terça-feira, 29 de março de 2016
TER RAZÃO É DE MENOS NESTA VIDA
Aquele que nunca deu o braço a torcer um dia dobrará os joelhos. Mesmo o mais ferrenho orgulhoso não escapará da humildade. Ninguém escapa de conhecer a si. Pode durar perturbadores 20 minutos, um breve intervalo, mas experimentará o calor do despojamento, beijará o chão de sua renúncia, os ouvidos se abrirão para as batidas na porta e as vozes na janela.
Pode ser uma consciência rápida e provisória, não importa, só que ele sentirá na pele o tamanho da falta em seu corpo, o tamanho de suas falhas, o tamanho de sua teimosia que afastou de perto todos que realmente o amavam.
Mesmo o mais frio orgulhoso perceberá – por um fundo relance – que não tinha razão, que seguiu a intolerância jurando que era temperamento, que desenvolveu o egoísmo jurando que era independência, que vigiava um túmulo jurando que era o seu berço. Estará desamparado em sua esperança, não restou sequer uma companhia para acreditar em suas mentiras.
Mesmo o mais insano orgulhoso cansará das explicações e das justificativas, dos detalhes e dos álibis para aliviar a sua responsabilidade.
Mesmo o mais endurecido orgulhoso verá em algum momento o que perdeu e o valor daquilo que colocou fora. Seus olhos brilharão confusos, vermelhos, aflitos. Terá uma clareza absurda do que foi, e da prisão que criou para a boca.
Será uma tempestade de lucidez encurvando as árvores e as certezas. Conectará os fios das lembranças fazendo a saudade funcionar plenamente, pela primeira vez, em sua casa.
Ainda que por meros minutos, receberá a paz da pobreza, a paz da pequeneza, a paz da inutilidade, a paz de não ser coisa alguma sem os outros, que o colocará a chorar compulsivamente, rebobinando o sofrimento que gerou e entendendo o quanto comprou uma briga desnecessária com o destino, o quanto não valorizou o que lhe fazia alegre, o quanto sempre se viu traído e enganado por antecipação, o quanto dedicou o tempo a se vingar e a perdurar lições a quem não concordava com as suas convicções.
Não ouvia o óbvio porque preferia falar bonito; não pedia desculpa porque não queria ser fraco; não se entregava para proteger a sua vergonha. Emburreceu a emoção procurando ser inteligente.
Tudo o que combateu racionalmente, tudo o que contestava, desaparecerá e amargará exatamente o contrário do que pregava.
Virá um arrependimento por ter se defendido excessivamente a ponto de não ouvir a posição contrária, preocupado apenas em não ceder, interessado em ganhar a discussão custe o que custasse (pena que custou a própria vida!).
O que explica pais ligando de madrugada para os filhos, sem nenhum motivo, para dizerem simplesmente obrigado; filhos surgindo na residência dos velhos pais cheios da gentileza do remorso; ex mandando mensagem, décadas depois, do nada, para se penitenciarem de uma deslealdade.
O desespero não tem hora para derrubar as reservas e defesas. O desespero é sol de noite, é luz da pele no quarto escuro.
Nem o orgulhoso mais renitente foge do encontro com a verdade. Pois Deus vem, sempre virá, na forma de terapia ou simpatia, na bênção ou no isolamento. Nunca é tarde demais para Deus.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4
29/03/2016, Edição 18485
domingo, 27 de março de 2016
NÃO É BRINCADEIRA
Não é o trabalho que me cansa. Não é viajar três vezes por semana e dormir três horas por dia. Não é acordar cedo e conciliar casa, filhos e contas a pagar. Não é o excesso de tarefas, de obrigações e de responsabilidades. Não reclamo por não parar quieto, por ler em trânsito, por comer voando, por render os intervalos apressados de mim para a musculação e rústica. Não reclamo das olheiras e dos cochilos de pé no ônibus.
Só me falta na vida não mais me preocupar com o amor. O que me exaure é a procura de alguém: alguém que esteja dentro da minha solidão para não precisar mais estar sozinho.
Se quem é solteiro já sofre, imagine a situação de quem ainda por cima é romântico, pretende casar e seguir um relacionamento sério.
É uma maratona que começa nos aplicativos e redes sociais, é peneirar fotos, hábitos e postagens, é convidar no Facebook, é adicionar o telefone, é manter agenda ativa de eventos, é tentar fazer uma piada que não será entendida por diferença de geração, é perdoar gente com alternância absurda de humor, é gostar daquela que não gosta de você e recusar aquela que se interessou por você, é distinguir psicopatas e doidas das intensos e apaixonadas, é não saber se segue os conselhos dos familiares (vá devagar!) ou dos amigos (não deixe de ir!), é se defender de grosserias e gratuidades, é adorar a aparência e não suportar a burrice, é admirar a inteligência e não aguentar a cafonice, é se arrumar todo para não conhecer ninguém interessante, é enfrentar a estranheza de um novo corpo, é receber em casa, perceber que não há futuro e gastar os bons modos fingindo simpatia, é comparar as relações de antes com os problemas de agora, é atravessar as cantadas chatas dos bares, é decodificar os gritos nas baladas, é sair para jantar, é explicar um filme, é acreditar que achou, é perceber que não achou ainda, é festejar um velório, é enterrar uma festa, é recomeçar a busca, é alternar momentos de extrema esperança e excitação com picos de desânimo e ceticismo, é temer a recaída com ex com as sucessivas desventuras, é acompanhar os colegas em fracassos, é errar a medida da bebida e arcar com a ressaca moral, é retomar a terapia, é abandonar a terapia.
Não existe canseira maior, tanto física quanto espiritual, do que a expedição pelo par ideal.
Cada mês do solteiro romântico equivale a um ano do casado, tamanha a volta na alma, os passeios pela Cidade Baixa e Moinhos de Vento, as promessas infundadas e os romances abortados.
O curioso e engraçado é que, quando encontrar a minha mulher, esquecerei todo o esforço que tive, não protestarei pela demora, não xingarei os percalços. Graças a Deus, a felicidade sempre foi desmemoriada - a boba da dor é que não esquece nada e jamais perdoa.
Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Donna p. 30
Porto Alegre, 26 e 27 de março de 2016.
terça-feira, 22 de março de 2016
A TOUCA
A minha mãe não queria que lavássemos os cabelos todo dia. Não havia jeito de argumentar que era homem. Ela alegava que o cabelo iria cair (caiu do mesmo jeito, mãe!).
Sempre fui adepto, desde pequeno, de sair de banho tomado. Não gostava da sensação de ir para a aula com cheiro de cobertor. A água lavava os sonhos, acordava a pele, o perfume terminava sendo outro, mais inédito e duradouro.
Sem banho de manhã, as remelas venciam a guerra dos olhos, o suor azedava ao meio-dia e vestia o uniforme como uma incômoda fronha, com gosto de dormido.
Tinha que ser dia sim, dia não. E a mãe vinha oferecer uma touca transparente para pôr na cabeça.
– Assim não molha o cabelo!
Não sei o que a touca pode influenciar na sexualidade dos meninos, mas boa coisa não traz. Para um guri em formação, com os pelos surgindo e a voz mudando, a touca significa a coroa de uma drag queen. O apogeu do ridículo.
Acredito que uma mulher até salve o adereço com o seu charme, porém a touca no tronco masculino é uma aberração de plástico. É uma camisinha de Golias. É uma fantasia de Carnaval mais do que uma proteção. É servir a carapuça da extravagância, o capacete da afeminação.
A touca é o equivalente a experimentar um sutiã e uma calcinha. É despentear uma peruca.
Tem uma assinatura excessivamente teatral.
Nada contra botar a prevenção em cozinha ou hospital, mas daí estaria vestido e descontaria a sua afetação. O problema é a nudez com a touca. Não tem como ser levado a sério. Seremos alienígenas, a comicidade esvazia a seriedade do corpo nu.
Lembrei da touca quando um amigo me confessou que usa com a sua mulher na banheira. Como pode ainda se desejarem depois dessa visão suicida?
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4
22/03/2016, Edição 18479
domingo, 20 de março de 2016
O FIM DE UM LIVRO OU DE UM AMOR
Já perdi todo um livro de poemas, na época em que ele era datilografado e não existia ainda computador. Esqueci na mesa do bar do Antonio na UFRGS e jamais recuperei. Deve ter ido para alguma lixeira ou servido de rascunho para um escritório. Guardei o título: Minha Pequena.
Lembro que tentei reescrever e fracassei, pois já tinha a sensação de tê-lo escrito, não havia mais aquela emoção que me movimentava a desabafar.
O fim de uma relação é igual. É como um livro feito durante meses, verso a verso, que acaba extraviado. Um livro que não existe mais, que tampouco será lido. Só você conhece o valor que estava ali, mais ninguém, a outra pessoa jamais receberá a mensagem por inteiro, jamais compreenderá o quanto você amou, o quanto mantinha fotografias mentais em sua saudade, o quanto se esforçou para dar certo e encontrar o ritmo da felicidade a dois.
Você disse e não disse, você explicou, mas não foi entendido. Sua voz se misturou ao vento, já é chuva e não faz sentido gritar pela autoria com o estrondo dos relâmpagos. Não será ouvido, não convencerá de seu talento de amar, não inspirará remorsos com as rimas, não assegurará a longevidade das suas palavras.
Não disporá de chance de revisão dos acontecimentos, da releitura e do lápis sublinhando as passagens prediletas. Não experimentará o purgatório de uma biblioteca. Perdurará o ruído externo, cada um com a sua versão, e não virá à tona o testamento íntimo.
Não tem a prova de que os dias foram reais, de que o romance foi verdadeiro, de que valia a pena insistir pelas brechas dos risos e da cumplicidade em meio aos caos das dúvidas e das brigas. Contará apenas com a solidão de sua palavra contra a dela. De que modo comprovar a hemorragia de um coração que sangrou fora do tecido?
Até você duvida de sua sanidade, até você desconfia que não exagerou, inventou e distorceu as lembranças. Pois o desejo corrompe a memória e modifica os fatos de acordo com as vontades imediatas, que mudam com o sim ou com o não. O que poderia reconfortar é o preto no branco, a letra impressa, o papel juramentado que desapareceu no anonimato.
Não desfrutou de backup e da salvação dos arquivos temporários. É um cansaço sem recompensa. Uma exaustão sem finalidade.
O final de um amor traz a injustiça de um livro extraviado. Morreu escrevendo o que não virou vida e esperança. Talvez tenha sido a sua obra-prima, nunca descobrirá.
Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Donna p. 34
Porto Alegre, 19 e 20 de março de 2016.
terça-feira, 15 de março de 2016
QUE ASSIM SEJA
Eu sou homem e acredito em poesia de fadas (que é melhor do que os contos de fadas). De uma noite perfeita, é possível gerar a lealdade de dias imperfeitos. De uma noite perfeita, descobriremos a força para atravessar futuras tristezas.
O que sofri na vida deixará de ser cinismo e se transformará em humildade dos ouvidos. Minha dor será gentil e não mais agressiva e desconfiada.
Esta mulher salvará a minha ingenuidade, a minha pureza, avisará que não preciso ser cínico e incrédulo, que amadurecer não significa perder a fé no amor.
Tudo virá como um passe de mágica: nenhum dos dois desmarcará o primeiro encontro, a timidez desaparecerá como neblina, a vontade de morar junto emergirá no primeiro abraço, não nos desgrudaremos depois da primeira transa, a paixão nos dará a coragem para enfrentar os receios da família e dos amigos. Cada mão dada inesperadamente formará o aço da pá para enterrar antigos relacionamentos. Driblaremos o impossível com a teimosia dos loucos, planejaremos a nossa vida em comum com a compreensão dos sábios.
Pânico recíproco será calma, medo recíproco será desejo, sensibilidade recíproca será intimidade, espanto recíproco será descoberta.
Ela se apaixonará pela minha alegria, mas também pela minha melancolia, meu humor, minha sinceridade. Não vou me explicar mais, não vou me defender mais, não me sentirei sobrando em mim ou faltando no outro, estarei milagrosamente confortável no mundo, como nunca antes, como talvez me percebi raramente na infância.
Beberemos a tempestade no copo d’água e retiraremos alianças do sol tapado pela peneira. Se fui gato-sapato de outros romances, terei agora a barba acariciada de um leão.
Não inventarei desculpas, inventarei saídas para multiplicar a presença.
Acredito no enlace em que não pedirei nada, não reclamarei para ser prioridade, não protestarei por espaço como um indigente das estrelas – a mulher saberá o que digo roubando as minhas palavras com os beijos.
Eu acredito piamente no feitiço, na predestinação, que devemos ajudar o acaso jamais subestimando as evidências. Eu acredito no encantamento, no olhar paralítico enquanto o meu corpo se desespera em gestos.
Amarei a véspera como um fato e o fato como uma relíquia da memória.
Antes do eu te amo, falarei que parece que a conheço há muito tempo, pois ela terá o mesmo rosto de minha esperança. Ficarei surpreso o quanto me conhece pelo tato, o quanto me acha pelo olfato, o quanto me revela pela ternura.
Nem vou acreditar naquilo que está acontecendo de tanto que acredito.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4
15/03/2016, Edição 18473
sábado, 12 de março de 2016
BODAS DE PRATA
Fazer de conta que nada aconteceu é o melhor jeito de não se separar. E o mais irritante. Não ceder aos encantos da fúria vigora como a estratégia perfeita para a imortalidade dos laços.
Não revidar a briga com ofensas, nem devolver as cobranças com atitudes passionais costuma neutralizar o ódio. A separação é uma urgência momentânea, uma raiva da hora. Alterando o estado de espírito, perde a validade. Longe do consenso, é apenas uma crise. O amor perdura pelas sobrevidas da tolerância.
Meu amigo já foi despejado pela mulher dezenas de vezes, já foi convidado a ir embora semestralmente. Ela discute a relação sozinha, diz que não aguenta mais, manda o sujeito aprontar as malas, alegando que ele jamais escuta as suas reclamações, o que é uma verdade.
O marido concorda com a cabeça e se tranca na cozinha. Em vinte minutos, chama a mulher:
- O jantar está pronto, arruma a mesa?
- Mas eu lhe mandei embora!
- Vamos comer primeiro, depois pensamos nisso. Fiz a massa pesto que adora.
No dia seguinte, ainda estão juntos e ela se envergonha de insistir com o fim da relação, já que ele foi imensamente carinhoso e impregnado de gentilezas.
Transcorridos alguns meses, ela volta a explodir pela falta de empatia e cumplicidade, pois não aceita a mornidão e o tédio da rotina. Os ressentimentos retornam à superfície. Então, xinga e amaldiçoa a falta de iniciativa do seu par, assinala o término, esbraveja que não dá mais e ordena que arrume as suas coisas.
Alheio ao apocalipse, ele senta na frente da televisão com os pés estirados no sofá. Não parece preocupado. Não parece abalado.
- O que pensa que está fazendo? Acabou tudo! Não vai se mexer?
- A dor não tem pressa, amor. Estou assistindo o último capítulo da novela, deita aqui comigo, é imperdível - explica, doce, com voz mansa de quem saiu do banho.
Ela aceita a trégua, engole a insatisfação, deita um pouquinho em seu colo e cochila sem querer. Logo ao amanhecer, ele prepara o café, traz uma bandeja de suco e croissant na cama, e ela novamente não tem forças para insistir com a ruptura. Brigar é excessivamente cansativo, exige mais do que se manter casado.
Assim, com a surdez de um e a compaixão do outro, o casal completa bodas de prata neste domingo.
Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Donna p. 34
Porto Alegre, 12 e 13 de março de 2016
terça-feira, 8 de março de 2016
CAIXINHA DE MÚSICA
Nunca invejei as bonecas das meninas e o mundo em miniatura feito de casinha cor-de-rosa e armarinho com roupas esportivas, sociais e de gala.
Fui menino de futebol, de aventura, de molecagens, de fazer incursões no porão com lanterna, de desbravar terrenos baldios, de subir telhados e esfolar os joelhos, de chegar suado à sala de aula.
Mas morria de ciúme da caixinha da bailarina de minha irmã. Era um teatro de graça: levantava-se a tampa, girava a corda e a bailarina dançava Debussy em cima de um espelho. Não sei o que acontecia direito, eu me maravilhava, o cenário mudava a sequência das batidas do coração. O coração de pé no meu peito se ajoelhava de repente diante dos deslizamentos de cá para lá da coreografia.
Brinquedo lindo que repousava ao lado da cama e sempre me despertava uma vontade imensa de roubá-lo.
Eu queria para mim. Tentei as vias legais, pedir no aniversário e no Natal, trocar pela minha coleção de playmobil, só que o pai ria do pedido extravagante:
– Não é coisa de guri. É um porta-joias, Fabrício! Não tem sentido. Você não usa bijuteria.
O pai preocupava-se com uma possível afeminação de minha parte, não compreendia que foi o meu primeiro impulso claramente masculino e heterossexual: eu me apaixonei pela bailarina. Perdidamente. Lembro de seu pequeno rosto de avelã, o nariz arrebitado, os olhinhos brilhantes e o coque perfeito pronto para se desmanchar em nossa noite de núpcias. Eu desejava fugir de casa com a bailarina, casar e ter filhos. Estava imerso numa paixão pura, extrema, com a vontade de passar o resto da vida com alguém. Não importava que ela fosse pequena, do tamanho de minha mão, daria um jeito. A gente se apaixona primeiro, depois é que pensa se é possível ou não. O desejo cria realidades paralelas.
Sem a compreensão da família, eu precisava contar com a generosidade da irmã em me ceder apresentações. Antes de dormir, ia nas pontas dos pés ao seu quarto e implorava para que me mostrasse a música. Aquelas sessões de rodopios e voltas da bailarina provocavam suspiros. Não permitia acabar, como um livro que não se aceita o final.
– Mais uma vez, mais uma vez – gritava para a irmã, desesperado, após a décima repetição, procurando manter a chama rosa bailando o máximo possível na concha dos meus olhos.
Eu ainda hoje caminho pelas ruas de Porto Alegre com a esperança de ouvir Clair de Lune e ser reconhecido pela bailarina que tanto amei na infância. Juro que abandono tudo por ela.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 6
08/03/2016, Edição 18467
domingo, 6 de março de 2016
NÃO É SIMPLES SE APAIXONAR
Paixão não é banal. Paixão não acontece com frequência.
Tenho um amigo que se apaixona semanalmente. Ele está se enganando. Não é paixão, mas flerte, interesse, atração, carência, desespero para se casar.
Paixão acontece poucas vezes na vida. Devo ter me apaixonado somente seis vezes em quarenta anos.
A paixão é a nossa chance de chegar ao amor, jamais uma certeza. Pois a paixão é conquista, já o amor depende da convivência. A paixão é sempre à primeira vista, o amor vem em parcelas.
Se me apaixonei meia dúzia de vezes, amei apenas duas vezes ao longo de meus romances. De amar mesmo, a ponto de desistir de meus preconceitos e de minhas exigências e doar espaço para o tempo de alguém.
A paixão é rara. De sua raridade, surgirá o amor, mais único ainda.
O que posso garantir é que a paixão é uma devastação. Não tem como não notar. Você esquece quem você era e aonde ia. Você esquece o que fazia e o que queria.
Seus contatos do celular e das redes sociais desaparecem. Nada mais interessa. É um apagão, a sua memória morre - persistem a imaginação e a fantasia.
A paixão é um blecaute da personalidade.
Um redemoinho passa pela cidade de seus olhos, levando a civilização de pretendentes. Um furacão destrói a importância de seus pertences e a sua forma de se relacionar com o mundo.
Você que é cético passa a ter fé, confiar em magia, adotar hábitos de supersticioso.
Você que é avarento estará disposto a filantropias improváveis.
Você que é tímido é capaz de cantar num microfone em praça pública.
Você que é cafajeste torna-se fiel como uma rolha de vinho.
As defesas e restrições estão postas abaixo.
É um dia perfeito que interrompe o calendário, o envelhecimento, as mágoas, as cismas.
É um beijo melhor que todas as palavras que procurava antes.
Não há como confundir o diagnóstico. Não existem dúvidas do encanto que se abateu.
A paixão traz uma força inacreditável. O sangue bebe energético do ar. As pernas levitam.
Experimenta um superpoder: enxerga as auras além dos rostos, adivinha os pensamentos além do som, entende as piadas além do gesto.
Não precisa comer, não precisa dormir, não precisa trabalhar, não precisa arrumar a casa, não precisa atender telefone, não precisa responder mensagens.
Desfruta da imunidade do otimismo. Aguenta emendar noites e permanece disposto. Não consegue parar de transar e não reclama do cansaço. Vira um bicho do instinto. O olfato é a sua realeza.
Emagrece, mas não perde o brilho.
Adoece, mas não perde a saúde.
Com a falta de alimentação e de cuidados, qualquer pessoa ficaria desidratada e baixaria o hospital, menos o apaixonado.
O apaixonado encontra a inexistência perfeita, ser cada vez menos para ser o outro.
Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Donna p. 46
Porto Alegre, 5 e 6 de março de 2016.
terça-feira, 1 de março de 2016
CIUMINHO
Falar tudo o que acontece não é lealdade, mas tortura.
Amor é feito também da discrição, não chamar atenção do que não é importante, não criar ciúmes desnecessários.
Seu namorado ou sua namorada não tem que saber se recebeu cantada na rua, ou se um ex ressurgiu com lembranças no Facebook, ou se o colega do trabalho lançou uma indireta. Não tem que saber se foi cortejada no WhatsApp ou do professor gostoso da academia. Poupe detalhes que não são recíprocos, que claramente não despertaram o desejo e não afetam o controle dos fatos. É um alarme falso que consome muita energia. Natural a companhia se desesperar com a ameaça de roubo e furto da intimidade a toda hora, não entenderá como brincadeira e charme.
Cortar a conversa com pretendentes é o seu único papel, jamais o de relatar e enumerar as investidas. Não cheira bem o autoelogio, é um fede-fede na lapela das palavras.
Amar pressupõe seriedade. Ser o mesmo dentro e fora de casa. Seguir a receita do futebol, onde não basta jogar com a bola, é fundamental jogar sem a bola, respeitando o posicionamento em campo.
É constrangedor e infantil se vangloriar de flertes para obter atenção. Indica carência e falta de segurança.
A informação de que se sujeita a ficar de papinho somente vai gerar discussões dispensáveis. Quando descreve uma tentativa de aproximação, ainda que frustrada, está sinalizando que a disponibilidade lhe agrada. E também que um mero contato casual é uma ameaça: se não atender ao que peço, tem gente interessada.
A reação de quem ama é se afastar. A confiança representa a base da lealdade, e a exposição de concorrência cria o medo de se comprometer. Afinal, a mensagem que passa é a da licitação do seu coração – só falta abrir edital. Sem perceber, valoriza o passe e desvaloriza a relação.
Generaliza o amor e apaga a particularidade da conquista, fazendo crer que pode ser qualquer um. Parece que não tem exigências e que é uma presa fácil da bajulação.
Deixe para brigar por questões fundamentais. Não exercite a desconfiança, que ela pode não parar mais. Não troque o amor pela neurose. Neurose é banalizar a implicância.
Publicado no jornal Zero Hora
Página 4 - edição 18461
Porto Alegre, 01/3/2016
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