Eu venho organizando o meu casamento no religioso com Beatriz, e já dá para compreender o nível de loucura que envolve a cerimônia.
A paciência é a primeira a desaparecer com o excesso de detalhes e miudezas de orçamento. Casar é como reformar a residência, você estabelece um preço na teoria e termina sendo o triplo na prática - os pedreiros faltam nos dias de chuva, os materiais mudam conforme a demanda, o acabamento jamais é como imaginou. No matrimônio, a exemplo das construções, paga-se caro por não ser profeta e não se programar para os imprevistos.
Mas o ponto que gostaria de chamar atenção é que aquele que casa precisa manter o equilíbrio entre vida pessoal e comemoração. Não deve permitir que a festa se torne maior do que o amor. Pois a festa pode vir a ser a fachada de um amor moribundo.
Os noivos se esmeram na empreitada da recepção de seus convidados e muitas vezes esquecem do básico: de cultivar um ao outro, de realizar mimos e surpresas um para o outro. O que originou o evento - o contentamento do par - perde-se nos resultados.
É a explicação para tantas desistências cinematográficas e inexplicáveis de casais na véspera do altar. Realizam o improvável, jogam tudo para cima, sem receio do desperdício. Renunciam presentes, fábulas investidas, lua de mel agendada. Põem fora anos de idealização de evento. Outrora pombos que se beijavam em pleno voo de repente passam a se bicar e grasnar como corvos.
Eles se abandonaram ao longo dos preparativos - tornaram-se estranhos e formais. Brigaram excessivamente desde a escolha dos convidados até a cor da toalha de mesa e das flores no salão e não encontraram, em nenhum dos casos, a humildade do humor (único antídoto às discussões que conheço).
Não é que não se amavam, deixaram de amar. Amar é esforço, dedicação, disciplina. Não dá para ficar meses sem alpistar o coração de seu par. Diante do descaso, qualquer um morre sentimentalmente de inanição. O que adianta realizar um sonho e, ao mesmo tempo, descuidar da realidade? O que adianta preparar uma apoteose para os amigos e familiares às custas de um período de indiferença a quem se ama?
Com o casamento, casais apenas se preocupam em quitar as contas, resolver as tarefas e abdicam de namorar e transar. Transformam-se em empresários assexuados, negociando descontos e formalizando contratos. Óbvio que o corpo vai se rebelar, óbvio que o estresse desencadeará na derrubada das certezas.
Preocupados com a aparência, desprezaram a motivação de acordar lado a lado. Não cantam, não dançam e não se divertem mais juntos.
Publicado no blog do Jornal o Globo
Coluna Semanal
29.09.2016
quinta-feira, 29 de setembro de 2016
quarta-feira, 28 de setembro de 2016
IDADE DE MEU PAI
Vejo fotos de meu pai com quarenta e três anos e me incomodo. Naquela época eu tinha dez anos e achava o meu pai velho de verdade. Na mentalidade de criança, ele já estava prestes a morrer, entrava naquele terreno licencioso das mágoas físicas (barriga e queda dos cabelos).
Raciocinava que demoraria muito para chegar onde ele estava. Suas palavras cheiravam a dicionário. Eu queria que ele parasse de envelhecer.
Lembro que o observava com medo mais do que orgulho: medo de perdê-lo. Eu subia centímetros dia por dia com a minha cabeça de papel e ele diminuiria como fogo – todo idoso se encurva.
Hoje com a idade de meu pai no momento fotográfico de outrora, não sei se me engano. Eu não me sinto passado, compreendo que estou na metade jovem de minha vida. Mas quem diz que ele não se via assim? Custamos a reparar nas próprias rugas e doenças. Consideramos os lapsos de memória naturais pelo excesso de trabalho – quando já são avisos.
A imponência do pensamento vem traindo o corpo a cada noite. Eu não sou o mesmo, nem parte do mesmo que fui, apenas não desacelerei a minha imaginação invencível de menino, que me confunde a jurar que não envelheci.
Ainda não aprendi a morrer. Ainda não aprendi a me despedir. Ainda não aprendi a me desapegar do que acho que sou. Não consigo me perceber chegando ao fim.
Há o desconto do aumento da longevidade nestas três décadas. Vivemos mais do que os oitenta enquanto antes os adultos de minha meninice fechavam reza e davam o amém com sessenta anos.
Não apago o mal-estar da caneta preta, do corvo furando as linhas da caligrafia. Eu me tornei aquela imagem para os meus filhos e não há como alterar a mentalidade complacente e assustada deles comigo. Por mais que não reclame, por mais que acumule gírias, por mais que pareça moderno, por mais que ande de skate e dance a madrugada inteira.
Sou agora a parede das fotos.
Publicado no portal Vida Breve
Coluna Semanal
28.09.2016
Raciocinava que demoraria muito para chegar onde ele estava. Suas palavras cheiravam a dicionário. Eu queria que ele parasse de envelhecer.
Lembro que o observava com medo mais do que orgulho: medo de perdê-lo. Eu subia centímetros dia por dia com a minha cabeça de papel e ele diminuiria como fogo – todo idoso se encurva.
Hoje com a idade de meu pai no momento fotográfico de outrora, não sei se me engano. Eu não me sinto passado, compreendo que estou na metade jovem de minha vida. Mas quem diz que ele não se via assim? Custamos a reparar nas próprias rugas e doenças. Consideramos os lapsos de memória naturais pelo excesso de trabalho – quando já são avisos.
A imponência do pensamento vem traindo o corpo a cada noite. Eu não sou o mesmo, nem parte do mesmo que fui, apenas não desacelerei a minha imaginação invencível de menino, que me confunde a jurar que não envelheci.
Ainda não aprendi a morrer. Ainda não aprendi a me despedir. Ainda não aprendi a me desapegar do que acho que sou. Não consigo me perceber chegando ao fim.
Há o desconto do aumento da longevidade nestas três décadas. Vivemos mais do que os oitenta enquanto antes os adultos de minha meninice fechavam reza e davam o amém com sessenta anos.
Não apago o mal-estar da caneta preta, do corvo furando as linhas da caligrafia. Eu me tornei aquela imagem para os meus filhos e não há como alterar a mentalidade complacente e assustada deles comigo. Por mais que não reclame, por mais que acumule gírias, por mais que pareça moderno, por mais que ande de skate e dance a madrugada inteira.
Sou agora a parede das fotos.
Publicado no portal Vida Breve
Coluna Semanal
28.09.2016
terça-feira, 27 de setembro de 2016
TRISTE MORTE
Você só vê as vítimas da morte. Até acha que ela é infalível. Só visualiza o trabalho feito, os obituários implacáveis, os caixões descendo no chão ou subindo nas paredes, a sua inclemência com todas as faixas etárias.
Mas não enxerga as suas falhas. Não percebe o quanto ela deixa a desejar em termos de aproveitamento.
A morte também é humana e incompetente. Às vezes, se engana de horário. Às vezes, erra a pontaria. Já dormiu em pleno expediente comercial, já fez greve por aumento de salário, já cometeu o vacilo mais bobo e se apaixonou pelas suas presas.
A morte nem sempre acerta. Amarga dúvidas vocacionais e crise de consciência. Fraqueja diante de velho casal que dorme de conchinha e mente para o destino que não encontrou ninguém lá.
A morte não é imbatível como julgamos. Permite aviões com equipamento vencido pousarem, autoriza ônibus com motorista cochilando não cair em curva, salva pedestres desatentos.
Ela sopra vento frio no rosto de suas próximas encomendas para dar chance de se protegerem e mudarem de percurso. Educada, alerta a intuição de cada um antes do fim.
Há mais quase acidentes do que acidentes em seu currículo. Quantas tragédias foram evitadas pelos seus assobios?
A morte é a mais triste das criaturas, nunca é comemorada. Não se dignifica com o trabalho. Não se converte ao bem poupando ninguém. É gerada em nosso nascimento, porém permanece a vida inteira intratável como vilã.
Seus fracassos generosos não são noticiados pelos jornais e terminam desconhecidos. Quem ganha com a omissão é o anjo da guarda, que recebe créditos quando alguém escapa por um fio de uma situação de perigo.
A morte tem seus segredos de amor, sua coragem parece ser a de negar a si mesma. Cansa dos choros, gritos e três batidinhas na madeira, não suporta os arranjos acobreados dos velórios, a comidinha fria e a decoração fúnebre de suas festas.
Certo que também experimenta os seus momentos inspirados e cruéis de guerras, terremotos e chacinas, porém odeia sangue, prefere levar as pessoas dentro do sono, onde pode se misturar à paz das lembranças e conhecer melhor os desejos do falecido. E abomina igualmente o amadorismo de balas perdidas e a crueldade desnecessária do narcotráfico.
A morte nem sempre mata — é a gente que não tem capacidade de provar as suas distrações invisíveis.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna Semanal
27.09.2016
segunda-feira, 26 de setembro de 2016
CHORAR SOBRE O XAMPU DERRAMADO
A grande prova do amor feminino é dividir o xampu.
É um dos produtos que ela mais briga para conservar e menos se dispõe a partilhar. A cada banho, verifica o decréscimo dos mililitros. Aliás, xampu merecia vir com régua de mamadeira do lado de fora, tamanho o controle do néctar.
A guerra das mulheres contra bárbaros e invasores advém de longa data. Na infância, eram obrigadas a se precaverem da curiosidade dos irmãos e do pai e fiscalizarem o desperdício com rigor e olhar clínico.
Para não correrem riscos desnecessários, algumas meninas não deixavam o pote à mostra na bandejinha aérea.
Vale a pena experimentar os limites da paixão da sua namorada por você. Não se furte do embate.
Escolha o menor frasco ( sempre o mais caro), encha a mão e espalhe com vontade pelo seu couro cabeludo. Gaste generosas quantidades durante uma semana sem parar, para consolidar a baixa no volume. Se ela não vier perguntar se anda usando o xampu dela e fingir que nada aconteceu, você conquistou definitivamente o coração de sua musa. Está acima do bem e do mal, dos cuidados com as mechas e madeixas, da neurose consumista.
Já aconteceu de namorada parar de falar comigo dois dias inteiros porque notou, quando foi me beijar, que colocava o seu xampu mais caro na barba: – Não duvido que não tenha usado no sovaco e nos pentelhos.
Eu tinha, mas não confessei.
Passei por outra que terminou o relacionamento pois derrubei um pote de seu xampu Joico de R$ 200.
Considerou o gesto da envergadura de uma infidelidade. E não qualquer infidelidade. Parecia que eu havia comido a sua melhor amiga. Gritava diante da cornitude da espuma.
Lembro o epitáfio verbal de nosso amor:
– Eu economizando e você joga tudo no chão. Não cuida de minhas coisas, nem vai cuidar de mim.
Liberdade mesmo encontrei com a minha esposa, Beatriz. Inventei de pôr uma máscara de caviar da Kérastase que achei em seu banheiro. Deve ser um salário mínimo em forma de condicionador. Faz um tempão que venho aproveitando o seu poder restaurador, com o claro objetivo de lustrar e perfumar a minha careca. Ela não reclamou até agora. Se bem que o grande teste virá quando ler o meu texto.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
25.09.2016
Coluna Semanal
É um dos produtos que ela mais briga para conservar e menos se dispõe a partilhar. A cada banho, verifica o decréscimo dos mililitros. Aliás, xampu merecia vir com régua de mamadeira do lado de fora, tamanho o controle do néctar.
A guerra das mulheres contra bárbaros e invasores advém de longa data. Na infância, eram obrigadas a se precaverem da curiosidade dos irmãos e do pai e fiscalizarem o desperdício com rigor e olhar clínico.
Para não correrem riscos desnecessários, algumas meninas não deixavam o pote à mostra na bandejinha aérea.
Vale a pena experimentar os limites da paixão da sua namorada por você. Não se furte do embate.
Escolha o menor frasco ( sempre o mais caro), encha a mão e espalhe com vontade pelo seu couro cabeludo. Gaste generosas quantidades durante uma semana sem parar, para consolidar a baixa no volume. Se ela não vier perguntar se anda usando o xampu dela e fingir que nada aconteceu, você conquistou definitivamente o coração de sua musa. Está acima do bem e do mal, dos cuidados com as mechas e madeixas, da neurose consumista.
Já aconteceu de namorada parar de falar comigo dois dias inteiros porque notou, quando foi me beijar, que colocava o seu xampu mais caro na barba: – Não duvido que não tenha usado no sovaco e nos pentelhos.
Eu tinha, mas não confessei.
Passei por outra que terminou o relacionamento pois derrubei um pote de seu xampu Joico de R$ 200.
Considerou o gesto da envergadura de uma infidelidade. E não qualquer infidelidade. Parecia que eu havia comido a sua melhor amiga. Gritava diante da cornitude da espuma.
Lembro o epitáfio verbal de nosso amor:
– Eu economizando e você joga tudo no chão. Não cuida de minhas coisas, nem vai cuidar de mim.
Liberdade mesmo encontrei com a minha esposa, Beatriz. Inventei de pôr uma máscara de caviar da Kérastase que achei em seu banheiro. Deve ser um salário mínimo em forma de condicionador. Faz um tempão que venho aproveitando o seu poder restaurador, com o claro objetivo de lustrar e perfumar a minha careca. Ela não reclamou até agora. Se bem que o grande teste virá quando ler o meu texto.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
25.09.2016
Coluna Semanal
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
A SAUDADE PERDOA
Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perin
A saudade já é perdão. Sentir saudade é desculpar.
Se você vem sentindo saudade é que esqueceu, é que não guardou mágoa, é que superou o ressentimento, é que dispensou a vingança, é que resolveu por dentro, com a quietude da esperança.
Quando a saudade chega não adianta mais impor regras e mandar embora. Acabaram o jogo, o blefe e as cláusulas minúsculas.
A saudade é um convite irrecusável. É um apelo. É uma passeata de pássaros.
Com a saudade, você aceitou a retratação - dita ou o implícita.
Saudade revoga prazos, ordens, ditames, censuras.
Não tem como exigir mais nada, não tem como reivindicar mudanças.
É admitir a volta sem explicação. É admitir o retorno sem contrapartida.
Saudade é um golpe de estado. Abole o que foi estabelecido antes.
Saudade é o domínio da pele, é a preponderância do cheiro, é a emoção desmontando a hierarquia das palavras.
A saudade é recompensa por seguir amando diante das inconstâncias, é a vitória do acertos sobre os defeitos.
Saudade é o fim da culpa, é o desejo livre.
Saudade é um vontade com juros: abraçar com as pernas, machucar com o beijo.
Saudade é serenar o travo, beber o seco.
Saudade é se despedir do sofrimento e ficar com a lição da cicatriz.
É respeitar a imperfeição, não precisar consertá-la para seguir inteiro. É respeitar a falha, não recorrer às mentiras para corrigi-la. É respeitar a ausência, jamais ocupar a cadeira porque está vazia.
Saudade é quando morre a idealização para não morrer o amor.
Somente o orgulhoso não é capaz de sentir saudade. O orgulhoso não avança nem anda para trás. O orgulhoso senta em cima do coração.
Publicado no Blog do Jornal O Globo
Coluna Semanal
22.09.2016
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
DIGA O SEU NOME E A CIDADE DE ONDE ESTÁ FALANDO
Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi
Só algo desesperava a família: receber um telefonema a cobrar durante a madrugada.
Já pensávamos no pior, que um parente tinha sido assaltado ou sequestrado.
Eu começo a suar frio se alguém me liga a cobrar até hoje: quem será? O que aconteceu?
Rezo antes de falar, apresso a ave-maria da infância. É véspera de tragédia em meu sangue, dá uma aflição ouvir aquela voz feminina estabelecendo as instruções: “chamada a cobrar, para aceitá-la continue na linha após a identificação”.
Meus familiares e amigos têm crédito. Uma ligação a cobrar, então, é o inesperado triste do meu cotidiano, um imprevisto fúnebre, uma mudança de rumo, um corte do destino.
Eu conto com seis segundos para decidir se aceito ou recuso. Quando não reconheço o timbre, bato o telefone na cara. Não há misericórdia com trotes. Não ofereço chance de retratação.
Ligação a cobrar é coisa séria, não permite ambiguidades. O coração fica engasgado na garganta: engolir a voz ou cuspi-la.
Sempre que recebi ligação a cobrar foi aviso de morte, de acidente, de falta de dinheiro.
Com uma única exceção. Na minha adolescência, nos anos 80, quando o serviço automático foi implantado (antes telefonista mediava ligações), lembro que a minha primeira namorada, assim que nos separamos, telefonou durante vários dias consecutivos a cobrar para o fixo de casa. Ela não encontrava coragem para responder do outro lado, escutava somente a sua respiração sôfrega, ansiosa, reticente, desiludida com o nosso fim. Mas não mantenho certeza absoluta de sua identidade. Será que desejava a reconciliação? Por que não falava?
Se me enganei ao longo de quatro décadas, isso apenas aumenta o meu medo do desconhecido. Se não era ela, quem poderia ser?
Este telefonema incompreendido, misterioso, enigmático, povoado de sussurros, custou caro para a minha sanidade amorosa. Jamais defini o quebra-cabeça.
Pena que nunca tive uma ligação a cobrar feliz para matar os fantasmas.
Publicado no site Vida Breve
Coluna Semanal
21.09.2016
terça-feira, 20 de setembro de 2016
TERRÍVEIS BONECOS DE ESPUMA
Não compreendo a lógica dos mascotes, as fantasias dos mascotes. Não é um modelo para agradar às crianças. Pelo contrário, apenas assusta, apenas traz medo daquele cabeção pendendo de um corpo minúsculo.
Campanhas infantis, Disney, personagens de quadrinhos usam esse recurso, porém vejo unicamente crianças berrando quando o mascote se aproxima. Os pequenos correm para longe, entram em pânico. É uma choradeira súbita, infinita. Não importa se é o inofensivo Pateta ou o doce Cebolinha ou a bela recatada do lar Minnie. Tem algo de monstrengo, de invasão de alienígenas, de inseto multiplicado de tamanho.
Como podemos considerar natural, por exemplo, a Patrulha Canina andando em duas pernas e com as cabeças enormes e decepadas de fantoches? São piores do que palhaços com maquiagem borrada.
Não provocam leveza e contentamento, simpatia e atração. A voz abafada também não inspira confiança, é trabalho escravo, um animador está preso lá dentro sofrendo desidratação. Como rir de quem fala gemendo, como acreditar num timbre sufocado de sequestrador?
Por que você acha que o boneco sempre tem um acompanhante? Por que ele sempre vem de mãos dadas com alguém? Para não cair e para enxergar aonde está indo. Coitado, ele trabalha vendado, mergulhado na treva, levantando halteres com a força do pescoço.
A criança entende que é uma farsa, que estão comprando a sua ternura. Que não é o Pateta ou o Cebolinha, afinal ambos são desenhos e não sairiam da agitação de suas histórias para tirar selfie e ficar acenando, coisas de adulto. Diante dessa situação, qualquer balão infantil no pensamento estoura.
Só vejo pais desesperados com a desagradável surpresa, confortando seus pequenos e oferecendo colo: "Não é para ter medo", "Ele não faz mal", "Ele é amiguinho".
Eu detestava os mascotes em minha infância, os meus filhos detestavam, os meus netos vão detestar. Não é um mal hereditário, e sim cultural mesmo.
Eles foram feitos para ser vistos de longe, das arquibancadas do estádio. Já perto, são aberrações desajeitadas e imprevisíveis.
Será que ninguém nunca disse a verdade? Criança não gosta de boneco de espuma. É absolutamente aterrorizante.
Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
20.09.2016
Campanhas infantis, Disney, personagens de quadrinhos usam esse recurso, porém vejo unicamente crianças berrando quando o mascote se aproxima. Os pequenos correm para longe, entram em pânico. É uma choradeira súbita, infinita. Não importa se é o inofensivo Pateta ou o doce Cebolinha ou a bela recatada do lar Minnie. Tem algo de monstrengo, de invasão de alienígenas, de inseto multiplicado de tamanho.
Como podemos considerar natural, por exemplo, a Patrulha Canina andando em duas pernas e com as cabeças enormes e decepadas de fantoches? São piores do que palhaços com maquiagem borrada.
Não provocam leveza e contentamento, simpatia e atração. A voz abafada também não inspira confiança, é trabalho escravo, um animador está preso lá dentro sofrendo desidratação. Como rir de quem fala gemendo, como acreditar num timbre sufocado de sequestrador?
Por que você acha que o boneco sempre tem um acompanhante? Por que ele sempre vem de mãos dadas com alguém? Para não cair e para enxergar aonde está indo. Coitado, ele trabalha vendado, mergulhado na treva, levantando halteres com a força do pescoço.
A criança entende que é uma farsa, que estão comprando a sua ternura. Que não é o Pateta ou o Cebolinha, afinal ambos são desenhos e não sairiam da agitação de suas histórias para tirar selfie e ficar acenando, coisas de adulto. Diante dessa situação, qualquer balão infantil no pensamento estoura.
Só vejo pais desesperados com a desagradável surpresa, confortando seus pequenos e oferecendo colo: "Não é para ter medo", "Ele não faz mal", "Ele é amiguinho".
Eu detestava os mascotes em minha infância, os meus filhos detestavam, os meus netos vão detestar. Não é um mal hereditário, e sim cultural mesmo.
Eles foram feitos para ser vistos de longe, das arquibancadas do estádio. Já perto, são aberrações desajeitadas e imprevisíveis.
Será que ninguém nunca disse a verdade? Criança não gosta de boneco de espuma. É absolutamente aterrorizante.
Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
20.09.2016
segunda-feira, 19 de setembro de 2016
TERRORISMO AMOROSO
Todo casado que trai e esconde esta informação merece ser torturado. Todo casado que põe a aliança no bolso para fazer maldades merece um castigo. Nem é para aprender a não trair, mas para aprender a não mentir.
Não custa nada dizer a verdade e admitir que está comprometido desde o primeiro encontro. Para os amantes que experimentam a desconfortável omissão, proponho que se divirtam criando o medo, já que dificilmente o outro lado desistirá do casamento. O medo é uma espécie estranha de respeito.
Veja como desmascarar a silenciosa pilantragem amorosa:
• Mande mensagem às 20h de sábado. Se ele somente responder no dia seguinte é casado.
• Mande mensagem às 20h de sábado. Se ele somente responder no dia seguinte é casado.
• A pessoa não entra no seu mundo (porque é casada) nem lhe convida para o dela (porque é casada). Encontros sempre são genéricos em lugares neutros. Peça o seu endereço para enviar surpresas.
• Deixe chupão no pescoço ou marca nos braços. Só o casado terá vergonha.
• Telefone na frente dele para ver como ele lhe nomeou no celular, de repente você descobre que é uma pizzaria.
• Telefone na frente dele para ver como ele lhe nomeou no celular, de repente você descobre que é uma pizzaria.
• O casado é preciso como um relógio suíço. Agenda hora para telefonar de volta: “Te ligo daqui a 20 minutos”. Não atenda e retorne em seguida. Certamente o cara estará ocupado com a sua esposa.
• Enfie, sorrateiramente, uma calcinha no bolso do casaco e avise que ele tem um presentinho pela noite passada. Se ele não devolver a calcinha, é porque jogou no lixo para eliminar provas.
• Se ele consulta o celular logo depois de transar, é casado. Se ele toma banho logo depois de transar, é casado.
• Todo telefonema do casado tem eco. Ele liga do carro ou do banheiro.
• O casado infiel não especifica relacionamento no Facebook. Poste uma mensagem marcando o sujeito. Caso não aceite, é casado.
• Convide para passear no shopping e tente abraçá-lo ou segurar a sua mão. Demonstrando pânico e suando frio, ele é casado.
• Pergunte onde ele trabalha e prometa aparecer uma hora dessas para um café. Na hipótese de ele desaparecer, é casado.
• Conte que você descobriu que tem vários amigos em comum, mas não revele nomes. Se ele não parar de questionar a identidade dos conhecidos, é casado.
• Mencione que vem saindo com outros homens. Na hipótese de ele não se opor ao flerte, é casado.
Esta é a grande diferença entre
o homem e a mulher quando traem. A mulher não mente, jamais diz que não tem um relacionamento. Enfrenta a infidelidade com toda a honestidade.
Coluna Semanal
Publicado no Caderno Donna de Zero Hora
18.09.2016
terça-feira, 13 de setembro de 2016
SELFIE DA VOZ
Bem sabemos que a mulher é vaidosa da imagem. Não aceita postar uma fotografia sem ampliar o rosto e verificar minuciosamente os detalhes da pele. Não se reduz à epiderme, ultrapassa a derme e avalia o estado de sua hipoderme na foto. Mulher transforma o celular em microscópio.
Sempre tem um lado mais fotogênico, sempre reclama do cabelo, sempre protesta por um problema imaginário. Ou está cansada ou não conseguiu se maquiar ou a luz não favoreceu ou o vento atrapalhou.
Uma foto não autorizada é motivo de longas discussões de relacionamento. Não tente surpreender o seu amor com um ângulo inesperado. Não busque publicar algo que não recebeu o ok. Foto para o público feminino não é amigo secreto, mas inimigo secreto.
Mesmo depois de aprovadas, as postagens experimentam uma quarentena, podendo ser deletadas a qualquer momento. Não tenho certeza se as fotos excluídas das redes na separação são fruto de um ódio do ex ou de um perfeccionismo permanente.
Publicidade
Nenhuma amiga em sã consciência realizará pose acordando, ainda na cama, com a cara amassada do travesseiro. O habitual é começar as selfies depois de escovar os dentes. Depois do banho. Depois de almoçar.
O que eu não tinha reparado antes é que a mulher é absolutamente vaidosa da voz. Estranhei quando a minha esposa despachou um áudio no WhatsApp e reprisou em seguida. Ela escutava a sua própria voz. Como se o recado que enviou para outra pessoa fosse para ela mesma. Ela conversava com as suas amigas e também exercia um monólogo.
Sempre tem um lado mais fotogênico, sempre reclama do cabelo, sempre protesta por um problema imaginário. Ou está cansada ou não conseguiu se maquiar ou a luz não favoreceu ou o vento atrapalhou.
Uma foto não autorizada é motivo de longas discussões de relacionamento. Não tente surpreender o seu amor com um ângulo inesperado. Não busque publicar algo que não recebeu o ok. Foto para o público feminino não é amigo secreto, mas inimigo secreto.
Mesmo depois de aprovadas, as postagens experimentam uma quarentena, podendo ser deletadas a qualquer momento. Não tenho certeza se as fotos excluídas das redes na separação são fruto de um ódio do ex ou de um perfeccionismo permanente.
Publicidade
Nenhuma amiga em sã consciência realizará pose acordando, ainda na cama, com a cara amassada do travesseiro. O habitual é começar as selfies depois de escovar os dentes. Depois do banho. Depois de almoçar.
O que eu não tinha reparado antes é que a mulher é absolutamente vaidosa da voz. Estranhei quando a minha esposa despachou um áudio no WhatsApp e reprisou em seguida. Ela escutava a sua própria voz. Como se o recado que enviou para outra pessoa fosse para ela mesma. Ela conversava com as suas amigas e também exercia um monólogo.
Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
13.09.2016
GAFES FAMILIARES
Amizade é selada na gafe. Amor cresce no constrangimento. É quando a vida dá errado e descobrimos que não somos sozinhos.
Eu e a minha mãe temos rounds de comédia ao longo da relação. Episódios engraçados de desentendimentos. E só são memoráveis porque nos perdoamos com o riso depois.
Ela sofreu muito quando eu era pequeno. Eu vivia caindo, costurando a cabeça no pronto-socorro, quebrando vidraças dos vizinhos, roubando frutas, recebendo notificações da direção da escola.
Não foi um tempo de calmaria, realmente abusei. E ela esquecia das minhas travessuras com a mesma rapidez que criava outras.
Lembro quando insisti para participar do coral da igreja. Tinha nove anos e voz de taquara rachada. Ela não quis me ofender e me levou a uma audição. Cada um dos candidatos mostrava a potência da voz individualmente. Um passo à frente no altar e os meninos reproduziam um trecho da Aquarela do Brasil. Quando chegou a minha vez, eu perguntei ao regente se a mãe não podia cantar em meu lugar.
Agora a minha mãe devolve na terceira idade tudo o que aprontei na infância. Decidiu ser engraçadinha. Não recebe crítica de ninguém porque é engraçadinha. Ganhou a onipotência de criança, não é responsabilizada por nada já que é fofinha e não fez por mal.
Nestes dias, estávamos em restaurante chique, aquele em que os talheres brilham tanto quanto o espelho e o guardanapo é longo e branco como uma toalha de Ano-Novo. A mãe ficou indecisa com o cardápio e assumiu atitude de aeroporto. Ou seja, reparar o que os garçons carregavam nas bandejas para qualificar o seu poder de decisão. Respirei fundo e prometi não brigar. Precisava melhorar a minha paciência e não censurá-la como sempre faço. Até que ela se levantou, dirigiu-se à mesa ao lado e indagou a um homem almoçando se poderia provar a sua comida. Foi tão rápido que não consegui me esconder debaixo da mesa.
Sair com a minha mãe hoje é aguentar não ser mais o personagem principal. Restrinjo-me a um eterno e útil coadjuvante. Nunca terei razão, mesmo quando demonstro equilíbrio e sensatez. Ela é que chama atenção, arranca gargalhadas e rouba a cena.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna Semanal
11.09.2016
Eu e a minha mãe temos rounds de comédia ao longo da relação. Episódios engraçados de desentendimentos. E só são memoráveis porque nos perdoamos com o riso depois.
Ela sofreu muito quando eu era pequeno. Eu vivia caindo, costurando a cabeça no pronto-socorro, quebrando vidraças dos vizinhos, roubando frutas, recebendo notificações da direção da escola.
Não foi um tempo de calmaria, realmente abusei. E ela esquecia das minhas travessuras com a mesma rapidez que criava outras.
Lembro quando insisti para participar do coral da igreja. Tinha nove anos e voz de taquara rachada. Ela não quis me ofender e me levou a uma audição. Cada um dos candidatos mostrava a potência da voz individualmente. Um passo à frente no altar e os meninos reproduziam um trecho da Aquarela do Brasil. Quando chegou a minha vez, eu perguntei ao regente se a mãe não podia cantar em meu lugar.
Agora a minha mãe devolve na terceira idade tudo o que aprontei na infância. Decidiu ser engraçadinha. Não recebe crítica de ninguém porque é engraçadinha. Ganhou a onipotência de criança, não é responsabilizada por nada já que é fofinha e não fez por mal.
Nestes dias, estávamos em restaurante chique, aquele em que os talheres brilham tanto quanto o espelho e o guardanapo é longo e branco como uma toalha de Ano-Novo. A mãe ficou indecisa com o cardápio e assumiu atitude de aeroporto. Ou seja, reparar o que os garçons carregavam nas bandejas para qualificar o seu poder de decisão. Respirei fundo e prometi não brigar. Precisava melhorar a minha paciência e não censurá-la como sempre faço. Até que ela se levantou, dirigiu-se à mesa ao lado e indagou a um homem almoçando se poderia provar a sua comida. Foi tão rápido que não consegui me esconder debaixo da mesa.
Sair com a minha mãe hoje é aguentar não ser mais o personagem principal. Restrinjo-me a um eterno e útil coadjuvante. Nunca terei razão, mesmo quando demonstro equilíbrio e sensatez. Ela é que chama atenção, arranca gargalhadas e rouba a cena.
Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna Semanal
11.09.2016
quarta-feira, 7 de setembro de 2016
MEUS PÉS NÃO SÃO ESCRAVOS
Fabrício Carpinejar
Arte de Eduardo Nasi
Pode me prender os braços, algemar as mãos, que não me incomodo, inclusive participo da fantasia. Mas não prenda as minhas pernas que viro bicho em jaula, louco em hospício.
Alguns dirão que são traumas de vidas passadas. Acho que é problema adquirido nesta encarnação mesmo. Talvez seja uma vingança ao grilhão das botas ortopédicas da infância. Fui um pássaro preso pela coleira dos pés logo quando aprendia a voar na escola.
Tenho uma hipersensibilidade nos dedos. Meias apertadas são camisas de força, tampouco cultivo paciência para amaciar sapatos duros.
Eu me angustio quando não existe folga para movimentar os pés. O peso de uma coberta no inverno já me perturba. Vejo-me enterrado vivo, ajustado no caixão. Dou pontapé, esperneio, grito, quebro a forma imaginária, o quadrado invisível do pesadelo.
A cadeira do carro e a poltrona do avião com pouquíssimo espaço me põem nervoso. Começo a ofender mentalmente quem está à frente.
Reagi muito mal a uma brincadeira dos filhos na praia. Quando eles cobriram todo o meu corpo de areia enquanto cochilava debaixo do guarda-sol. Eu gritei tanto com as minhas crianças que o mar se envergonhou de fazer barulho com as ondas.
Gostaria de ser menos tenso com os pés. Mas eles são livres e selvagens, pensam absolutamente sozinhos e seguem os caminhos sem me perguntar aonde desejo ir.
Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
07.09.2016
MEU NOME É LEGIÃO
Quando a comida apresenta muitos nomes, coisa boa não é. Certamente a refeição enfrenta uma grande oposição.
Mocotó, por exemplo, é dobradinha, é bucho, é cassoulet, é mondongo.
Ele tem vários nomes somente para a mãe enganar o seu filho.
— O que tem hoje para comer? Mocotó de novo?
— Não, hoje é mondongo.
— O que tem hoje para comer? Mondongo de novo?
— Não, hoje é cassoulet.
— O que tem hoje para comer? Cassoulet de novo?
— Não, hoje é dobradinha.
— O que tem hoje para comer? Dobradinha de novo?
— Não, hoje é bucho.
Não é fácil a tarefa de tornar agradável uma combinação feita do estômago, tripas e patas do boi. É necessário abafar a verdade com muito ovo picado, toucinho, linguiça, azeitonas, feijão branco e especiarias.
Repare que os pratos unânimes só têm um batismo, uma única graça: churrasco, feijoada, macarronada. Nenhum subterfúgio. Nenhuma frescura. Prato tradicional consagra a simplicidade, não enrola e não depende de sinônimos.
Já o mocotó é polêmico, devoto de uma legião equivalente de inimigos e adoradores. Ou é amado ou é odiado.
A questão é que se não fosse barato nem existiria. Mocotó é justificado pelo custo-benefício. Não exibe glamour. Nunca será servido em casamento e formatura. Nunca será o almoço para rifa de uma igreja. Nunca será o cardápio para o Dia dos Namorados.
Afora a sujeira e o cheiro que produz. A vontade de quem faz é pedir emprestada a cozinha do vizinho. A casa ficará empestada por uma semana.
Sem contar tudo o que sobra do panelão, pois mocotó não aceita diminutivos. Seu preparo é destinado sempre a um batalhão. Toda geladeira de gente normal guarda potinhos eternos de buchada em seu congelador— pode conferir! Caso não seja seu, é herança de um antigo morador.
Mocotó é bandido. Muda de nome ao sair do país. Empreende uma cirurgia plástica com ajuda de temperos, falsifica o passaporte, adultera os registros. Em Portugal, anda pelas mesas impunemente como mão de vaca. Na Espanha, usa o disfarce de callos a la madrileña.
Assim constrói a sua fama de vilão da infância, multiplica as suas ingênuas vítimas pelo mundo e jamais é capturado pelo faro dos cães pastores da Polícia Federal.
Publicada em Zero Hora
Coluna Semanal
06.09.2016
Mocotó, por exemplo, é dobradinha, é bucho, é cassoulet, é mondongo.
Ele tem vários nomes somente para a mãe enganar o seu filho.
— O que tem hoje para comer? Mocotó de novo?
— Não, hoje é mondongo.
— O que tem hoje para comer? Mondongo de novo?
— Não, hoje é cassoulet.
— O que tem hoje para comer? Cassoulet de novo?
— Não, hoje é dobradinha.
— O que tem hoje para comer? Dobradinha de novo?
— Não, hoje é bucho.
Não é fácil a tarefa de tornar agradável uma combinação feita do estômago, tripas e patas do boi. É necessário abafar a verdade com muito ovo picado, toucinho, linguiça, azeitonas, feijão branco e especiarias.
Repare que os pratos unânimes só têm um batismo, uma única graça: churrasco, feijoada, macarronada. Nenhum subterfúgio. Nenhuma frescura. Prato tradicional consagra a simplicidade, não enrola e não depende de sinônimos.
Já o mocotó é polêmico, devoto de uma legião equivalente de inimigos e adoradores. Ou é amado ou é odiado.
A questão é que se não fosse barato nem existiria. Mocotó é justificado pelo custo-benefício. Não exibe glamour. Nunca será servido em casamento e formatura. Nunca será o almoço para rifa de uma igreja. Nunca será o cardápio para o Dia dos Namorados.
Afora a sujeira e o cheiro que produz. A vontade de quem faz é pedir emprestada a cozinha do vizinho. A casa ficará empestada por uma semana.
Sem contar tudo o que sobra do panelão, pois mocotó não aceita diminutivos. Seu preparo é destinado sempre a um batalhão. Toda geladeira de gente normal guarda potinhos eternos de buchada em seu congelador— pode conferir! Caso não seja seu, é herança de um antigo morador.
Mocotó é bandido. Muda de nome ao sair do país. Empreende uma cirurgia plástica com ajuda de temperos, falsifica o passaporte, adultera os registros. Em Portugal, anda pelas mesas impunemente como mão de vaca. Na Espanha, usa o disfarce de callos a la madrileña.
Assim constrói a sua fama de vilão da infância, multiplica as suas ingênuas vítimas pelo mundo e jamais é capturado pelo faro dos cães pastores da Polícia Federal.
Publicada em Zero Hora
Coluna Semanal
06.09.2016
segunda-feira, 5 de setembro de 2016
TÁTICAS PARA SER VISTO PELO GARÇOM
Garçom no Rio de Janeiro é como sogro: a princípio, não gosta de você. Diferentemente de outras cidades onde você senta e é logo visto, lá você senta e desaparece. Precisa fazer coreografias desesperadas para ser atendido. Receber o cardápio pode significar a sua morte.
O abandono na mesa trará letal desprestígio. Costuma significar o fim precoce de um namoro, de um negócio em potencial, de uma amizade no nascedouro. É uma humilhação levantar a mão inúmeras vezes e jamais ganhar atenção.
Demorei a compreender a aristocracia do garçom carioca. Ele não é garçom, nasce maître.
Em todas as minhas experiências botequeiras, apelava para querido ou amigo, e nada. Não vinha em minha direção. Ele me ignorava. Não havia como pedir um prato ou uma bebida. Ou seja, não tinha como existir, pois comer e beber são os gatilhos de qualquer papo.
Até que descobri a santa estratégia: garçom apenas atende bem quando chamado pelo nome. Perda de tempo assoviar e gritar ei, oi, ui – ele lhe tratará com capricho ao ser identificado. Descobrir o nome do garçom é o kit de sobrevivência na noite.
Foi o que fiz na semana passada quando levei Beatriz a um bar no Leblon. Logo no início, quando ele me alcançou o menu, perguntei quem era e esbanjei o poder de persuasão.
Devo ter chamado o Alberto mais vezes do que pronunciei o nome de minha mulher naquela noite. Estava ficando chato, porém a receita vingou perfeitamente. A cada nova necessidade, assumia uma postura redentora, de São João Batista a sempre batizar o sujeito no Rio Jordão do meu chope:
– Por favor, Alberto!
– Alberto?
– Gentileza, Alberto?
Ele tornou-se o meu Messias dos bolinhos de bacalhau e da porção de fritas. Entre falar o seu nome e fazer o pedido, não demorava nem 10 segundos. Ele corria entre as mesas com larga vantagem entre os seus colegas, um verdadeiro Usain Bolt das bandejas.
Já comemorava o êxito da fórmula, já imaginava escrevendo um livro de autoajuda revelando a chave do sucesso da boemia, já me via na lista dos mais vendidos da revista Veja, mas chegou a conta e tratei de bancar o canastrão diante do 10% opcional:
– É obrigatório, Alberto, pelo seu excelente atendimento.
– Obrigado, senhor, só que meu nome é Roberto.
O abandono na mesa trará letal desprestígio. Costuma significar o fim precoce de um namoro, de um negócio em potencial, de uma amizade no nascedouro. É uma humilhação levantar a mão inúmeras vezes e jamais ganhar atenção.
Demorei a compreender a aristocracia do garçom carioca. Ele não é garçom, nasce maître.
Em todas as minhas experiências botequeiras, apelava para querido ou amigo, e nada. Não vinha em minha direção. Ele me ignorava. Não havia como pedir um prato ou uma bebida. Ou seja, não tinha como existir, pois comer e beber são os gatilhos de qualquer papo.
Até que descobri a santa estratégia: garçom apenas atende bem quando chamado pelo nome. Perda de tempo assoviar e gritar ei, oi, ui – ele lhe tratará com capricho ao ser identificado. Descobrir o nome do garçom é o kit de sobrevivência na noite.
Foi o que fiz na semana passada quando levei Beatriz a um bar no Leblon. Logo no início, quando ele me alcançou o menu, perguntei quem era e esbanjei o poder de persuasão.
Devo ter chamado o Alberto mais vezes do que pronunciei o nome de minha mulher naquela noite. Estava ficando chato, porém a receita vingou perfeitamente. A cada nova necessidade, assumia uma postura redentora, de São João Batista a sempre batizar o sujeito no Rio Jordão do meu chope:
– Por favor, Alberto!
– Alberto?
– Gentileza, Alberto?
Ele tornou-se o meu Messias dos bolinhos de bacalhau e da porção de fritas. Entre falar o seu nome e fazer o pedido, não demorava nem 10 segundos. Ele corria entre as mesas com larga vantagem entre os seus colegas, um verdadeiro Usain Bolt das bandejas.
Já comemorava o êxito da fórmula, já imaginava escrevendo um livro de autoajuda revelando a chave do sucesso da boemia, já me via na lista dos mais vendidos da revista Veja, mas chegou a conta e tratei de bancar o canastrão diante do 10% opcional:
– É obrigatório, Alberto, pelo seu excelente atendimento.
– Obrigado, senhor, só que meu nome é Roberto.
Publicado em Zero Hora
Caderno Donna
Coluna Semanal
05.09.2016
sexta-feira, 2 de setembro de 2016
ENTRE VIDRAÇAS E VITRINES
Texto: Fabrício Carpinejar
Arte: Eduardo Nasi
A minha esposa tem uma incrível vocação para perder brincos, só não é maior do que a sua capacidade fabulosa de reencontrá-los.
Já estou acostumado a vê-la triste assim que identifica o extravio e eufórica logo que localiza o par. Ela sempre resgata o conjunto sumido. No máximo, a operação de revista e reconstituição dos possíveis lugares da queda demora um dia.
Costumava ajudá-la no começo, largava as minhas atividades e assumia a força-tarefa imediatamente. Sofria junto, rezava Salve-rainha, entrava em desespero por empatia, eu me agachava no chão e encerava o piso com as mãos à procura de uma tarraxa ou um destroço da joia. Dava dó do desfalque e da orelha de outono. Perguntava quanto custava e, como todo homem desajeitado com as lacunas, prometia que compraria outro igual.
Mas eu me habituei aos lapsos. Parei de me estressar com os sucessivos desaparecimentos e reaparições.
Às vezes acho que tudo é um golpe de marketing. Beatriz perde somente para se surpreender depois e aumentar a cotação de seus pertences. No fim, fica sempre feliz com a volta do brilho ao lóbulo. Muda o seu humor, parece até que foi presenteada.
O raciocínio é mágico. Perder algo para resgatar em seguida é a possibilidade de comprar novamente aquilo que já tinha.
Nosso apartamento de manhã tem a atmosfera tensa de uma casa de penhor e de noite lembra a felicidade gloriosa de uma joalheria. Nunca é monótono
Publicado no Portal Vida Breve
31.08.2016
Coluna Semanal
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