segunda-feira, 31 de outubro de 2016

NO TEMPO EM QUE TODOS ESTAVAM VIVOS

O aniversário nunca será na fase adulta como na infância. Não haverá mais a longa véspera da meia-noite, entre dormindo e acordado, naquela vigília pelo presente. Não haverá mais o lar em completa algazarra por uma única pessoa: você no centro do mundo, uma pessoinha de pálpebras rápidas, piscando diante da mãe preparando a panela de brigadeiro, as forminhas de salgados e cuidando para o
bolo não afundar acendendo e apagando a lâmpada do forno. Não haverá mais a estranha exclusividade de provar qualquer doce antes do almoço.

Um exército de mãos rompe a rotina para dar conta das atividades domésticas acrescida de novidade de seu aniversário.

E não é obrigado a fazer nada, a não ser assistir ao espetáculo de seu nascimento a ser repetido fora do ventre. Os irmãos não lhe machucam, não implicam, oferecem um indulto abençoado de gracejos. Colegas lhe tratam bem e com respeito, existe uma veneração de brilho, tios e tias mexem em seu cabelo, roubam beijos, brincam com a demarcação de sua breve existência com a marionete dos dedos.

Você só tem que apenas esperar uma surpresa depois da escola denunciada em cada riso da família. Não passou por nenhuma dor e separação para estragar a alegria, nenhuma cadeira estará vaga pela morte ao redor da mesa. Os avós estão ainda vivos e vêm de longe com suas malas xadrez do interior e pacotes improvisados longe das lojas.

A memória não é maior que a imaginação. Desperta da cama, como se fosse um sapato de couro envolvido em papel seda dentro de uma caixinha. Você colocará chapeuzinho cônico, com o elástico apertando o queixo imberbe. Soprará as velas com a ajuda dos outros, o melhor aniversário é do tempo em que não tem força no pulmão para apagar a chama da vida.

Assim que você cresce, a festa é um fingimento – um alegre fingimento, mas fingimento –, enfrentará o trabalho de convidar os amigos e de negociar os presentes, sofrerá com alguma perda e gafe. Precisará receber os convidados e não poderá parar um minuto de servir e ver se se todos estão felizes, comendo e bebendo.

Acabou a comemoração inconsciente, acabou a sensação de medo bobo, acabou o olhar guloso ao teto repleto de balões coloridos para definir qual deles levará para voar dentro do quarto.

Quando crescemos, os aniversários são solitários mesmo de casa cheia. Casado ou solteiro, ficará responsável pela sua alegria. Ninguém mais aplacará a expectativa e resolverá a carência. Persistirá a consciência de que estamos envelhecendo mais do que inaugurando uma idade.

Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
30.10.2016
Coluna Semanal

sábado, 29 de outubro de 2016

JAMAIS


Quem já não cometeu pequenas e patéticas infrações na relação? Como roubar a gilete rosa da esposa, que ela usa para depilar no banho, para corrigir aquele fio solto da barba. Precisa abolir o pelo de qualquer jeito, no desespero do horário, e não há como comprar um aparelho novo. Ou alguém que furtou a escova de dente ou pegou o troco na carteira do outro sem avisar, sob alegação de que depois devolveria. Ou roubou um doce fingindo que desconhecia a importância. Quem? São naturais delitos do amor, absolutamente perdoáveis. Não partem da zona escura da personalidade. Não interferem no curso do romance. São molecagens, travessuras, implicâncias.

O que bate de frente é a agressão silenciosa. Quem esconde o punho na hipocrisia, quem finge generosidade no beijo e cospe sua agressividade em segredo.

Até perdoo a deslealdade, até perdoo a mentira. O que não abençoo com a desculpa é quem maltrata animal. Aquele que não tem câmera dentro de si para se entregar à consciência. Aquele que, por alguns minutos sozinho, tortura bichos em situação de fragilidade. Aquele que, enquanto não é visto, chuta as pernas do cachorro ou arremessa o gato na parede e depois segue normalmente com as suas tarefas no trabalho, como se nada tivesse acontecido.

Tenho certeza que o agressor de bichos também é capaz de apertar os braços de um bebê ou insultar um idoso com amnésia. Não há limites na degradação moral. Algo da devastação fica na memória. O sangue não se esvai pelo ralo com a mesma rapidez da água.

Não suporto quem se aproveita da impossibilidade da denúncia para abusar da violência. Explora a superioridade para elaborar  maldades. Não guarda um mínimo de culpa e de compaixão para recuar em seus ataques.

Disfarça-se de cuidador para ter controle dos fatos e aterrorizar progressivamente as suas vítimas. Covardemente, desconta a sua raiva em seres vulneráveis, sem condições de se defender e relatar os atentados.

Mesmo que seja uma agressão repentina: um chute, um soco, um empurrão. A duração do ato não diminui a sua gravidade. Ali ele enterrou a sua fé, ali ele se recolheu ao território da impunidade e renunciou a decência e o caráter de uma vez por todas.

Não darei jamais o meu perdão aos monstros domésticos, afáveis na aparência e boçais na solidão dos gestos.

Eles acreditam que não serão castigados. Juram que os bichos são somente bichos e, se não há céu para eles, tampouco haverá inferno para os seus agressores.

Mal sabem da verdade. Um gato sofrendo não mia, um cachorro sofrendo não late,  na dor ambos são crianças e gemem humanamente.

Publicado no Jornal O Globo - Blog
28.10.2016
Coluna Semanal

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

COITADO DO HULK



Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi


Não leve a musculação a sério. É extremamente caro. Só o que posso recomendar aos espíritos marombeiros.

Eu não percebi o tamanho do prejuízo. Mais barato antes quando eu pagava três meses adiantado de academia e desistia nos primeiros trinta dias. Mais simples. Mais econômico. Mais prático.

E nem estou mencionando o que gastei com vitaminas, proteínas e transformando radicalmente a alimentação. Nem me refiro aos trajes esportivos, sempre onerosos  e com malhas tecnológicas de transpiração.

Fui leviano de fazer musculação com disciplina e rigor, além das aparências e das postagens nas redes sociais. Deveria ter fingido que estava matriculado e de personalidade mudada, como todos os machos quando começam a namorar.

Investi um longo tempo dedicado a acordar cedo e me exercitar em horários ingratos, como 6h e 23h, ao lado da minha personal Raquel. Eu segui com os halteres, cordas e máquinas por um ano.

O que aconteceu? Melhorei de vida? Não!

Perdi inteiramente as minhas roupas. Um armário inteiro foi desperdiçado: ternos não fecham mais os seus botões, camisetas estouraram nos ombros, calças estrangularam a cintura. Fiquei absolutamente sem figurino, um Hulk pálido e careca. Peças de grife, fashion, caríssimas, únicas e exclusivas, não entram mais em meu tamanho. Tudo posto a pique. É o equivalente  a extraviar várias malas em uma viagem internacional. É como se sofresse um incêndio devastador no quarto. Somente os sapatos ainda me servem, testemunhas de um tempo em que era M e esbanjava opções para sair a trabalhar.

Sou condenado a usar pouquíssimas variações e pedir roupa nos próximos aniversários, natais e datas comemorativas – o que é um contra-senso diante da oferta de presente criativos que há no mundo.

Nunca fui tão comum e desfalcado de criatividade para me vestir.

Quem permanece feliz com o gradual despertencimento do meu corpo é o filho Vicente, de 14 anos, herdeiro direto da maior parte do guarda-roupa.

E não desfruto nem da vantagem do fisiculturismo. Como diz o mano José Klein, é largar a academia e todos elogiam que você emagreceu, é encarnar na academia e todos comentam que você engordou.

Nunca tantas pessoas acariciaram a minha barriga destacando o sobrepeso e recomendando regime.

Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
26.10.2016

terça-feira, 25 de outubro de 2016

CAFEZINHO

Café é emoção. Café é a lembrança dos melhores dias da convivência com os pais e irmãos, é herdar hábitos, é carregar princípios. Os dias mais duros de qualquer vida tiveram o consolo de um café. Os dias mais alegres de qualquer vida tiveram a recompensa de um café.

No gole de um café, existe uma correnteza de cenas de amizade, de ternura, de conselhos, de apoio e de juramentos.

Café lembra receber visita, casa cheia, sobremesa.  Café estende o tempo para um pouquinho mais tarde.

Café engana os horários, os prazos, os compromissos. Ainda mais se é um cafezinho. Ele se faz de pequeno e inofensivo para deixar as emoções ainda maiores.

Ninguém é capaz de negar um cafezinho. A oferta, o carinho, a amizade de um cafezinho. O cafezinho é como um abraço, é como um aperto de mão, não se diz não. É um crime dizer não. É uma ofensa dizer não. Oferecer cafezinho é avisar: eu gosto de você. Oferecer cafezinho é avisar: eu fui com a sua cara.

O cafezinho é sempre sinal de que a conversa vai continuar, de que o almoço não acabou, de que ainda é cedo para se despedir. O cafezinho é a saideira dos amigos à luz do sol, a saideira dos sóbrios.

Já a cafeteira faz barulho porque chama a fome. Tem o apito de uma chaleira dentro de si para chamar a fome. O café chama bolacha-maria. Quem não fui criança para mergulhar a imensa bolacha no café? O café chama pão aquecido. Quem não foi adolescente para sujar a asa da xícara com manteiga? O café chama chocolate. Quem não se apaixonou para dar o pequeno acompanhamento para a sua namorada, mesmo louco para comer?

O primeiro encontro não será um chopp, um cinema, uma balada, um jantar, mas um café: "Vamos tomar um café?" O convite é despretensioso e não assusta, é um convite entre a amizade e a sedução, entre a educação e o envolvimento.

Tudo pode acontecer quando se toma um café junto: casamento começa com o café, filhos tem a sua linha de tempo iniciada com o café.

O café é a porta das primeiras palavras. É a janela das primeiras juras. É o primeiro passo da boca para o beijo. Quantos firmaram uma relação com o sabor de café nos lábios? Não o sabor de quem está sonhando, o sabor de quem finalmente acordou para a vida de alguém.

A intimidade surge ao descobrir o modo que cada um pede o seu café. Com leite, curto, longo, forte, fraco. É a primeira informação que se descobre do outro e que se prolonga pela vida inteira.

Casais que se amam medem o tempo de convivência por colherinhas. Um sabe do outro exatamente quantas colheres de açúcar precisa. Ou quantas gotas de adoçante.

Eu reverencio o amor quando a esposa serve o marido e o marido serve a esposa e ambos não perguntam quantas colheres ou gotas pôr. Conhecem de cor.

Eu reverencio a rotina, que nunca é repetir o que não se gosta, mas repetir todo o dia o que se gosta muito.

Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
25.10.2016

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

LONGEVIDADE DO AMOR

Sempre que duas casadas se encontram disputam quem está mais tempo com o seu par. Existe uma concorrência pelo troféu moral.

Elas nem percebem a mania, é um cacoete involuntário, como coçar os olhos diante do sono.

Fui visitar o ateliê da estilista Solaine Piccoli, que vem confeccionando o vestido de noiva da minha mulher.

Proibido de espiar os movimentos no provador pela superstição da cerimônia, puxei conversa à toa e perguntei quanto tempo ela tinha de casada. Solaine encheu a boca: 43 anos juntinho de Ernani.

Cândida, a sua assessora, se sentiu ofendida com a realeza da amiga e atalhou:

– Eu estou casada há 39 anos, mas namoro o meu marido há 44. Se é por isso vou completar bodas de rubi no ano que vem.

Solaine não se deu por vencida:

– Mas, se é por namoro, eu estou há 49 anos com Ernani e completarei bodas de ouro.

Só eu devo ter visto Cândida bufando de raiva. Buscou disfarçar a contrariedade e logo emendou:

– Mas eu conheço de vista o meu marido há 51 anos. Amizade também conta, não?

– Pode contar, como quiser. Daí tenho 60 anos de amor à primeira vista e comemoro bodas de diamante – replicou Solaine.

A partir de uma pergunta banal, fui exposto a um coliseu de leoas famintas pela posteridade romântica. Pretendiam ganhar o título de maior longevidade no amor. Não aceitavam a proximidade da adversária.

Para assinalar a vitória da intimidade, usavam qualquer indício remoto de antiguidade dos laços com os seus homens, desde aceno a esbarrão na rua.

As amigas colocavam a cumplicidade em risco. Gritavam, esperneavam, batiam na mesa. No calor da discussão, jogavam pesado, dispostas a desclassificar a rival questionando separações em algum período e somando finais de semana longe.

Não entendia absolutamente nada. Ambas atingiam seis décadas e uns quebrados de convivência com os seus maridos naquela conversa, apelando para os mais platônicos sinais, e eu não conseguia fechar as contas. Não aparentavam, cada uma delas, mais de 50 anos de idade. Já eram mais casadas do que nascidas.

Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna  Semanal
23.10.2016

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

RIFAS DO AMOR



Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perin

Casamento não é recompensa. Você não pode fazer ou deixar de fazer por aquilo que o outro oferece. Moldar-se pelas gratificações cria o inferno das frustrações. Quem realiza uma gentileza para ser beneficiado sofrerá na hora de agir e também durante a espera. A contrariedade do gesto - ter uma vantagem em
vista - aumenta posteriormente a cobrança.

O que existe de gente que apaga o seu temperamento na relação quando não recebe o equivalente em troca. Se era amoroso, para de ser diante do laconismo de seu par. Se era alegre e cantante, para de ser em função da rabugice do seu par. Se servia café na cama, suspende a regalia quando não tem retribuição. Se largava bilhetinhos derramados pela casa, economizará  papel e caneta na ausência de resposta.

Não devemos nos submeter a causa-efeito. Talvez o comportamento dependente de troféus e estímulos venha da infância. Os pais nos condicionam a cumprir as tarefas mais prosaicas com algum brinde: come tudo no prato que tem direito a sobremesa, arrume o quarto e pode sair com os amigos, acabe os temas da escola e ficará liberado para jogar PlayStation. O risco é carregar as promissórias em aberto para a vida adulta e não se desvincular dos incentivos familiares.

A necessidade de lucrar emocionalmente apaga a espontaneidade dos laços. Os primeiros meses da relação são perfeitos porque a fatura ainda não fechou. É se enxergar sozinho na oferta e desencadeia a avareza e as queixas.

Aquele que é romântico de olho no paparico em seguida não é verdadeiramente romântico - é oportunista. Aquele que cozinha para depois não se mexer no sofá está investindo em seu egoísmo.

Ou você gosta de amar, independente do resultado, ou a sua felicidade será sempre emprestada.

Publicado no Jornal O Globo - Blog
Coluna Semanal
21.10.2016

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

VIZINHOS NO OLHO MÁGICO



Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi

Eu via na minha infância moradores pedindo um pouco de açúcar, de sal, de arroz e de café emprestado para os vizinhos. Natural a convivência harmoniosa na urgência. Chegava uma visita de imprevisto e não se tinha tempo para a solenidade de sair e dar um pulo no mercado. Batia-se na porta ao lado com roupas improvisadas e dificilmente alguém recebia um não.

Com a insegurança atual, o máximo que testemunho na minha vida adulta é vizinho gritando para baixar a música, chamando a polícia ou denunciando os outros nas reuniões de condomínio.

Fui surpreendido por um momento de delicadeza e de poesia em Belo Horizonte. É uma cidade que ainda acredita na generosidade do bairro. Minha mulher é mineira e passamos alguns finais de semana na capital. Estávamos tomando café da manhã no sábado quando a campainha de nosso apartamento toca. Espio pelo olho mágico e não reconheço a figura, mas Beatriz sabe quem é. Eu já me encontrava receoso e mal acostumado, tanto que tratei de criticar e expelir o veneno pela boca:

- Quem veio nos incomodar e estragar a paz do final de semana?

Por sua vez, a esposa soprou as nuvens negras rodeando a minha falta de cabelos e se antecipou com sua presença calma e mansa:

- Como posso ajudar, querida?

Uma senhora do apartamento dois andares acima vinha solicitar um abajur emprestado. Não se tratava nem de uma caneca de comida, mas de uma luminária, já que precisava de uma luz mais forte para estudar a Bíblia.

- Desculpe incomodar, meu abajur quebrou, você tem como me emprestar por hoje?

Beatriz não estranhou o pedido. Nem hostilizou a necessidade. Foi ao quarto e, imediatamente, trouxe o objeto. Entregou com um despojamento bonito.

- Não tenha pressa de devolver.

Eu ainda me sentia irritado com a cara-de-pau da vizinhança e desconfiado com o destino do empréstimo. Não quis me meter no assunto, mesmo achando muita ingenuidade por parte de minha mulher. Logo mais estariam pedindo emprestado o sofá, as cortinas, a máquina de lavar, as cadeiras, o fogão, a geladeira… Não teria fim a ciranda de favores.

Não é que no dia seguinte a vizinha volta com o abajur e mais um vaso de orquídeas para retribuir a gentileza.

Olho agora para a flor no centro da mesa e ligo a lâmpada de seu perfume em meu rosto e me arrependo de pensar e desejar o pior. Só a confiança é perfumada.


Publicado no site Vida Breve
Coluna semanal
19/10

DA PAIXÃO AO DESENCANTO

O Uber e Porto Alegre é um típico caso de paixão que não vem vingando depois que a relação  ficou séria no facebook.

Sabe aquele namorado
que faz tudo durante os três primeiros meses para conquistar e logo retira os agrados assim que passa a morar junto?

Quem não conhece esta história? No princípio é o homem dos sonhos, para casar e ter filhos. Compra flores, puxa a cadeira, esbanja educação e paciência, presenteia a sogra, arruma jantar com vinho e luz de velas, prepara surpresas e espalha declarações pelos cantos secretos da convivência. É começar a namorar e sentir que conquistou definitivamente a pessoa que a performance some e surge o ogro monossilábico, egoísta, desprovido de comoção e gentileza.

O Uber foi assim na capital gaúcha:  prometeu mundos e fundos no começo apaixonado e perdeu o interesse quando a convivência normalizou. A sensação é que desejava sexo e fingiu que amava. Cometeu uma descarada propaganda enganosa.

No início, há três meses, era somente Uberblack, carros de quatro portas e bancos de couro. Não era um motorista, mas um chofer tamanho o cuidado com a aparência. Cavalheiro, comedido, trabalhava de terno e saia do seu lugar para receber o cliente.

Só vinha carrão como Sedan, Toyota Corolla, Honda Civic, Azera e Sonata. Apesar do luxo e do conforto, os preços acabavam sendo mais baratos do que o táxi. Não havia como não se maravilhar e não disseminar o serviço adiante.

Hoje o que aparece no Uber (conhecido como UberX) é
Ford Ka, Fiat Palio, Renault Clio e Gol, carro apertado que você vacilaria em entrar até para tomar carona. Os motoristas estão vestidos de qualquer jeito, alguns vem de bermuda. Pararam de oferecer balas e água. Já vi veículo chegar todo adesivado com Herbalife. Alguns surgem com cinto frouxo e ar-condicionado pifado. A rapidez de atendimento, de no máximo cinco minutos, decaiu, motorista aceita nova corrida quando nem finalizou a anterior. De semelhança com o período de estreia, apenas a voz feminina do Waze.

E, para piorar, inventou-se a tarifa dinâmica, onde a corrida, dependendo da procura, pode sair três vezes maior do que o valor normal. É uma roleta russa, não tem como prever quando vai pipocar em seu aplicativo. Desse jeito, uma viagem do bairro Petrópolis ao aeroporto que custaria 27 reais em um táxi é 37 reais pelo Uber.

Acho que o Uber acredita que o porto-alegrense é um otário e que não notou o fim do romance. A tendência é voltar para o antigo relacionamento.

Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
18/10

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

DEIXAR PARA DEPOIS



No casamento, você sempre deixa para depois. Acredita que a pessoa mais importante de sua vida pode esperar, já que dorme e acorda ao lado dela todo dia, já que ela vai entender os seus contratempos.

Atende primeiramente os estranhos do trabalho, agrada aos desconhecidos das redes sociais, está preocupado como os demais lhe enxergam mais do que como realmente é entre quatro paredes. Casamento torna-se adiamento. Aquele bilhete não é tão urgente, aquela conversa de pacificação é empurrada para o futuro, aquele final de semana enamorado não é prioritário.

Só na separação é que agimos. Para resgatar uma paixão, somos capazes de aprender a cozinhar, aprender a dançar, aprender a faxinar.

Com o casamento, desaprendemos a cozinhar, a dançar, a faxinar. Guardamos o fôlego adormecendo cedo, poupamos as palavras não descrevendo os nossos dias, existimos menos dentro de casa, desistimos rapidamente da gentileza pela informalidade. Não podemos gastar com o supérfluo. Supérfluo é o que envolve o próximo. A avareza cresce disfarçada de economia.

Na reconquista, não dispensamos trabalho, madrugamos, viajamos continentes dentro do quarto, pedimos dinheiro emprestado para socorrer o tempo perdido com a distância.

A verdade é que fazemos tudo errado até perder aquilo que era certo.

Só amamos sofrendo. Só amamos quando o outro nos abandona, quando o outro se cansa, quando o outro se despede.

Só procuramos as janelas quando a porta fecha, só nos importamos com os detalhes quando o conjunto desaparece.

Só amamos na contrariedade, para provar que ainda prestamos.

Só amamos com o orgulho ferido, quando somos testados.

Só amamos com a desilusão, quando somos contestados.

Só amamos com a recusa, quando somos condicionados a nos esforçar para reaver a confiança.

Só amamos com o chicote da indiferença nas costas, apanhando das expectativas.

Infelizmente valorizamos mais a saudade do que a proximidade.

Banalizamos o corpo, apenas respeitamos a ausência, que é correr atrás para ter de volta a vida passada.

Somos encarnações arrependidas de matar o amor de tédio.

Para ser feliz a dois, é necessário combater a facilidade e não se conformar nunca com a disponibilidade do beijo, do toque e do abraço.

Intimidade é jamais desistir de perguntar, não é pensar que já conheceu inteiramente alguém. As respostas mudam conforme a esperança.

Publicado no Jornal Zero Hora - Caderno Donna
Coluna Semanal
16.10.2016

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

PRESENTE ÚTIL



Texto Fabrício Carpinejar
Foto Gilberto Perim

Farei 44 anos no domingo dia 23. Já estou maduro, entrei na fase do presente útil. Findou a infância da comemoração, a exigência por festas e os laços dos pacotes.

Promovo campanha para que os amigos e familiares não desperdicem os seus recursos e me dêem algo que eu realmente precise. Nem precisa embrulhar.

Escrevo uma lista objetiva do que me falta. Sopro as respostas. Não nego as intenções.

Não ambiciono o lucro imaginário - pois quem não pede coisa alguma deseja tudo. Não professo falsa humildade - pelo menos, a minha arrogância é verdadeira.

Sou capaz de encomendar um sapato e indicar o site de menor preço, coisa impensável nos aniversários anteriores, onde eu queria ser surpreendido e não me inferiorizava a oferecer dicas e sugestões.

Eu me alegro ao preencher as minhas urgências. Antes exultava com as extravagâncias.

Abandonei a vitrine pelo fundo da loja. Os sonhos de consumo foram substituídos pela partilha miúda do cotidiano. Viabilizar o final do mês sem gastos extras soa melhor em minha vida do que acumular fantasias.

É bem mentalidade de velho, logo admitirei a impessoalidade de depósitos bancários.

Sou ecumênico nas necessidades. Tampouco desdenho eletrodomésticos e panelas que fariam qualquer mulher a entrar com a Maria da Penha. Virei realista. Está mesmo na hora de trocar o liquidificador.

Quando criança, o tormento era receber roupas, o anticlímax da festa. Roupa não poderia ser considerada presente até os 11 anos. Presente se resumia a brinquedo, e nada mais.

Roupa não mais me inspira ingratidão. Atualmente sou favorável a renovar as gavetas e cabides.

Só não me compre pijama,  amadureci mas não estou morto.

Publicado no Jornal O Globo - Blog

Coluna Semanal

13.10.2016

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

DUVIDO




Texto Fabrício Carpinejar
Imagem Eduardo Nasi


Sou o guri do duvido. Se alguém me desafiava na infância: duvido que você pule no rio, então eu pulava. Ou duvido que você quebre uma vidraça, então eu quebrava. Ou duvido que você caminhe na ponte balançando, então eu corria entre as tábuas soltas. Ou duvido que suba na árvore, então eu subia. Ou duvido que você dê em cima daquela menina, então eu ia. Poderia me arrebentar, me espatifar, ser humilhado, mas não recuava diante das provocações. Assim como existe a “Maria vai com as outras”, eu era o “Zé não vai com os outros”.

Não recuava quando encarado com uma negativa. Os amigos adoravam os shows gratuitos de tenacidade. Fui dublê de mim mesmo. Nadava contra a corrente, pedalava em tempestades, enfrentava riscos à toa para manter a fama de durão e não desperdiçar a firmeza da promessa.

Não previa os danos, eu me cegava de raiva e me atirava no calor das casualidades. Segurei na barra de fora do ônibus, surfei ondas proibidas, ri de medo do destino.

Minha bravura sempre foi induzida, multiplicada na oposição.

As decisões vinham das provocações mais do que da própria vontade. Eu me irritava com quem oferecia desdém e pouco caso da minha capacidade e vivia provando a força.

Nem é possível calcular o que realmente fiz em minha vida espontaneamente. Amores foram dobrados, amizades foram testadas, metade dos meus porres seguiu o tom de que não iria conseguir, assumi  castigos insuflados pelos irmãos e suspensões na escola para satisfazer quimeras dos colegas. Sou um animal da recusa.

Não duvido de que a minha coragem seja apenas orgulho.

Publicado no Portal Vida Breve
Coluna Semanal
12.10.2016

terça-feira, 11 de outubro de 2016

ISTO NÃO É UM OBITUÁRIO

Eu amava Paulo Sant'Ana, este homem que me ensinou a ler o jornal pela última página.

Eu amava este sujeito passional, intenso, febril, que escreveu uma coluna por dia, de segunda a domingo, durante trinta anos - nenhum outro cronista conseguiu proeza igual.

Eu amava este articulista, que usava palavras pomposas, mas não perdia o apelo popular. Seus textos chapinhavam no dicionário. A primeira vez que li claudicante foi em uma crônica dele e quase morri engasgado com este vocábulo pois estava longe de casa para desvendar o seu significado.

Fui descobrir que Paulo Sant`Ana não era claudicante.

Eu amava aquele rosto teimoso, que persistia em fumar contrariando diagnósticos, câncer e derrames.

Eu amava a sua megalomania na alegria e a sua humildade carente no sofrimento.

Eu amava a sua intuição de que a comida que mais apreciamos é a experimentada na infância, por mais que sejamos sofisticados e refinados com o tempo.

Eu amava as suas descrições futebolísticas e paranoicas, a grandiloquência do coliseu da bola, mesmo eu sendo colorado.

Eu amava a sua coragem de ser profeta e assumir as suas opiniões apesar de nem sempre ganhar as apostas.

Eu amava as suas histórias de infância em Tapes, os seus banhos no tanque de pedra em meio aos cartuchos vencidos de balas, ou as suas reminiscências do início da vida urbana, do bonde-centopeia sacolejando pela Duque de Caxias, com o cobrador tirando o bilhete de 180 pessoas entrando e descendo.

Eu amava a coincidência de seu nascimento em 1939, ano dos meus pais e do restaurante Copacabana, que todos frequentávamos.

Eu amava Paulo Sant’ Ana, ele comprava as piores brigas no Sala de Redação em nome da verdade e depois a verdade mudava de lado e ele ficava sozinho até convencer a verdade a voltar para a sua boca.

Eu amava este gênio idiota, que encontrava coerência na alucinação e foi eternamente o mais lido e o mais ouvido e o mais comentado no Rio Grande do Sul somente pela beleza extravagante e carismática de suas ideias.

Eu amava a sua noção de que há ainda prazer em chorar, quem chora tem o prazer das lágrimas, triste é a dor seca, sem nada para desaguar.

Eu amava a saudade que ele pronunciava com vagar, saudade com gosto de sanduiche de pernil do antigo bar Matheus.

Eu amava as suas frases absolutas, peremptórias, como a que poderia viver longe dos amores, porém nunca longe dos amigos.

Eu amava o seu destino de Google, antes da internet existir.

Eu amava as suas façanhas como a de dividir o palco com Julio Iglesias e aguentar a língua do famoso cantor passeando em sua orelha diante de um Beira-Rio lotado.

Eu amava Paulo Sant’ Ana, um Nelson Rodrigues longe do mar.

Eu amava Paulo Sant’ Ana, ele próprio se imitava perfeitamente e ninguém desconfiava que ele era diferente a cada manhã.

Eu amava Paulo Sant’Ana já que prendia a minha atenção no Jornal do Almoço apenas fazendo pausas e bocas. Era uma máquina de escrever expelindo a lauda branca e escrita dos olhos.

Eu amava Paulo Sant'Ana, ele mantinha uma reserva educada e civilizada de inimigos. Não se pode ser grande na vida sem oposição.

Eu amava Paulo Sant’Ana, que transformava Porto Alegre na capital dos acontecimentos de sua alma.

Eu amo Paulo Sant`Ana porque ele não precisa morrer para receber homenagem. E jamais será assassinado pelo esquecimento.

Publicado em Zero Hora
Coluna Semanal
11.10.2016

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

SINDICALISMO DO AMOR


Quem cobra perde a razão, essa é a parte triste do amor. Aquele que não está recebendo atenção, deixado de lado, passa a reclamar incessantemente e começa a ser o chato da relação. Encarna a obsessão do grevista, da passeata, do protesto. Interrompe o trânsito das palavras para defender o seu ponto de vista.

Sacrifica a espontaneidade para salvar a vida a dois. Não gostaria de estar resmungando, mas a passividade e a indiferença só vêm piorando as condições de convivência. Não tem o que fazer. Ou é gritar contra a rotina ou é se conformar com a infelicidade

Tornou-se o sindicalista da emoção, a CUT da emoção. Acabou a paz da confiança, o que se escuta é buzinada e megafone na cama. Fala diante de qualquer gesto que frusta a sua expectativa. Pede reajuste sexual e de ânimo e não se envergonha de se expor ao risco da demissão.

Da mesma forma que é legítima a luta pela reforma agrária do coração, ela também inviabiliza o andamento natural da casa. As ladainhas provocam um mal-estar de permanente rivalidade. Tudo é motivo para DR. Ou é ausência de opinião ou é egoísmo. Ou é uma fala torta ou é falta de mensagens. As insatisfações não têm trégua. O lado ofendido só redunda o pessimismo e estabelece uma comparação injusta com a época de apaixonado.

É como um jogo de futebol que para a todo momento, cheio de faltas e cartões. Não há mais emoção da torcida e os gritos de apoio – mas somente vaias e ameaças. Fazer as malas vem à tona com o cansaço dos debates e tensiona o futuro.

Dificilmente o relacionamento amadurecerá e ganhará viço. É um caminho sem volta. O sindicalismo sentimental não costuma vencer as suas batalhas. A outra parte fica desprovida de margem de manobra para errar e se isola, acuada e agressiva, no orgulho ferido. Não tem tempo de corrigir o comportamento, pois vai responder um problema e é lembrado de um novo.

Já não dá para discernir se quem protesta realmente espera dias melhores e uma conversão súbita ou deseja somente provar que a sua companhia não presta e que não vale a pena insistir.O ideal é alternar momentos de reivindicação e de incentivo, revezar as críticas com as juras, e não banalizar as cobranças e profissionalizar a dissidência. Não é possível se recuperar sob pressão. A angústia mata a criatividade do amor.

Coluna Semanal
Jornal Zero Hora - Caderno Donna
09.10.2016

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

FÁCIL SE SEPARAR, DIFÍCIL VOLTAR



Texto Fabrício Carpinejar
Imagem Gilberto Perin

Você se separa por pouco e só volta por muito.

A ruptura aconteceu por uma bobagem, já a reconciliação invoca sérias mudanças.

Se a distância surge por um troco, retomar a proximidade pressupõe uma fortuna.

Excluindo a separação pelas razões radicais de infidelidade e incompatibilidade, ela tende a ser desencadeada por nada: uma diferença que transbordou ou uma grosseira fora de hora. O estopim das crises vem de pretextos bobos, ou é o lixo que não foi levado, ou é a louça que não foi lavada, ou é um ciúme gratuito. Ninguém se separa por grandes causas, em defesa de um plano educacional ou em nome da reforma agrária. A separação é deflagrada por motivos banais e egoístas, não emerge de conflitos ideológicos e argumentações generosas a favor da coletividade.

Por sua vez, o retorno vira uma epopeia, ninguém aceita o outro de volta facilmente.

Se quebrou os pratos porque recusou gastar em um pulo à serra agora o ressarcimento da união  depende de uma viagem internacional.

É simples se separar e é extremamente difícil voltar. A separação é barata, a reconciliação é cara.

Do grito de nunca mais à súplica por mais uma chance, migrará da avareza ao endividamento.

Para resolver as discussões de relacionamento, bastava atender a uma mera lista de supermercado. Após o término receberá uma lista de exigências de sequestrador.

Para a reconciliação, você precisa fazer em um dia o que não fez durante toda a relação. Não é somente corrigir o que originou a discussão, fica condicionado a cumprir o que gerava silenciosa insatisfação na companhia. O suave retoque e as rápidas aparas no temperamento cobrados anteriormente não servem mais, resgatará o status mediante uma completa cirurgia plástica na personalidade.

Na briga, é se desculpar que os laços são refeitos. Na reconciliação, não é somente verbalizar o perdão, você será  testado e humilhado, condenado a provar o efeito das palavras em atitudes e gestos em longo período de experiência.

Ou seja, para obter o reato você perdeu absolutamente tudo o que conquistou e mais um pouco. Não está na estaca zero, mas no negativo, arcando com juros abusivos.

Na hipótese de sair de casa por um desentendimento na programação de sábado, para recuperar o amor, será obrigado a largar o futebol de terça e o chopp com amigos na quinta, que não tinham nenhuma conexão com a pendenga. Retornará para a residência mais pobre moralmente e com menos autoridade do que quando partiu. Assumirá privações para liquidar a saudade e aceitará concessões impensáveis para convencer que o fim não irá se repetir.

Se você se separou porque não queria assumir o namoro, apenas conseguirá a mulher de novo ao pedi-la em casamento.

Pense duas vezes antes de se separar para não pagar quatro vezes mais a volta.

Publicado no blog do Jornal O Globo
Coluna Semanal
07.10.2016

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

SEGREDO ENTRE DEUS E O HOMEM



Texto Fabrício Carpinejar
Arte Eduardo Nasi

Raramente você atravessará a encarnação sem experimentar amor, a amizade, a esperança e o ódio. Mas pode morrer sem nunca conhecer a misericórdia.

A misericórdia não é racional, extrapola a lógica e a balança dos pensamentos coloquiais entre o certo e o errado.

A misericórdia é oferecer chance para quem não merece, é alcançar o perdão para quem recusou a penitência, é emprestar coragem a um covarde, é carregar alguém nas costas do inferno ao paraíso.

Não ser capaz da misericórdia é humano. Não tem nada de errado. Pois Deus criou algo realmente incompreensível, inaceitável e perigoso dentro do coração.

Não confunda misericórdia com complacência. Não significa ceder, porém apoiar na mais completa adversidade.

Assim como é fácil a remissão após longo tempo ou no momento em que os acontecimentos esfriam. Misericórdia mesmo unicamente tem sentido quando o sangue está quente e a raiva recente de seus ressentimentos.

Misericórdia é um suspiro no interior de um soluço, é uma lágrima que molha as palavras da boca. Não tem como entender. Às vezes não há como aceitar. Estraga a sociedade e a convivência, desfaz a hierarquia dos pecados e o entendimento da redenção pelo esforço.

Misericórdia abole o julgamento, cria exceções insuportáveis, mima a maldade. É um apoio sumário, sem aguardar contrapartida e recompensas.

Só será feita por quem tem estômago forte, caráter transcendente e pulso firme. Os fracos não aguentam os revezes da culpa.

Misericórdia é quando um sobrevivente do holocausto desculpa um nazista, é quando uma mãe não se vinga do assassino de seu filho, é quando a vítima da violência se solidariza com as condições do agressor.

Misericórdia é quando você tem todos os motivos para perder a fé e, estranhamente, reforça os votos de crença na vida.

Publicado no portal Vida Breve
Coluna Semanal
05.10.2016

terça-feira, 4 de outubro de 2016

SOMOS A PRÓPRIA CASA

A casa reproduz a nossa insatisfação. Nunca estamos plenamente felizes. Sempre existe algo por fazer, uma chance de colorir a planta original.

Você pode ter amplos espaços, mas não contar com garagem. Ou você pode ter quartos gigantescos e um banheiro apertado.

Existirá um limitador, um ponto fraco, um defeito que baixará o valor do imóvel. Há apartamentos majestosos sem paisagem nenhuma, por sua vez há quitinetes de envesgar o proprietário com belezas transbordando das janelas.  Já vi apartamentos encravados em encantadoras áreas verdes, porém também ameaçados pelo deslizamento. Mesmo as mansões desfrutam de contrariedades, ou são muito longe ou excessivamente protegidas e afastadas do aeroporto.

Algo dentro da casa não corresponderá as expectativas, só que termina compensada pelo resto. Assim como você deixa passar um traço falho em sua personalidade em nome do conjunto.

A casa é um jeito de aceitar a imperfeição e de conviver com os defeitos.

Ou você pode melhorar o apartamento para vender ou pode melhorar o apartamento para morar melhor - e isso já expõe a sua visão de mundo. Ou você pode ter um lugarzinho apenas para dormir ou pode cultivar a solidão com o capricho das estantes e plantas.

Sou a minha casa, de algum jeito. Faz sentido. A cozinha é pequena e colada na área de serviço, traduz a minha inabilidade com as panelas. Queria desfrutar de uma estrutura de chef e um mundaréu de panelas nas paredes, mas me resignei a um espaço absolutamente funcional. Por incrível que pareça, os amigos farejam o meu ponto fraco e preferem ocupar a estreita cozinha durante as festas. Nem reclamo, nem mais mando o povo sair.

Já a sala, em nítida oposição, é um estaleiro. Revela a minha intensa sociabilidade e a alegria de anfitrião. Evidente que gosto do enfrentamento e dos longos debates, simbolizado pelos sofás laterais, um de frente ao outro. As visitas são obrigadas a se encarar.

O lar é a minha cara, extravasa o meu temperamento. Bate o sol de tarde clareando as mesas e cadeiras e abro os janelões para receber ventos engarrafados de esquina.

É um apartamento de frente e vejo quem chegou mais espiando pelas cortinas do que atendendo o interfone.

Moro numa biblioteca, mas não abro mão da nostalgia do campo. A churrasqueira está no centro do escritório  - não na varanda como é o costume. Diz muito sobre o meu orgulho das tradições gaúchas. Enfeito as prateleiras com brinquedos de madeira e jogos antigos como pião e cinco marias, o que evidencia que não deixei completamente a infância. Os quartos são do mesmo tamanho  - não consigo tirar vantagem sobre as crianças. Não abdico de um longo corredor entre as portas, toda residência que se preza possui uma galeria de fotos e quadros para os seus fantasmas.

Quando entro em uma casa estou conhecendo a alma de alguém e já vou preparado para não tirar nada do lugar. Vá que mexa em uma dor secreta ou um nervo inflamado.

Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
04.10.2016

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

LUTO TELEVISIVO

Hoje entendo perfeitamente a depressão materna com o fim da novela Roque Santeiro em minha adolescência. Ela se calou por semanas, ficava irritada por qualquer casualidade, não conseguia dormir. Perambulava pela casa durante a madrugada com um copo de água na mão.

Foi o nosso período de maiores castigos e xingamentos, ela que sempre foi doce e compreensiva. Mas tinha se viciado naquela história do casal estrambólico Sinhozinho Malta e viúva Porcina.

Experimentou um luto televisivo. Era a morte de seu lazer noturno. Seu programa predileto, após meses de exibição diária, deixava de existir. De repente, sumia. Como ocuparia o seu lugar? Assistir à novela seguinte seria o equivalente a uma traição. Entrava, então, no vazio existencial da abstinência.


Reproduzi a mesma amarga sensação quando terminei a quarta temporada de House of cards. Emendei noites para acompanhar a saga do casal político inescrupuloso Underwood. Em toda fresta do trabalho, pegava o meu computador e avançava na trama. Quantas vezes enganei a minha mulher e permaneci acordado madrugada adentro com fones de ouvido e uma barreira de travesseiros para disfarçar a luminosidade da tela?

Ao encerrar os 52 episódios até hoje filmados, mudei de personalidade. Cai em melancolia profunda. Abriu-se uma cratera entre o desejo e a realidade. Perdi o apetite, não tinha mais vontade de falar, arrastava os sapatos pelos corredores, não rendia no trabalho, desanimei com as crônicas. Foi como uma gripe emocional, uma virose na alma. Andava apático e de olhar paralisado, contínuo, sem comercial. A esposa já projetava consulta psiquiátrica. Os filhos já devolviam as mesadas. Os amigos começaram a se revezar no telefone.

Eu não estava preparado para esperar na fila das estações uma nova temporada. Não elaborei um plano B. Havia uma eternidade pela frente, um futuro árido longe dos meus personagens de estimação.
Não me curei ainda. Sofro uma fissura violenta, semelhante à recaída por cigarro. A minha panaceia é a promiscuidade no Netflix, assistir quatro séries simultaneamente para ocupar o tempo.

Sou orgulhoso como a minha mãe. Não aceito ajuda.

Talvez a minha mãe seja ainda pior, sequer admite que assiste novela. Quando vou visitá-la de noite alega que deixou a tevê ligada.

Publicado no Jornal Zero Hora
Coluna Semanal
02.10.2016