terá que sair da mesa e aproveitarei a chance de conversar sozinho com a menina.

Ganhava vantagem por atravessar a corrida inteira sem nenhuma troca de pneus. Não perdia tempo com pit stop no mictório. Não experimentava a longa ampulheta das filas, o constrangimento da espiral de gente no corredor. Não gastava um segundo em reabastecimento, reparos, ajustes mecânicos. A sola dos seus sapatos não cheirava o piso ensebado.

Um verdadeiro herói da bexiga presa, queniano da São Silvestre, apto a segurar litros e litros de cerveja longe de sofrer caretas e aperto das pernas.

Poderia estar chovendo, com barulho da torrente escorrendo do toldo, mas ele ficava inabalável, alheio aos comandos de esvaziamento do cérebro.

Nós, homens normais, após horas e horas de cochichos e cantadas, não aguentávamos a maratona do deserto e pedíamos licença para nossos flertes.

Despudorado e lépido, Elias continuava o papo com as nossas pretendentes. Quinze minutos de prorrogação que mudavam o resultado da partida. Quando voltávamos do toalete, a menina, antes tão dedicada às nossas palavras, girava o rosto em chave de boca com ele.

Dava um desespero. Ele nem era bonito, mais para as orelhas de Serge Gainsbourg do que para os olhos de Frank Sinatra. Muito colega desistiu da faculdade de Jornalismo em função da concorrência desleal. Diante de Elias, qualquer um se reduzia a um mijão.

Não entendíamos o desempenho espartano, o mistério budista de autocontrole. Como ele não precisava das passagens obrigatórias ao banheiro?

Iniciamos escala de vigia de seus passos, revezamento da turma; o garçom receberia 20% para informar de eventuais movimentações dele no fundo do prédio, território sagrado dos sanitários. Nada foi comprovado. Será que fazia ioga? Será que havia atingido o alaya-vijnana, o oitavo e mais tênue nível de consciência, onde as sementes cármicas são armazenadas?

Estou rindo até agora. Duas décadas transcorridas, Elias confessou seu segredo: por desforra e para nos humilhar, usava fralda geriátrica.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 02/08/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16780

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O DIÁRIO ROSA E O LIVRINHO NEGRO

Arte de Fra Filippo Lippi

Não existe segredo quando escrito.

Minha irmã Carla, 14 anos, mordia a caneta Bic e arredondava a letra em seu diário. Passava horas a fio com o caderninho rosa, acolchoado, formato de coração. Ela nunca nos permitia folhear, muito menos ver onde guardava.

Eu e os outros três irmãos queríamos descobrir o que ela escrevia. Devia ser o namoro proibido no portão, os beijos na boca, as juras e promessas eróticas e tudo aquilo que provocava risinhos quando ela cochichava com suas amigas no recreio.

Irmão foi feito para denunciar; não fugíamos à regra.

Um dia, quando ela estava no dentista, destrancamos a veneziana e pulamos a janela para investigar seu quarto. Abrimos todas as gavetas, remexemos as roupas, torturamos suas bonecas. Óbvio que as barbies eram mulas do tráfico do amor, conheciam o paradeiro e não entregavam sua dona.

Encontramos o embrulho quase desistindo da tarefa, no fundo falso da escrivaninha.

Nem abrimos, entregamos diretamente aos pais - ainda dizendo que Carla pediu para que eles avaliassem os erros de português.

Nossos pais viram tudo, menos os desvios de concordância. Carla apanhou, chorou, ficou de castigo.

Eu ri a princípio, depois me arrependi da maldade.

Para me retratar, decidi fazer, então, um diário. Redigia duas ou três linhas sempre antes de dormir, como uma reza profana, e mantinha minhas confidências distantes dos manos.

Se eles descobrissem, estava ferrado. Evidente que não me poupariam do vexame e repassariam o objeto para a censura familiar. E queimaria na Inquisição da churrasqueira.

De madrugada, quando ninguém me enxergava, confiava o meu livrinho negro, com desenhos de caveira, na fronha do travesseiro. Miguel ou Rodrigo, um dos dois, fingiu dormir e desvendou o esconderijo.

No dia seguinte, pedi de joelhos que me devolvesse, implorei que não mostrasse aos outros, ofereci minha coleção de bolitas de gude, nada contentou a dupla.

Meus pais me chamaram para conversar. Fizeram questão de ler alto a todos o que estava anotado em meu diário.

"Adoro lavar a louça e varrer as folhas do pátio, minha mãe precisa de ajuda para não envelhecer."

"Meu pai tem sido um bom conselheiro, quero ser igual a ele no futuro."

"Os irmãos são anjos que me protegem dos tropeços na escola."

"Nada melhor do que uma missa para começar o domingo."

Fui extremamente elogiado, paparicado, reverenciado. Meus irmãos tiveram que me engolir como exemplo durante anos.

Coloquei minhas mentiras no diário para viver as verdades em segredo.

Literatura é confundir. Ou você acha que isso que escrevi também é real?