terça-feira, 30 de setembro de 2014

NOIVO DO COTIDIANO

Arte de Umberto Boccioni

Eu sempre tive a noção de que odiava esperar.

Odiava atrasos dos outros.

Não suportava ficar no bar ou no café, sozinho, contando os minutos.

Experimentava um terrorismo psicológico: se não aparecer daqui a dez minutos, sumo, me mando do lugar.

Percebia todo atraso como um desprezo, uma falta de educação, uma arrogância.

Até que me dei conta que eu só não gostava de esperar de quem eu não gostava.

Básico assim. É uma indisposição que não nascia com o atraso, existia antes, desde quando marquei o encontro. Eu comparecia ao local absolutamente contrariado, ansioso para cancelar. O atraso era apenas uma desculpa, um pretexto para realizar minha vontade premeditada e desaparecer.

Não tenho problema em esperar quem eu gosto.

Quem eu amo posso esperar uma hora e não protesto. Sou capaz de esperar duas horas e perdoar. Sou um noivo feliz no altar do cotidiano.

Quem eu amo posso esperar o tempo que for e permanecerei no ambiente.

Vou me distrair vendo tevê, olhando o celular, fazendo perguntas ao garçom.

Só me irrito em aguardar aquelas pessoas que não tenho muita vontade de conversar. Daí sou intransigente, sou intolerante, sou nervoso, sou brabo.

Já com minha mulher ou com meus amigos, sou paciente e tranquilo. Sou zen. Sou budista. Sou da paz. Pode me dar qualquer desculpa pela demora que aceito. Pode mentir engarrafamento que aceito.

Com quem eu amo, espero até o dia seguinte. Faço sala, faço escritório, faço varanda, faço pátio, faço uma casa toda.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (30/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

FOSSA NOVA

Arte de Paul Delvaux

Nunca se comenta, nunca se discute, mas uma das principais modas é a da fossa. Fossa Nova que João Gilberto não sonhou em cantar.

Nenhum estilista providenciou um desfile sobre os deprimidos do amor, mas são as roupas que mais saem e as mais usadas.

Nenhuma Fashion Week abordou o assunto, mas não há vivalma que não tenha experimentado a eterna tendência.

As roupas da fossa são simples. Escuras, velhas e desbotadas. Aderem ao inverno total, apesar do sol brilhando lá fora. Não trazem cores quentes e ávidas do contato. Não provocam a atenção do verão e da primavera. Expressam cores resmungos, cores sombrias, avessas às gargalhadas e absolutamente discretas.

Vestidos? Jamais. Necas da sensualidade de pernas e tornozelos à mostra.

Blazers e casacos? Impossível. Às favas a sobriedade e a harmonia do conjunto masculino.

As calças pedem bolsos destinados ao lenço de papel, à aliança solteira e ao celular no silencioso. Pode ser de um abrigo surrado ou daquela calça jeans pronta para o sacrifício final.

As mulheres preferem as pantufas e os moletons com mais bolsos ainda.

Os homens optam pelo figurino de pintor de paredes: camiseta básica e manchada.

Os hábitos alimentares influenciam os modelos. As mulheres mergulham em potes de sorvete e desmancham barras de chocolate. Os homens recorrem ao álcool e à pizza como antidepressivos. Quem pede pizza durante três dias na semana é certo que vem penando por uma separação. Toda tele-entrega já identifica o cliente.

Estarão disfarçados de mendigo, interessados na praticidade: colocar e esquecer. Suas vestimentas formam um estranho macacão.

Não querem responder perguntas, odeiam cumprimentos educados como “tudo bem?” ou “o que fez no final de semana?”. Não desejam interagir. Querem passar despercebidos dentro da própria casa mesmo quando não tem ninguém.

São darks pelas olheiras. São grunges pela sobreposição. São punks pelos cabelos desalinhados e duros.

É uma mistura de épocas e de restos de coleções. Seus adeptos representam brechós andando, brechós-centopeias.

O que diferencia o deprimido é a falta de capricho no detalhe. Ele dispensa acessórios.

Se a mulher passeia pelo bairro desprovida de penteado é sócia do desastre.

Se o homem anda pela rua calçando um sapato sem meia está submerso na dor de corno e de cotovelo.

Se a mulher caminha sem maquiagem, brincos e colar está enfrentando um divórcio.

Se o homem percorre seu caminho ao trabalho desfalcado de cinto está vivendo sua decadência sentimental.

Vestir a dor tampouco exige medidas. As peças sobram ou apertam a cintura e não se reclama. Dois números acima, dois números abaixo, tanto faz, o desconforto não incomoda. A proposta é não se gostar mesmo.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  28/9/2014 Edição N°17936

O AMOR É SUS

Arte de Unica Zürn

Por mais que a gente queira o amor convênio médico, o amor com carteirinha de saúde, o amor garantia de tratamento e quarto privativo, o amor é sempre SUS. O amor verdadeiro é sempre Sistema Único de Saúde. Atinge a todos, sem exceção, sem discriminação. Atinge a todos de modo igual, se você é empresário ou camelô, se você é pobre ou rico. Atinge a todos sem regalias e benefícios. Todos vão sofrer na hora de amar.

É sempre o mesmo desespero. É sempre briga. É sempre fila. É sempre espera. É sempre ver tragédias ao nosso lado. É sempre dividir o leito. É sempre ouvir as histórias dos outros para comparar com a nossa. É sempre suportar a demora dos exames. É sempre equipamentos quebrados e a esperança do conserto. É sempre não saber o que está acontecendo. É sempre penar pela falta de sinal. É sempre reclamar do atendimento. É sempre este medo de morrer sozinho.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (26/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

7.1 NA ESCALA RICHTER

Arte de Eduardo Nasi

O amigo jornalista Daniel Scola foi cobrir os terremotos no Japão.

Dormia no hotel no momento em que ouviu os cabides deslizando de um lado para o outro do armário.

Um tremor repentino, quase como um soco no prédio de vinte andares.

Acordou num sobressalto e discou para a portaria.

— Houve um terremoto? O que faço?

O recepcionista, calmo como todo recepcionista, apenas orientou:

— Fique debaixo da flecha!

Scola não questionou o significado da flecha, parecia óbvio pela fala despretensiosa e mansa do funcionário.

— A flecha? Evidente, permanecerei debaixo da flecha.

Ele não quis entregar que desconhecia a flecha, acolheu a informação de imediato. Envergonhava-se de sua ignorância, como quem pergunta se tem água sem gás no frigobar.

Logo que desligou, Scola saiu a procurar a flecha, a maldita flecha, que salvaria sua vida, espécie de cofre do tremor.

Rastreou os corredores, as gavetas, o banheiro, a cabeceira da cama.

Não havia nenhum sinal de índio naquele minúsculo apartamento sob intenso farfalhar e ruído.

Desceria pelas escadas para descobrir, quando visualizou uma seta vermelha atrás da porta.

A flecha apontava onde estava a viga do prédio. É onde deveria resistir, agachado, às oscilações do tumulto. Se o chão cedesse, se o teto desabasse, aquele microscópico território se manteria de pé.

Tudo poderia ruir menos aquele círculo debaixo do sinal. Era sua guarida, seu esconderijo, seu ferrolho, seu santuário, seu guarda-chuva de abalos sísmicos.

A viga!

Da mesma forma, quando o relacionamento recebe um solavanco, uma devastação de palavras e gestos, quando as brigas cansam os ouvidos, quando as ofensas são repetidas, quando a amizade é ferida, quando a lealdade é quebrada, quando a mentira é descoberta, quando uma traição é flagrada, quando o casamento começa a desmoronar, temos que achar a flecha dentro de casa. Correr para a flecha.

Localizar a viga que uniu o casal, a viga que serviu como base daquela construção emocional.

A viga que edificou o amor. É aquela frase primeva, é aquele beijo ancestral, é aquela lembrança pura que sustenta todos os andares.

Pegue as mãos de sua mulher, abrace com força seus ombros, e se resguarde silenciosamente na viga até o terror passar.

Não corra para as janelas para assistir a destruição. Retire-se do conflito.

Proteja-se na viga. Sempre. Debaixo da flecha.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
24/9/2014

QUANTO MAIS CONEXÕES, MELHOR

Arte de Julian Trevelyan

Mais gente está andando de avião.

O pobre está andando de avião.

Nunca se andou tanto de avião.

São frases reais. Políticos e empresários se gabam de converter o avião em um transporte acessível, barato, em comparação às décadas de 80 e 90.

O que ninguém fala é que o avião virou um ônibus pinga-pinga, para em tudo que é lugar até encher.

É um calvário, uma romaria, uma procissão, parece que a aeronave receberá a autorização para decolar se estiver lotada.

Uma viagem que poderia ser de três horas acaba concluída em seis horas.

Partir de Porto Alegre para Fortaleza, por exemplo, costuma envolver três conexões. E com paradas de mais de uma hora.

O Brasil é imenso, mas as empresas aéreas conseguem a proeza de aumentá-lo.

Está sendo criado um novo turismo. O turismo da escala.

Não se entra na cidade, mas aguardar no aeroporto é suficiente para contar vantagem.

Se você vai a Belém, você visitou também São Paulo e Brasília.

Não pôs o pé para fora do aeroporto de Guarulhos nem do Juscelino Kubitschek, ninguém precisa descobrir, pode computar que esteve em São Paulo e Brasília. Não é bem uma mentira. Sem nenhuma pergunta a mais, fica sendo uma verdade. Ok, uma verdade magra, raquítica, porém ainda verdade.

Paga por um destino e já tem condições de alardear que esteve em mais três de presente.

Olha que maravilha! É uma promoção. Toda viagem é uma turnê, uma volta ao mundo pelas nossas culturas e folclores.

As conexões são uma bênção para o selfie. As escalas são uma dádiva para marcações no Facebook e no Instagram.

Você viaja a Manaus e recebe de bandeja a chance de dizer que pisou em São Paulo, Brasília, Belém e Rio Branco.

Você tem o desejo de conhecer Recife e goza do privilégio de esperar no Rio de Janeiro, em Salvador, Teresina e Fortaleza. Esteve em cinco Estados em um dia. É uma façanha para contar aos netos.

Não sobrará em nenhuma conversa que envolva tais capitais. Encha a boca para comentar:

– Já estive em Salvador!

Ponto. É um mérito proporcionado pelas conexões sem fim da malha aérea brasileira. Não acrescente nenhuma informação. Só você saberá que não saiu do aeroporto Deputado Luís Eduardo Magalhães. Seus amigos se encantarão com suas experiências, receberá um outro tratamento no seu bar predileto, a cerveja chegará mais gelada em sua mesa.

Compre uma lembrança para comprovar sua passagem. Já levei bonecos de Olinda em rápido trânsito de malas pelo terminal pernambucano. Sempre tem uma lojinha com uma camiseta homenageando a cidade em que desembarcou rapidamente.

As escalas são o melhor e mais barato pacote turístico.

Quando há a obrigação de viajar para o Acre e o atendente me oferece apenas duas paradas, respondo que não. Acho um desaforo. Quero mais conexões. Quero mais capitais para acrescentar ao meu currículo.

Quem faz viagem direta não tem nem entende esse luxo. Além de pagar mais, perde a chance de aumentar seu histórico.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 23/9/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17931

ANGÚSTIA DA PORTA

Arte de Leslie Hurry

Minha amiga Diana Corso acabou de lançar seu primeiro livro de crônicas: Toma conta do mundo (Arquipélago).

Ela mostra nossa dificuldade de se despedir dos convidados em uma festa.

Nossa incompetência em dar tchau quando recebemos um grupo em casa e avançou a madrugada e estamos com sono.

A noite foi maravilhosa, os doces e o café foram servidos, nossa vontade é deitar na cama que está a poucos metros da sala de estar.

Mas temos que esperar que os nossos convidados decidam partir.

Sofremos com uma falsa educação de que eles devem resolver o fim do jantar, não nós, que organizamos tudo e bancamos o encontro. Que é chato despachar os amigos. Que é indelicado avisar aos amigos da obrigação de acordar cedo para o trabalho.

A gente absolutamente esquece que eles são os nossos amigos e que poderíamos falar qualquer coisa. Queremos agradar sem nenhuma necessidade.

O que acontece?

Reina aquele silêncio constrangedor, aqueles bocejos intermináveis, até que um dos convidados percebe o desconforto e comenta:

- É o momento de ir embora, já é tarde!

Em vez de responder "sim, ótimo", em vez de comemorar o alívio, em vez de expor nossa vontade, vem o medo de que descubram nossos pensamentos e falamos o contrário: "Não, ainda é cedo, fiquem mais um pouco".

E para piorar começamos um debate sem fim sobre um tema sem fim, lançando uma pergunta para queimar mais uma hora de conversa:

- O que vocês acham do aborto? O que vocês acham da pena de morte? O que vocês acham da redução penal?

A culpa é uma péssima anfitriã.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (23/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

O CORAÇÃO CUSPINDO

Arte de Bernard Dumaine

Quando você não tem como resgatar uma história de amor, meu amigo, meu irmão, o coração vai cuspindo.

O coração está gripado. Está doente.

Você respira bem, mas o coração não. Não criaram uma aspirina para o coração.

Não tem como tomar um remédio. Ou esquecer.

Seu coração cospe o nome dela, as imagens dela em cada tentativa de romance.

As mulheres com quem vai sair não notarão o seu peito apertado. O seu peito confrangido. O seu peito constrangido. O seu peito doendo a falta de esperança.

Mas, entenda, seu coração vai cuspir muito ainda. Talvez seja pneumonia do coração.

Seguirá com a vida porque não tem o que fazer: ela arrancou o futuro da relação, a esperança, ela não mudará, continuará lhe destratando, sendo grosseira, muda, fria, insensível.

Ela não dará jamais as respostas que deseja. A saúde que espera. O arrependimento que anseia.

Cuspirá, meu querido. Nas calçadas e nos canteiros, cuidando para não ser visto.

Um exorcismo que não termina, fracassando para jogar fora o excesso não vivido a dois.

Sofre da nostalgia do que não viveu e não viverá mais.

Ela não merece seu amor - o que agrava a sua angústia. Pertencimento e merecimento não andam lado a lado, descobriu isso, infelizmente.

Você já cansou de rezar. A tosse é o cansaço da memória. O cansaço do silêncio. O cansaço de Deus. O cansaço da insistência: esta insistência cansada na desistência.

O amor pulsa inteiro entre palavras quebradas.

O amor bate inteiro com a fé estraçalhada.

Tudo foi piorando de tal forma que ou você afundava junto com ela, humilhado, ou você emergia, sozinho e ferido.

Todo amor a uma mulher deve coincidir com o amor à vida.

Seu coração tosse quando janta acompanhado em um restaurante diferente e percebe que sua ex poderia gostar de um prato, da decoração, quando seu pedido no cardápio é mais o pedido dela do que o seu, quando você tem vontade de sair dali para contar para ela que precisa conhecer um novo restaurante, que é a sua cara.

Mas ela não escutará você. Porque estará de mau humor, estará cobrando novamente, sempre insatisfeita, sempre infeliz.

Você tentou fazê-la feliz e ela somente lhe machucou.

Já conclui que ela odeia sua felicidade, ama seu amor e odeia sua felicidade.

Não dará importância à sua poesia, aos seus detalhes, ao tempo que leva reunindo a saudade de lugar a lugar para oferecê-la.

Seu coração tosse sem parar quando busca se envolver com uma pretendente. Depois da euforia do sexo, da inconsciência do sexo, ficará com uma vontade imensa de se isolar e mandar a companhia embora. Terá que ser educado para disfarçar a tosse e não transmitir a sensação que usou a pessoa. Você vem se usando, não usando ninguém.

A tosse é indelicada e convence seu rosto a mergulhar na tristeza. Não consegue conversar, pois seu coração quer cuspir. De novo e de novo.

Você não fala mais com ela. Você não telefona. Você não manda mensagens. Você não tem nenhum motivo ou pretexto. A tosse é a paixão sufocada. A paixão por dentro sem voz, sem comunicação, sem nada.

Ela tampouco imagina que seu coração está cuspindo.

Seu coração cospe. Intervalos longos em que o mundo para e desaparece.

Seu coração resmunga. Seu coração não é seu, ainda é dela, até quando?


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  21/9/2014 Edição N°17929

ALEGRIA FORÇADA AGRAVA A TRISTEZA

Arte de Georges Braque

Quando alguém está triste, temos a mania de reverter o quadro com palhaçada.

Criamos um circo instantâneo. Montamos a lona das bobagens. Falamos sem parar para buscar distrair a tristeza.

A pessoa está quase chorando e entramos na espiral de piadas, de caretas, de brincadeiras, de cantorias. Como se ela estivesse a fim de um espetáculo naquela hora.

Não está. É tudo o que não deseja.

Quem está magoado pretende garantir seu espaço, sua intimidade, sua reserva, sem espectadores, sem palco, sem a necessidade automática de recuperar a alegria.

Quem está magoado não pretende se sentir culpado, nem pressionado a mudar de estado de espírito.

Quem está magoado não quer jogar Imagem-ação, com mímicas e adivinhações.

Esta pedagogia do riso já não repercutia bem com crianças (inventar cócegas não salvava nenhum aborrecimento. Pelo contrário, aumentava a irritação).

Preservamos a ideia de que a tristeza incomoda a família, os amigos, os amores. Estraga o final de semana. Atrapalha a convivência.

A tristeza nunca é bem-vinda, maldita como uma gripe.

A tristeza nunca é compreendida, respeitada, deve ir embora imediatamente.

O que é errado. Nada mais essencial para a saúde emocional do que a tristeza. É o momento que organizamos os pensamentos e recuperamos nossa solidão.

No fim da história, desencadear palhaçada fará com quem está triste só fique também constrangido.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (19/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

MALDIÇÃO

Arte de Eduardo Nasi


Minha memória mudou.

Aos 20 anos, lembrava do nome e do rosto.

Aos 30 anos, lembrava do rosto.

Aos 40 anos, lembro que conheço, e só. Preciso de tempo, ajuda do Google e de pistas para desvendar o interlocutor.

Todo encontro é uma charada. Relaxo, encaro fundo o enigma, examino qual a entrada mais promissora do labirinto e tento achar uma saída educada antes de optar pela sinceridade mais grosseira: “Não me lembro, não sei quem você é!”.

Na última semana, tive o mais complicado desafio de evocação. Meu sudoku particular.

Caminhando pelo shopping Iguatemi, em Porto Alegre (RS), uma senhora de olhos azuis graúdos me parou pelo ombro:

— Ei, não lembra de mim?

Puxei o ioiô do passado, mas não vinha nenhuma linha. Nenhum fio de imagem. Nenhuma legenda para este rosto redondo e simpático.

— Desculpa, estou sobrecarregado de trabalho e não me lembro.

Ela lamentou:

— Que pena, aguardava ansiosamente o nosso reencontro.

Já raciocinava, aflito: “Será que namorei esta mulher? Transei com ela? Prometi meu coração? É caso de alguma bebedeira?”

Eu me via vestido de cafajeste, de cafetão do inconsciente.

Quando ela esclareceu:

— A gente foi colega no maternal, no Patinho Feio!
— Maternal?, quis esclarecer.
— Sim, dividíamos a mesma almofada na hora do sono.

Não acreditava que ela preservava os fatos, intactos, quando tínhamos cinco anos.

Naquela hora, eu me contentei pelos meus apagões, pelas falhas generosas de meu passado, pelos lapsos do perdão. Pressenti o quanto ela sofre pela nitidez do que viveu. Deve recordar de qualquer briga, com data e horário; de qualquer desaforo, com a ordem exata das palavras; de qualquer desentendimento, com o mal estar minucioso; de qualquer vingança, reproduzindo perfeitamente o tempo do choro.

Aquilo não era memória, mas maldição.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
17/9/2014

PARA ONDE VAI O AMOR?

Arte de Piet Mondrian

Quando deixo de amar, não fico aliviado, eu fico triste. Porque é se despedir de uma grande parte da própria vida, é se desapegar de um sentimento que julgava único.

É triste deixar de amar. Profundamente triste. É sacrificar a personalidade, é nunca mais usar um jeito de reagir e de falar, nunca mais usar um jeito de beijar e de abraçar, nunca mais usar um jeito de transar e ser feliz.

Passo a pensar: onde foi parar todo aquele amor? Onde é que ele se escondeu? Será que desapareceu ou apenas está dormindo?

Será que terminou mesmo ou é fingimento para suportar a falta? Será que minto para mim para não sofrer tanto?

Será que o amor é um segredo disfarçado de fim? Será que a minha solidão agora é soberba? Será que meu contentamento é uma cilada? Será que me embriaguei de palavras e esqueci o caminho de volta?

Onde estão aquelas declarações apaixonadas? Em que parte distante de mim, já que não sobem mais aos olhos?

Para onde foram a algazarra da convivência, os passeios, as viagens, as mãos dadas, os risos, a cumplicidade das festas, as brincadeiras, o sono de conchinha, as conversas até tarde?

Para onde foram a ansiedade, o ciúme, a saudade, o desespero de não ver mais, as implicâncias ruidosas, as concordâncias silenciosas?

Para onde vai o amor após sumirem as fotos, os quadros, as mensagens de texto, os bilhetes de flores?

Quando não há mais dor para sinalizar onde se mantinha o amor. Quando não há mais desespero para apontar onde se guardava o amor. Quando não restam lápide, campa, cicatriz, rua, aliança para ostentar sua lembrança.

Em que parada de Porto Alegre desembarca a comoção perdida? Qual a estação em que o amor acena e evapora? Que planeta, que dimensão, que oceano?

Ou ele se transforma numa mania nova, num modo de suspirar, de virar o rosto, de mexer as orelhas?

Ou ele se converte em cinismo religioso, em maldade com os palhaços, em ironia com noivos, em raiva de qualquer save the date dos amigos?

Para onde vai o amor depois do amor? Me fale, por favor. As lágrimas, quando secam, permanecem eternamente na pele? Não sei. Mas meu rosto está cada vez mais salgado.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 16/9/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17924

ESTUDAR E APRENDER

Arte de Zhretz Tarkvinny

A pesquisadora e ex-ministra do Equador Rosa Maria Torres me deu uma boa dica que serve para todos os pais.

Quando seu filho fica horas estudando, o costume é respirar fundo de satisfação. Mas estudar é apenas uma fachada. Ele pode estar lendo a mesma frase uma tarde inteira sem compreender patavinas. Pode estar dormindo de olhos abertos no texto. Pode estar somente com o corpo fixo e a cabeça voando. 

Dedicação não significa qualidade. 

Esforço não significa atenção. 

A gente pergunta para o filho se ele estudou. A questão está errada. Temos que perguntar o que ele aprendeu. 

O que ele absorveu do conteúdo? Qual sua interpretação da tarefa? 

Porque estudar e aprender não são a mesma coisa.

A criança pode aprender sem estudar muito. Ou pode estudar muito sem aprender nada. 

Ouça meu comentário na manhã de terça (16/9), na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antônio CarlosMacedo e Jocimar Farina:

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

EU TE DEVOTO

Arte de Gino Severini

Se você tem um homem ou uma mulher que lhe ama, é muita sorte.

Mas existe algo maior do que o amor: a devoção.

Se você tem um homem ou uma mulher devota, não é apenas sorte, e sim milagre.

O devoto jamais desistirá de você, é amor até depois da morte.

Ele não tem orgulho, tem fé. No orgulho, só cabe um. Já a fé tem espaço para todo o casal.

O voto matrimonial será cumprido realmente pelo devoto (quem ama às vezes não aguenta cumprir a declaração à risca):

“Prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.

O devoto foi feito de pele de aço e alma de vidro. Encontra explicações na própria esperança, mesmo quando não é retribuído ou correspondido. Pode ser criticado, ofendido, abandonado, esquecido, maltratado, torturado e não vai desistir.

Ele sofre pelos dois, e se acalma pelos dois. Ele briga pelos dois e se desculpa pelos dois.

Tenho pena do devoto e também admiração.

Nenhum de seus amigos e familiares será capaz de entendê-lo. Porque ama demais, se doa demais, se quebra demais.

É amargamente ingênuo, docemente compreensivo.

Vive mudando sua perspectiva para encaixar a convivência. É um otimista da ação, apesar da tônica pessimista de sua rotina.

Renuncia os objetivos em nome do casamento, da recuperação do casamento, da melhoria do casamento, que talvez nunca venha.

Enquanto é natural procurar motivos externos para justificar a tristeza, o devoto se concentra nas lembranças boas, ainda que raras, para proteger sua vontade de viver.

O devoto é um guerrilheiro da relação, um apaixonado vitalício.

Tem o desespero de ajudar sempre, em atender os pedidos antes de pensar em si.

Ele cessa qualquer trabalho para acolher a súplica de sua companhia. Nunca volta de uma viagem desprovido de uma lembrança, desenha a saudade nos vidros de sua paisagem, derrama-se em reticências nas mensagens. Não encara o nome de sua amada ou amado no celular sem tremer.

Quem ama dorme bocejando, o devoto dorme suspirando.

Quem ama acorda pedindo espaço, o devoto acorda pedindo abraço.

O devoto vai além da compreensão. Escreve cartas, deixa bilhetes de manhã, prepara surpresas, inventa festas. Incansável em sua busca por ser inesquecível.

Ele pode, inclusive, se piorar para não ser melhor do que sua companhia. Ele pode se sonegar para se equiparar ao que recebe.

Eu te devoto supera o Eu te amo.

O único empecilho é que um devoto precisa encontrar um outro devoto para ser feliz.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  7/9/2014 Edição N°17915

MOTELEIROS

Arte de Leslie Hurry

Não se dorme em motel, por mais que se tente, não se dorme.

Trata-se de uma maldição, o casal dirá que deseja virar a noite e aproveitar o café da manhã. Nunca vi alguém tomar café da manhã em motel.

No máximo, é possível passar seis horas em seus domínios. Descansar é impossível.

Motel é para transar e mais nada. Foi criado unicamente para a luxúria e insônia.

Deveria ganhar diária grátis quem consegue fechar os olhos ali dentro. Só bêbado, mesmo. Só desmaiando. Só em coma alcoólico.

Não existe nem a tranquilidade de Bíblia na gaveta.

Não há o aconchego de ninho, a atmosfera de conchinha, de se apegar mansamente nos braços da mulher e virar para o lado.

Não há lado no quarto de motel. É uma gaiola de vidro, de hamster correndo.

É uma jaula de musculação, de ginástica, de levantamento de halteres.

Não há como sonhar em paz com um espelho no teto. É acordar e se espiar de cima. Parece que estamos mortos, levitando, que saímos do próprio corpo.

Há uma luz que nos cega entrando pelas frestas e pelos reflexos dos vidros. Pode fechar as cortinas que ainda tem claridade. É como dormir de luz acesa. O quarto de motel é o sol da Sibéria em miniatura.

Mesmo que sufoque completamente as janelas, uma luz negra banha os objetos. Os objetos brilham, o telefone brilha, como adesivos de decoração infantil. É como deitar nas cadeiras do Planetário.

Estar em seu território é não se encontrar com o silêncio. Tem um chiado ininterrupto entre as paredes. Não sei se é a tevê, não sei se é o rádio, não sei se é a alavanca da cama. Apertou algum botão por engano e não localiza qual é.

O apartamento não traz a segurança da intimidade. A porta está fechada, mas a impressão é que surgirá alguém para limpar a qualquer momento, alguém sairá do elevador dos pratos ou de uma outra porta secreta.

Não há como descansar, a estrutura é moldada para contorcionismo, oferece degraus, divisórias, box. Não tem o fundo plano para o sossego. Um horizonte de calma e de estabilidade. Uma cena igual e monótona para se entregar ao cansaço.

Como repousar num banheiro? Estamos enredados em um banheiro imenso e infinito, um banheiro feito dormitório. As lajes, o mármore e os azulejos são pedras frias, pedras que não entoam cantigas de ninar.

A cama é redonda, triangular, tudo menos quadrada. Os pés escapam, ficam soltos de suas órbitas, dançam no ar, pedalam perdidos.

O lençol não dá conta do frio. É um lenço fino, pura gaze, que serve para nu artístico. Não tapa nada. Não achará cobertor e edredon no armário. Não tem como se aprochegar. O ar ou é quente demais ou é frio demais. Ou se levantará queimando em febre ou congelado.

Acima de tudo, sentirá falta de seu travesseiro. Aquele peso sob a cabeça é apenas uma almofada morta de sofá.

Terá saudade de seu confidente de penas. Macio, fofo, impregnado de seu cheiro.

Mas levar travesseiro para o motel é coisa de depravado.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  14/9/2014 Edição N°17922

COMI DEMAIS

Arte de Hannah Höch

Tenho o péssimo costume de dizer que comi demais em toda a refeição.

Além de ser um comentário desagradável, expressa minha incompetência em ser simpático na mesa.

Comi demais. E realmente como demais e rápido. E me dá uma preguiça de falar. Uma vontade irresistível de bodear, de jiboiar, de sestear, de tirar uma pestana.

Todo mundo rindo e querendo saber das novidades e eu já desejando pedir a conta.

Não sirvo para bater papo no almoço e na janta. Fujo de reunião e negócios em restaurantes. Sou uma criança de barba. Não espero nem a sobremesa. Quero ir logo para casa. Sair dali correndo.

Fico anti-social. Como e me estrago. Perco a paciência. Perco minha solidariedade. Minha generosidade.

Sou daqueles que ou come ou conversa. Não consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (12/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por JocimarFarina e Leandro Staudt:

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

AGUAR O JARDIM

Arte de Eduardo Nasi

O pai sempre ensina Suellen a regar as plantas. Ou como a família costuma dizer: aguar o jardim.

É sua tarefa de final de domingo.

O pai é um obcecado por cuidar dos canteiros, não permite um lírio durar muito tempo no vaso sem transplantar para o solo, tem uma coleção de orquídeas grudadas nas costas das árvores, faz a barba de seus bonsais todo dia, calcula o desabrochar de cada nova hóspede.

Há dez anos, desde que ela era pequena, o pai demonstra como ela precisa segurar o regador e usar a mangueira.

Com doce insistência, explica a força na hora de abrir a torneira, a quantidade de água a ser derramada, o cuidado intensivo para não assustar os passantes pela rua, aponta as partes da grama que não foram atingidas, alerta para as flores que não podem receber jatos na cara senão morrem.

É sua vida de jardineiro. Ou de pintor. Como ele pinta, ele é devedor daquilo que vê. Sofre quando a paisagem adoece antes do quadro. Ou quando a paisagem não vira quadro.

A questão é que Suellen jamais aprende, mas também jamais deixa de perguntar.

Há dez anos é assim naquela casa mineira. Há dez anos travam o mesmo diálogo, a mesma troca carinhosa de expressões.

— Mesmo?
— Funciona!
— Olha como elas estavam secas!

Suellen vem para sua obrigação caseira absolutamente desmemoriada.

Não que seja complicado e que tenha alguma deficiência para memorizar os passos daqueles dez metros de pétalas no bairro Nova Suíça.

É uma rotina que lhe oferece tranquilidade. Questionar, compreender e esquecer até o próximo domingo.

A mãe inventou de romper o pacto dos dois, quebrar aquele acordo tácito de submissão e silêncio.

— Suellen, por que você obriga seu pai a repetir? Que maldade é esta? Fica debochando do velho?

Embaraçada pela questão, como quem é pega em flagrante, ela baixou a guarda do fluxo para seus pés descalços e respingou umidade em seu vestido:

— Mãe, não é que não aprendo, eu não canso de ouvir meu pai me ensinando. Venho aguar o jardim para ver meu pai explicando. É como uma história para dormir. Vejo se ele vai usar as palavras de sempre, as frases de sempre, como está seu temperamento pelas pausas, onde ele acrescenta uma nova informação, como seu olhar procura rapidamente conter as zonas mais queimadas e recuperar as folhagens adoecidas. A voz do meu pai é o meu jardim.

Os três novamente se calaram, e a água voltou a falar.

A admiração hidrata o amor.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
10/9/2014

terça-feira, 9 de setembro de 2014

A TRISTE E INCRÍVEL DECADÊNCIA DOS MEUS CABELOS

Arte de Cundo Bermúdez

Meu bisavô é careca. Meu avô é careca. Meu pai é careca.

Sempre usei a desculpa da genética para fundamentar a minha calvície.

Estava destinado ao orfanato, ao lustre infinito da testa devido à maldição do DNA.

Não haveria como lutar contra a queda. Assumi, desde cedo, a batalha vã e inútil.

Mas não sou bobo. Álibis e justificativas à parte, tenho consciência de quanto os cabelos sofreram em minhas mãos. Ajudei a devastação. Apressei o desprezo. Uma esponja de aço seria melhor cuidada.

Lavei meus cabelos com barra de coco, xampu de ovo, dois em um, três em um, sabonete de glicerina.

Na infância, ele recebeu camadas consecutivas de neocid e de álcool.

Enfrentei piolhos, bactérias e fungos da pior forma: dizimando o jardim.

Prendi pontas com chiclete, arranquei pontas ao pentear com pressa.

Cortei sozinho, penico, me candidatei a experimentos de cabeleireiros.

Eu passei camomila, parafina, fiz luzes, acelerei o redemoinho.

Usei gel para endurecer, usei gosma para umedecer.

Não seguia a lua, desdenhava o sol, não me alimentava direito.

Jamais cuidei de meus cabelos.

Tomava banho fervendo diariamente, dormia com a cabeleira molhada, adotei o travesseiro como toalha.

Em meus 40 anos, experimentei fase hippie, metaleira, surfista, sertaneja, punk, argentina.

Apresentei topete, mullets, arbusto até a cintura.

Tapei as orelhas, mostrei as orelhas.

Meu destino era ser Chico Xavier de peruca.

Eu não mereci meus cabelos.

Eles eram fáceis de modelar: loiros, lisos, abastados. Mas não tive nem um pouco de juízo.

Na verdade, sofria de inveja dos meus cabelos. Ciúme dos meus cabelos. Dor de cotovelo dos meus cabelos.

O que fazer quando a moldura é mais vistosa do que o quadro?

Meus cabelos lindos só lembravam que a pintura era ruim. Meus cabelos lindos destoavam do desastre de meu rosto.

Não tinha sentido ser um John Malkovich com mechas de Marilyn Monroe. Matei a drag queen em mim.

Não poderia aceitar um cabelo mais bonito do que eu.

Hoje sou todo feio. Redondamente feio. Sem nenhuma incoerência.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 9/9/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17917

OS TRÊS PRIMEIROS MESES DE RELACIONAMENTO DE UM AMIGO

Arte de Edward Hopper

A Malu é ótima. Aceita que eu namore outras mulheres.

A Malu é ótima. Não tem ciúme. Nem é possessiva.

A Malu é ótima. Não fica me incomodando por bobagens. É independente e desapegada.

A Malu é ótima. Ela me manda resolver casos antigos e sempre está de bom humor.

A Malu é ótima. Não deseja que eu beba com os amigos.

A Malu é ótima. Recusa relação aberta e questiona quem adiciono no Facebook.

A Malu é ótima. Odeia quando demoro para responder suas mensagens.

A Malu é ótima. Controla os meus passos e as minhas palavras.

A Malu é ótima. Ela não me deixa mais sair do apartamento.



Moral da história:

Amor que começa muito liberal acabará conservador.

Amor que começa com as janelas abertas terminará fechando todas as portas de casa.

Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (9/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

SESSÃO NOSTALGIA

Arte de James Rosenquist

Fiz uma lista de coisas que deixaram de dominar o nosso cotidiano, objetos quase extintos, que antes reinavam em casa e hoje estão desaparecidos da rotina.

Galocha: item obrigatório na hora de enfrentar a chuva e o barro. Para não gastar os sapatos.

Talco: adultos usavam talco mais do que desodorante.

Chapéu: nada de boné, homem sério tinha dois chapéus. O chapéu era a bolsa do homem: marrom e preto, no mínimo. Havia chapelarias nos bairros.

Bombril na antena: único jeito de capturar um canal e assistir tevê.

Espanador: vassoura dos objetos, uma cauda ridícula de pavão para espantar o pó.

Lenço de pano: todo homem tinha um lenço de pano no bolso da calça para o suor ou para a gripe.

Papel-carbono: o xerox de minha infância.

Furador de folha: necessário para pastas e arquivos. Era mais importante do que o grampeador.

Chaveiro de pé-de-coelho: amuleto da sorte, uma tradição, permanecia no molho de chaves até ficar amarelo.

Corretivo: líquido branco empregado para disfarçar erros de escrita, mas que só chamava mais atenção. Mercúrio-cromo do papel.

Naftalina: as roupas de inverno recebiam a proteção das bolitas brilhantes. Eu ia para aula cheirando a naftalina.

Papel de pão: fino, vegetal, embrulhava o pão de meio quilo (lembro também da cordinha). Ruim de escrever, apenas possível de um lado, mas que – milagrosamente - virava lista de compras.

Só não entendo como as polainas ainda permanecem por aí. Sobreviveram à bomba atômica do tempo e da tecnologia. São as baratas do vestuário feminino. Nenhuma mulher é sensual de polainas. É um pijama preso nos tornozelos.

Ouça meu comentário na manhã de sexta-feira (5/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

MENINO VELHO

Arte de Eduardo Nasi

Tenho necessidade de ser velho. Uma compulsão em ser antigo.

Não nasci na época errada, acumulo épocas em mim.

Entre uma Loja I-Place ou um brique, vou entrar no segundo, gastar mais no segundo, enlouquecer no segundo.

Adoto produtos de última geração, mas sou viciado em antiguidades.

Um smartphone nunca me encantará como um telefone de parede preto, daqueles de cinema mudo, de girar o disco e rezar pela chegada da linha.

Eu já quero levar mesmo não prevendo onde colocarei na sala. Suspiro de felicidade quando o vendedor diz que ainda funciona. Poderia comprar estragado.

Um iPad Air Apple 16GB não me seduzirá como uma vitrola, onde posso rodar meus LPS com a lentidão dos grilos nas tardes de sol.

Uma televisão de 65 polegadas não sugará minha atenção como um rádio Júpiter, de mesinha, em que é possível capturar estações na Argentina e em Cuba.

Sou das quinquilharias, dos secos e molhados, dos brechós.

Não me interesso por aquilo que é recente, mas por aquilo que está conservado. Festejo as peças intactas e os riscos do tempo.

Já adquiri um lustre de teatro que jamais subiu ao céu do meu teto, já adquiri um cartão-ponto de uma empresa têxtil para brincar de empilhar horários quando entro e saio da residência.

Eu me divirto com a nostalgia dos outros.

Não negocio, não barganho, é minha repescagem de viver, deixo-me levar pelo preço e pela hipnose regressiva. Não compro, arremato. Loja que me atrai é leilão.

Minha vontade é salvar a casa da minha infância, a casa dos meus avós, remontar o que foi dissolvido na partilha, juntar os escombros do castelo.

Minha ânsia é reconstituir os sofás verdes esculpidos em madeira, as camas com cabeceira de santos, os corredores com cheiro de importante.

Minha adrenalina é abrir novamente a geladeira Steigleder branca e reencontrar as garrafas de leite de pé.

Quem tem mais de 40 anos sofre de recaídas consumistas diante de feiras de antiguidades.

Passeio entre as mesinhas e as toalhas estendidas no chão como se fosse um príncipe destituído, um czar decadente.  Aliso minha barbicha em cada mostruário.

Com surpreendente avidez, espio as joias de rainha, os broches com símbolos bíblicos, os chaveiros de bancos e lojas extintas, a louça de porcelana numerada da Renner.

Eu não espero o futuro no presente, procuro o passado.  Faço fiado com as minhas lembranças.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
3/9/2014

INÚTIL SECADOR DE MÃOS

Arte de Yves Tanguy

Não sou fã do secador de cabelos.

Porque as mulheres o usam para nos acordar de modo traumático, é terrível despertar da paz do sonho com seu barulho ameaçador, lembra sirene de ataque de bomba, lembra sirene de bombeiro.

Porque as mulheres procuram conversar sério no momento em que ligam o motor, determinadas a criar a suspeita de surdez no homem.

E ainda pelo motivo de o aparelho nunca ter colaborado para apaziguar os tufos da infância e da adolescência. Somente piorava meus redemoinhos, que se transformavam em terremotos escolares. Nem o boné acalmava o topete involuntário nas costas da cabeça.

Mas minha implicância com o secador de cabelos é menor do que minha irritação atual pelo secador de mãos, que costuma dominar as paredes dos banheiros de shoppings.

É uma invenção inútil para o público masculino. Respeito sua importância ecológica de economia de toalha de papel.  Entretanto, não tem nenhuma serventia prática.

O homem é ansioso e funcional. Não suporta ficar parado muito tempo diante daquele jato morno. E não é quente, é morno. Pateticamente morno. Tente colocar suas mãos na saída de um aspirador de pó: é o mesmo efeito.

Constrange a maior parte dos usuários, quase como fazer as unhas. É esticar os dedos para a palmatória do vento. Ninguém tem paciência. Todos partem com as palmas molhadas, pegajosas, evitando cumprimentar conhecidos na saída do toalete.

Uma das vantagens de o homem ir ao banheiro é a rapidez. O secador de mãos tem como objetivo criar um congestionamento nas pias. Para realmente secar as mãos ali, teríamos de permanecer 10 minutos parados, sem nos movimentar. Se levássemos a cabo a ideia, haveria fila de balada na porta dos cavalheiros.

Homem pretende mijar e deixar o ambiente correndo. Ao permanecer estático no local, já receberá a desconfiança dos outros.  Parece que está espiando instrumentos alheios e querendo programa.

Eu sempre seco minhas mãos nas calças. Infelizmente, o molhado das pernas sugere outra coisa. A culpa desta vez não é minha.





Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 2/9/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17910

JAMÉ

O que o homem ainda não admitiu que jamais vai acontecer:

Jamais aproveitará os vinte minutos de tolerância do estacionamento do shopping durante compras com a esposa.

Jamais a mulher se contentará com a primeira roupa que experimentou.

Jamais acredite quando a mulher diz que não quer discutir.

Jamais confie quando ela avisa que está quase pronta.

Jamais leve a sério quando ela explica que não está acontecendo nada. Sempre acontece tudo na cabeça das mulheres.

Jamais questione se ela saiu da dieta.

Jamais dê bola quando ela anunciar que não irá mais beber tequila.

Pode tirar o cavalinho da chuva, do sol, da nevasca. Jamais vai acontecer.



Ouça meu comentário na manhã de terça-feira (2/9) na Rádio Gaúcha, programa Gaúcha Hoje, apresentado por Antonio Carlos Macedo e Jocimar Farina:

O ENIGMA DA BOLSA DAS MULHERES

Arte de Leonora Carrington

Homem carregando bolsa de mulher é cavalheirismo ou o cúmulo da submissão?

Eu fico sempre baratinado.

Costumo carregar a bolsa de minha esposa no shopping quando leva minha carteira e algum livro. Eu me vejo culpado pelo peso extra.

Mesmo quando não sou beneficiado diretamente, bate uma compaixão em vê-la se esforçar com os ombros. Ela trocará de braço a cada dois quilômetros na esteira das lojas.

Toda bolsa de mulher é uma mala sem rodinhas.

Mas tampouco entendo por que ela não faz uma limpeza pontual para aliviar o chumbo.

Não tem sentido dispor de um secador de cabelos, por exemplo, naquele passeio. Ou tem? Ou ela acredita que será disparado um alarme de incêndio acionando as mangueiras do teto em nossa cabeça? Será que ela pensa nisso (é de dar medo se prevê a vida com tanto engenho e longevidade)?

Não custaria nada, antes de sair, eliminar o que não é essencial.

E não é que ela esqueceu o que havia dentro da bolsa, mulher somente faz faxina na bolsa quando adquire uma bolsa nova.

Enquanto usa, acumula o mundo em suas profundezas de couro. É sua impressora 3D, imprime objetos na hora.

Não acho correto o trabalho masculino, pois ela poderia ter sido mais econômica. Deveria aprender a lição arcando com as consequências.

Até porque o homem que aceita transportar a bolsa da mulher não será valorizado por nenhuma estranha no caminho.

É muita submissão. Ele se apagará para ser um caddie – carregador de tacos de golfe.

Ninguém repara no caddie, apenas no golfista. O caddie desaparece nas corcovas do gramado.

Além da invisibilidade imediata para a concorrência, não nos vestimos para combinar com a bolsa dela. De repente, estaremos de azul marinho com uma bolsa marrom. É o fim da harmonia. Então, teríamos que mergulhar de vez na vassalagem e perguntar para a mulher qual bolsa pretende colocar para definirmos nosso figurino.

– Amor, tenho que me vestir, já escolheu a bolsa?

E também não é justo carregar algo em que não poderemos mexer. Jamais deixará que a gente pegue coisa alguma de dentro do seu conteúdo. Somos menores de idade diante de qualquer bolsa feminina.

Vejo que não permite a ação de nossa curiosidade para evitar o estresse dos interrogatórios. Questionaremos o motivo de ela estar com metade das tralhas. A conversa não desembocaria em nenhum acordo. O que é dispensável para o homem é fundamental para a mulher.

Entro em parafuso se é correto ou não fazer esta gentileza.

Seremos favorecidos, por outro lado, com o acervo surpreendente. A bolsa é um pequeno ambulatório, é um toalete ambulante, é uma oficina de costura.

Sem papel higiênico no banheiro, onde encontrará um rolo salvador? Na bolsa dela!

Na primeira pontada de uma enxaqueca, onde encontrará o medicamento redentor? Na bolsa dela!

Descosturou a camisa, onde achará linha e agulha? Na bolsa dela!

Somando os prós e os contras, o problema existencial resultará num empate.

Como voto de minerva, sugiro não carregar a bolsa, porém realizar um curso de massagem para aliviar as dores nas costas de sua esposa.

Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  31/8/2014 Edição N°17908