sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

ME POUPE DOS DETALHES


Sei que meus pais transavam. Mas me poupe dos detalhes. Os detalhes traumatizam.

É um assunto que devemos conhecer superficialmente, manter a criança dentro de si desinformada. Enxergar sem querer é natural, abrir a porta e testemunhar aquele amontoado frenético de corpos também não faz mal, são casualidades da casa e podemos guardar as imagens em caixinhas fechadas no depósito do inconsciente. Ainda temos controle do lacre. A questão é a confissão, o desabafo sem pudor estraga a relação, não existe como se defender das palavras.

Não haverá melhoria da qualidade sexual descobrindo o que os pais faziam na cama, se eram coreógrafos do chuveiro ou usavam a poltrona ou aproveitavam o espelho do armário. Mudará o nosso jeito de habitar o espaço e desfrutar dos objetos sagrados da convivência. Aumentará o repertório do nosso bloqueio criativo. O risco é o surgimento da maldita cena em horas impróprias. O pior não é broxar, porém explicar para a coleguinha o motivo.

É a mesma relação com o motel. Se soubéssemos o que aconteceu antes de entrar, jamais pagaríamos o quarto.

A intimidade exarcebada com os pais não acrescenta em nada em cultura geral. O efeito é até castrador. Vai contaminar pontos erógenos da memória.

Minha mãe inventou de me revelar que dançava Bolero de Ravel nua. Eu gritei: - Para agora, não me interessa, não perguntei!

Não tenho ideia de onde o relato poderia desembocar. Ela ficou assustada, não tanto quanto eu. Os limites são importantes para preservar a doçura assexuada.

Graças a Deus que não era surubinha de leve, mas a simples menção da trilha erótica foi suficiente para que procurasse novamente o terapeuta. Custará três meses de sessão para apagar parte dos ouvidos. Não consigo mais ouvir essa música. Nunca mais na vida.

Publicado em O Globo em 07/02/2018

O PREÇO DE MINHA VIDA

Serei simplista, raso e pobre porque a realidade vem sendo simplista, rasa e pobre.

Eu valho menos que o celular. Meus filhos valem menos que os seus tênis. Minha esposa vale menos que a sua bolsa. Podemos morrer no país a qualquer momento por aquilo que carregamos. Podemos ver amores sumirem de um dia para outro, abraços virarem pó, beijos naufragarem na intenção. Entregar um objeto não é garantia de sobrevivência. Não reagir não traz tranquilidade.

Pois um celular, um tênis, uma bolsa significam mais que uma vida. Nossa existência virou troco. Todos os objetos que carregamos têm um preço maior do que aquilo que somos. Não há mais medo de matar. Não há mais consciência pesada, culpa, receio, vergonha, pudor. São estados emocionais inexistentes nos ladrões.

Os ladrões são assassinos. Antes os ladrões eram ladrões, agrediam em último caso. Hoje rouba-se para matar - nenhum estado emocional imobiliza no ar a faca e o revólver.

Famílias são destruídas por bobagem. Pais assassinados, filhos assassinados, amigos assassinados brutalmente em nome de uma ninharia. Enquanto não existir um código penal severo, que não devolva à rua homicidas em menos de cinco anos, enquanto não forem construídos presídios, enquanto a impunidade reinar, não seremos nada. Coisa alguma.


Publicado em  06/02/2018

VÓ FLOR

E quando a mãe era analfabeta. E quando a mãe analfabeta só podia se comunicar com os filhos espalhados pelo mundo por cartas.

Não havia telefone disponível na cidade de Salinas (MG), não havia nenhuma forma de diálogo, a não ser o papel e a tinta.

A vó Flor, da minha amiga Fernanda, na metade do século passado, driblava os desafios para obter notícias de suas crias. Ela tinha a vizinha do lado esquerdo para ler as cartas. E tinha a vizinha do lado direito para escrever as cartas de volta. Duas comadres que serviam de seus olhos e de suas mãos.

Quando aparecia uma carta, ela corria para a casinha verde da vizinhança, um passarinho equilibrando farelos de bolo no bico. Ela tremia, querendo ver o que havia por detrás da caligrafia miúda. Como observar uma vitrine com as suas próprias roupas e não contar com dinheiro para comprar.

Ela se emocionava, impaciente, a cada linha decifrada: - O que mais? O que mais?

Não conseguia esperar o final. Seus filhos se transformavam em sua novela favorita, capítulos com relatos de namoro, do estado de saúde, de quanto ganhavam no emprego, das dificuldades de adaptação em cidade grande.

Depois corria para a casinha vermelha e pedia para a outra vizinha escrever a resposta antes que esquecesse a emoção. Ditava o que desejava de pé, num único fôlego, lutando contra a gagueira da memória, caminhando ao redor da mesa. Apanhava as palavras no ar.

Desejava dizer tanto, mas tanto que sempre faltava papel para a saudade. A vizinha a estimulava a pôr um ponto final.

- Flor, não tem mais espaço, acabaram as linhas.

Então, sem vazio para mais nada, além do vazio no peito, ela se despedia: "A bênção, filho, não canse de me escrever!".

Sozinha em casa, já viúva, a vó Flor mantinha o ritual da esperança, até o próximo ataque de alegria dos Correios. Ligava o radinho de pilha, desembaraçava a fita rosa da coleção de cartas, abria a tábua e passava uma por uma as correspondências recebidas. Com a sensação de que estava engomando as camisas de seus filhos.


Publicado em Jornal Zero Hora em 06/02/2018

O ESCÂNDALO MASCULINO

O homem pode matar barata com os pés descalços, não tem medo de esmagar mosquito com as mãos, mas ainda não consegue enfrentar uma mera gripe.

Arma um escândalo quando está gripado. É como se fosse desmaiar. É como se fosse um ataque de asma, uma pneumonia. Força a tosse, e só descreve as suas dores com resmungos. Joga o corpo para frente em uma epilepsia histriônica. Deita no sofá e lá fica na posição de almofada.

Transforma-se numa criança incapaz de medir a própria temperatura, de buscar remédio e preparar chá. Toda namorada é convertida em mãe, em enfermeira, em babysitter.

A casa torna-se uma creche, com as roupas espalhadas e objetos fora do lugar.

Enquanto a mulher gripada não diz nada, medica-se e segue com o trabalho, o homem realiza uma ópera. Entra em pânico, é preciso reinstalar o Windows do sujeito.

O nariz escorre coriza e reage com o espanto de sangue. Ele quer ir para o hospital, acha que vai morrer, recusa o banho, puxa as cobertas aos ombros, treme de frio a ponto de bater o queixo, responde a mesma pergunta na quarta tentativa, alucina de olhos abertos.

Qualquer pessoa de fora jura que ele está chapado ou é um péssimo ator. Não dá para acreditar na autenticidade dos sintomas. Não existe progressão gradual. O cansaço já é lassidão, a derrocada, violenta e imediata, não subiu degraus.

É um simples resfriado, e já pede para a namorada telefonar para o emprego no seu lugar e arranjar um atestado. Não encontra valentia nem para ligar para o seu chefe.

Ninguém descobrirá se dessa vez é grave porque sempre é grave. Finge se afogar nas primeiras expectorações. Há um retrocesso etário em poucas horas. Conforme aumenta a febre, diminui a idade.

Antes de perder a paciência com o seu eleito e rebaixá-lo de herói dos insetos a covarde das dores, a ciência provou que o sistema imunológico masculino é mais fraco do que o das mulheres e, ao mesmo tempo, ele tem mais receptores de temperatura no cérebro, o que intensifica e amplia os efeitos.

Perdoe a birra incurável no homem.

Publicado em Donna ZH em 04/02/2018

O INDECIFRÁVEL PERFUME FEMININO

Se você não define qual o perfume que a sua mulher usa, não entre em pânico. Não é desinteresse. Não é desamor. Não é má vontade. Não significa que não presta atenção ou o que o seu olfato é falho.

Por mais que a namorada ou a esposa jogue em sua cara a desinformação, como se fosse uma lacuna grave de devoção, como se estivesse cometendo um crime e esquecendo a data que se conheceram, o nascimento dela, o signo.

O universo feminino faz de propósito para sacanear os seus homens. É uma cilada ancestral, elas contam com o erro para obter vantagem, alimentar culpa, e exercer o poder sobre os mais fracos.

Não há como saber. Eu passei muito tempo me recriminando, sentindo-me um farmacêutico incompetente, um laboratorista fracassado.

Como a minha mulher tem três perfumes, pensava que me confundia com a frequência alternada. Guardava os nomes, mas não acertava o dia deles. Fiz experimento em meu pulso com as fragrâncias para memorizar, tampouco fixei o olor. Surgia diferente na pele dela.

Foi quando percebi o óbvio: o excesso me embaralhava. Nem cheirando grão de café seria capaz de limpar o faro e desenredar o enigma.

Não era um único cheiro a ser decifrado, mas vários. Tem o cheiro de xampu e do condicionador no cabelo, tem o cheiro do sabonete líquido, tem o cheiro de creme pra mão, tem o cheiro de creme pra cutícula, tem o cheiro do óleo para cotovelos, tem o cheiro da loção para o pé, tem o cheiro do protetor para o rosto, afora os produtos especiais de combate à estrias e rugas que todas têm.

Não há como descobrir o perfume mesmo. É uma charada. O que nos resta é pular a pergunta no quiz-show do amor.

Publicado em UOL em 02/02/2018

TERNO PARA TODA A VIDA

Só tive um terno até os quinze anos.

Um terno preto e um par de sapatos escuros. Usava para todas as situações que exigiam formalidade. Ia sempre com o mesmo traje em casamentos, batismos, enterros e formaturas da família. A mãe soltava a bainha conforme espichava, as mangas do casacos avançavam aos cotovelos. Não se cogitava comprar outro. Custava caro, os olhos da cara, e nunca reclamava.

Terno era para a vida inteira na minha infância. Eu crescia, ele encolhia. Andava com ele absurdamente menor, apertado, pelas horas graves da honra, quando tinha que parecer velho e sério. Não deveria faltar com o respeito quando colocava as minhas pernas e o meu tronco nele, roupa de ser grande e forte, precisava mastigar as palavras e suportar o silêncio.

Pegue o seu terno – meu pai me avisava com brevidade.

E eu tinha a noção de que alguém havia morrido. E tentava parecer mais triste do que realmente era. O chamado vinha claro e inegociável. Não podia rir, não podia brincar, não podia correr, não podia bagunçar com os meus irmãos.

Assim como havia o pijama para dormir, havia o terno para ser adulto. Ele me servia para antecipar a maturidade. Ele me preparava para a barba e para as dores. Era um tempo futuro recebido com antecedência, uma amostra grátis da velhice durante o meu corpo em formação, uma iniciação das conversas sussurradas e das despedidas.

Talvez eu não tivesse crescido sem o terno, confidente das primeiras lágrimas e sustos, cúmplice do mundo misterioso dos casamentos e divórcios, da culpa e do perdão, das demoradas celebrações. Sem ele, jamais entenderia que existe o momento de rir e o momento de não fazer piada, o momento de festejar e o momento de se calar.

Lembro que não o lavava, ele não conheceu a água e a espuma, o balde e o sol, minha mãe simplesmente passava uma escova em seus ombros para retirar os cabelos e a poeira e estava pronto para a nova batalha.

No meu armário, num cabide solitário de madeira, ainda o conservo. Ele preserva o cheiro e o suor da primeira metade de minha história, o DNA do meu espírito. É a mais fiel caixinha de recordações de casa.

Aquele terno esconde a minha imensa ternura de criança.

Publicado em Jornal Zero Hora em 30/01/2018

A CABEÇA É O NOVO CORAÇÃO

O amor perdeu a sua pureza. Não é possível amar ingenuamente. Confiar primeiro para perguntar depois. Acreditar cegamente para se conhecer depois.

Antes dos anos 80, não havia nenhum mal em se apaixonar e perder a cabeça. Agora a cabeça é o novo coração.

Toda relação que se inicia pressupõe as cartas na mesa. Se o casal pretende transar sem camisinha, o que costuma acontecer diante da inadiável explosão química, é necessário apresentar exame do DST-SIDA. Não é paranoia, suspeita, ceticismo - significa a mais recente promulgada lei da atração.

Fazer o exame e mostrar o resultado positivo ou negativo é o primeiro pilar da construção a dois, o eixo da convivência. Tudo o que será feito e decidido seguirá o diagnóstico. E entenda-se que ter HIV, com a devida consciência, não atrapalha em nada a felicidade e o enamoramento.

Solicitar o exame ao par é a regra. O romance não terá o charme irresistível da confusão. Não terá a empatia do sonho. Romperá o encanto e a surpresa da pele, terminará com a mania do apaixonado de agradar a qualquer custo, de concordar em experimentar o desconhecido (um tanto excitante) e de jamais dizer não. A exigência resultará em constrangimento e conversa séria logo no começo, mas não é mais brincadeira. Tornou-se fundamental pré-requisito ao namoro.

O corpo é uma máquina mortífera, o sexo é uma roleta-russa, e a maior parte das pessoas não quer fazer o simples exame com medo do pior. E não sabem qual o seu estado de saúde e não deixam o outro saber. Milhares de pessoas desconhecem a sua condição sorológica e contaminam parceiros involuntariamente.

A prevenção não pode ser mais uma oposição à liberdade, um antagonismo para a fluidez das relações. A sinceridade, aliada ao autoconhecimento, deve anteceder o primeiro eu te amo.

Apaixonar-se é cuidar de si cuidando do próximo. Acostume-se com a ideia.

Publicado em O Globo em 29/01/2018

A LIÇÃO DO QUERO-QUERO

Eu tenho hábito de escrever em praças. Em Porto Alegre, me isolo no laguinho do Grêmio Náutico União, da sede Petrópolis. Enquanto os outros caminham em círculos, eu ando dentro de mim.

Mas nunca é fácil me aproximar do meu esconderijo entre as árvores. Preciso enfrentar o temperamento agressivo do quero-quero. Ele não gosta de mim. Quando eu me dirijo para a alameda das quadras, ele já se põe em arma. É um duelo de faroeste. Bufa, concentra os olhos, arruma o penacho, levanta poeira com uma de suas patas e corre em minha direção. Sou obrigado a perder o charme do passo a passo e trotear em desespero. É uma vergonha social. Nem ficar quieto traz calmaria, a tática usada com os cachorros bravos não tem serventia.

Farejando o meu medo, ele voa para cutucar as minhas costas e cabeça. É uma invasão de pássaros feita por um único pássaro. Não o compreendo: não fiz nada para para que demonstre colossal ódio. Soa como implicância gratuita. Parece que a cisma é somente comigo. Não ataca mais ninguém.

Lá estou, adulto, homem barbudo, fugindo do quero-quero. Logo eu, que não temo cascavel e rato. Uma comédia para os funcionários do clube, que não escondem as risadas da perseguição matinal. Não duvido que a cena seja um dia gravada e surja nas cassetadas de Faustão.

Buscando decifrar o seu comportamento arisco, me dei conta de que ele apenas está protegendo o seu ninho, guardando a casa. Atrás de sua vigília, há dois filhotes ainda sem pêlo e bambas, perto das cercas.

Aquilo me converteu emocionalmente, desmoronou a antipatia. Ele é um exemplo de pai. Eu vi que somos iguais, ou, pelo menos, tento ser. Minha paternidade sonha em lutar pelos filhos como um quero-quero. Com a mesma garra e imposição. Com a mesma fúria e possessão.

Pode me zombar, pode me ofender, mas jamais os meus filhos. Minha vaidade se concentra toda na minha ninhada. Eu perco o discernimento. Levanto voo e afio as asas em revoada. É o ponto fraco e também o ponto forte.

Coisa de gaúcho não temer a batalha para defender a prole.

Publicado em Donna ZH em 28/01/2018

A CHATICE DOS CASADOS

Os amigos casados não podem ver um amigo solteiro. É uma ameaça à estabilidade. Logo entram em parafuso para arrumar um perfil disponível no mercado e mudar o estado civil do conhecido. Plantam coincidências, forçam saídas a quatro, armam ciladas em jantares e festas. Não admitem alguém sozinho no círculo de relações. Afogam o santo Antônio da paciência em cálices de vinho e espumante.

Os encontros arranjados jamais vingam. Pois a atração surge pelos defeitos do outro, não pelas suas qualidades. Eleger um perfil pelas afinidades resultará, no máximo, em uma amizade. Pois o amor é oposição, a exceção, a quebra da regra.

Os amigos casados se transformam em aplicativos de namoro. Tinder. Happn. Não descansam ao procurar candidatos para desencalhar o colega.

Criam uma pressão descomunal, não reconhecendo que ser solteiro é uma escolha. Parece uma incompetência, uma doença social, uma completa falta de opções e de dotes.

Não absorvem o básico: qualquer solteiro tem discernimento para se virar e conseguir companhia, não depende de ajuda, caridade e compaixão. Está sozinho simplesmente porque vive melhor assim.

Mas os casados incomodam, talvez por inveja, talvez por insegurança, talvez para não pensar na fragilidade de seus próprios romances. Realizam bullying com brincadeiras sistemáticas e piadas agressivas, tais como “segurar vela”.

Quem é solteiro ou é taxado de boêmio e sedutor incorrigível, desprovido de seriedade, que não toma jeito, ou é um bicho isolado e depressivo, que não quer sair, trancado em casa, somente preocupado com a carreira.

Os casados são chatos. Entendem a liberdade como tolhimento. Sentem a necessidade de um par para completude, quando a individualidade já é inteireza, já é suficiente para transbordar.

Partem do princípio equivocado de que só a pessoa que casou ou tem filhos pode ser feliz. Qualquer outra condição é provisória. A solteirice é percebida como uma entressafra até namorar de novo. Um período de sofrimento e desinteresse, um castigo de antigas histórias frustradas. Aquele que não namora imediatamente sugere ainda sofrer pelo relacionamento passado, o que não é verdade. Quem diz que não está cansado mesmo, enjoado, não querendo negociar o seu prazer e as suas manias, com diferentes fontes de alegria?

Três anos sem ninguém fixo costuma ser interpretado como uma maldição, uma fatalidade, um desterro.

O amor é o único sentimento que não tem fiador. Você constrói o prédio para habitar.

Publicado em UOL em 26/01/2018

AMOR FAKE NEWS

Há uma preocupação com fake news, as matérias falsas que inundam a internet.

Mas quem mais sofre com a boataria é o amor. Muito mais do que o jornalismo.

O que existe de amor falso na web. Amor que começa fingindo, amor que exagera, amor que trapaceia, amor que omite e assassina a realidade.

Difícil encontrar alguém falando a verdade na sedução.

Gente que estabelece o contato dizendo o que não é, mandando notícias bastardas de sua vida e de sua história, mentindo o emprego, o estado civil, a herança de relacionamentos.

O anonimato e a impunidade se abraçam nas redes sociais.

Os hackers emocionais aproveitam os incautos para enganar e se aproximar com segundas intenções. Tudo pelo bitcoin do sexo. Tudo para alcançar uma transa fácil e depois desaparecer. Só é demonstrar resistência e ditar um ritmo vagaroso que o outro lado perde o interesse. Não entre na ladainha do tudo ou nada, não se sensibilize com o desafio, não ceda aos encantos da coragem no escuro (coragem é enxergar, não fechar os olhos).

Duvide do flerte ao primeiro inbox, do miojo dos emoticons, da conversa passional no WhatsApp, de quem demonstra intimidade sem ao menos conquistá-la e merecê-la.

Antes de se encontrar com um pretendente, cruze os dados, faça um Google, confirme as fontes, pesquise o nome nos aplicativos. Não dê espaço para a ingenuidade. Melhor desconfiar antes do que descobrir maldades retroativas.

Paixão é face a face, honestidade na cara e na palavra, o resto é atentado digital.

Publicado em O Globo em 24/01/2018

O CONCURSO DO AMOR

Em dicas de vestibular e concursos, recebi a clara recomendação de descartar as questões mais simples para depois resolver as mais difíceis.

Nunca deu certo. Assim que começava uma prova, as mais fáceis pareciam também difíceis. Batia um pânico na porta de meus olhos. Não conseguia eliminar nenhuma das perguntas simples para ganhar preciosos minutos e enfrentar as soluções dispendiosas. Eu me debatia pela quebra do planejamento. Mordia a caneta, mastigava o lápis, tirava nacos da borracha.

Há quem, diferentemente dos conselhos dos professores, segue a ordem cronológica da prova para não enlouquecer com o que vem pela frente.

Comigo apenas funcionou a receita de iniciar pelas perguntas mais espinhosas e depois resolver as mais básicas. Encaro o que não sei para em seguida desenrolar o que entendo. Aproveito a tranquilidade do cronômetro para refletir demoradamente em uma saída para as charadas e ciladas.

Na vida pessoal, segui idêntico processo. Eu me preocupei bem mais em ter sucesso no amor do que na profissão. Mesmo que isso significasse ser reprovado pela soma dos pontos.

Eu me lancei na missão de achar a minha cara-metade. Não tive nenhuma outra prioridade. Mantive a consciência de que me quebraria, de que erraria, de que choraria, de que superaria vexames e desilusões, de que me arrependeria das certezas e me enervaria com as dúvidas.

O que entendi desde sempre: é preciso estudar para amar. Não é algo que se nasce conhecendo. Você experimentará pessoas, fórmulas e crises para definir o seu repouso. Passará madrugadas lendo os pensamentos e avaliando o instinto. Não se acertará de primeira. Dependerá de rascunhos e recomeços.

Ser amado e amar é a operação mais complexa da existência, a mais assustadora. Não é tarefa superficial localizar alguém para casar nesse mundão, compatível, com cumplicidade para atravessar as tormentas e generosidade para transformar a banalidade da rotina em alegria. Exige a nossa maior concentração. Há grandes chances de não encontrar ou se desencontrar do grande amor de sua biografia. Ou de deixar a folha em branco aguardando uma melhor hora.

Após responder à questão amorosa, todas as demais se tornam mais singelas e desembaraçadas. O êxito na carreira vem como consequência, os filhos serão resultado da convivência harmoniosa.

Quando Beatriz disse que ficava feliz não fazendo nada ao meu lado, eu poderia finalmente ser tudo. Não existe declaração de felicidade mais imponente para se ouvir.

O tempo agora está a meu favor para seguir com o exame.

Publicado em Jornal Zero Hora em 23/01/2018

O ILUMINADO

Com a mudança de endereço, fica-se desalmado, frio, indiferente. É empacotar sessenta caixas e desempacotar depois todas uma por uma. Não existe modo de suavizar a raiva e enganar o ressentimento. E só você pode realizar a empreitada, só você conhece o conteúdo e reconhece a importância de cada item - dificilmente conseguirá delegar a tarefa para um estranho, ainda que pagando.

É o apocalipse do casamento. O inferno deve ser exatamente a condenação demoníaca de realizar uma mudança diária e jamais pôr fim à transferência. Não consigo imaginar castigo mais severo: mendigar eternamente por papelão nos supermercados, colocar os pecados dentro, adesivar, carregá-los por cinco andares de escada e reabrir para ser avisado no término que você não mora ali e se enganou de destino.

Não há como manter a paciência no carreto. A vontade é jogar tudo fora e residir num hotel. Talvez comprar tudo de novo para não ter que decidir o que presta e o que não presta, o que combina com a decoração e o que é fundamental ainda conservar para o futuro, na repescagem do alto dos armários.

Aquilo que foi guardado com esmero e dedicação durante décadas, de repente, no final do cansaço, é posto no lixo sem nenhuma piedade. Nunca faria isso se estivesse descansado. Cartões de amor são rasgados, fotos raras da família são picotadas, presentes simbólicos são destruídos, toalhas e lençóis levemente amarfanhados são descartados, relógios antigos são depenados, com os seus ponteiros insanamente arrancados.

A operação atinge o nível máximo do f...Ou não existe mais lugar nos cômodos ou teria que remanejar a ordem da prateleira que levou horas ou simplesmente não aguenta enxergar mais nada pela frente e o mero ato de levantar o braço. O gesto inofensivo de abrir uma caixa já lhe irrita, gera fastio por ter vivido.

A minha esposa me tocou no ombro durante o nosso vaivém de tralhas e eu virei o rosto furioso, gritando:

- O que foi?

Ela jura com os dedos cruzados que eu estava com um olhar de psicopata e que parecia fora de mim, pronto para o desatino. Saiu de perto para não ser também descartada.

Não duvido. Mudar-se é também mudar a personalidade por completo. Quem era doce acaba amargo, quem era educado acaba rude, quem era saudosista acaba curado.

Publicado em Donna ZH em 21/01/2018

DIZER NÃO NÃO É DESAMOR

Não aceitar o não é a mais grave falha do amor. Não haverá amadurecimento sem a negação. A discordância é benéfica e deve ser praticada um pouco por dia, por mais desgastante que seja o cotidiano doméstico.

É quando deixamos de ser o filho mimado e passamos a entender e respeitar que a outra pessoa pensa e sente diferente. Talvez o grande segredo da longevidade afetiva signifique dividir as contas e os problemas, jamais pretender passar uma versão melhor do que realmente se é. Está sem dinheiro: procure solução em conjunto. Não peça empréstimo em segredo. Está sem vontade: explique o que está acontecendo, quais são as preocupações dominando a mente. Não fuja do contato visual.

A teimosia é egoísmo. A teimosia substitui a compreensão, elimina a escuta, descarta a empatia.

A teimosia é a crença de que você pode resolver sozinho e não precisa de ninguém. Se não precisa de ninguém, por que está casado? Precisar é confessar a importância de quem nos acompanha e recorrer a uma segunda instância dos desejos.

O não acaba sendo a medida da saúde do casal. Quanto mais não mais realidade. É não comprar tudo o que se quer, é não fazer tudo o que ambiciona, é não realizar tudo - isso é crescimento pessoal. É negociar entre o possível e o ideal a todo momento dentro de si.

Quem só quer agradar e ser agradado não saiu da infância e da birra maternal. Aceitar a recusa é aceitar a verdade. É admitir que não controla a vida, muito menos a opinião alheia.

O risco é se anular para alguém se sobressair: amar pelos dois, elogiar pelos dois, esconder os males pelos dois, desculpar-se pelos dois.

Sei que terei o dobro de trabalho em casa para explicar para minha mulher o valor de minhas escolhas. Mas não vivo mais sozinho para escolher à revelia de seu apoio. Eu continuo optando, mas com o seu apoio ou com sua oposição. Sua aprovação ou desaprovação me ajuda a avaliar melhor. É uma resistência fundamental para testar se o que procuro é sonho ou capricho. Agradeço o seu não assim como me envaideço do seu sim.

O homem costuma escolher sozinho para apenas repartir as consequências quando não alcança o seu objetivo. O correto é partilhar a origem das vontades, desde a raiz, para não surpreender negativamente a parceria com decisões unilaterais, sem boicote, sem conspiração.

Configura deslealdade não expor os movimentos do pensamento. E o homem não fala com medo de ser recusado, de não conseguir mais cumprir o seu projeto. Que enfrente a vaia no camarim porque depois no palco não tem como mudar a peça.

A adoção do amor como conto de fadas faz com que um dos dois se torne submisso para esconder os defeitos e as imperfeições do relacionamento.

Quem não consegue acolher o não do seu namorado ou namorada ou se seu marido ou esposa vai criar uma simbiose sombria. Porque não existirá independência, mas adulação. Não existirá discernimento e soma de duas personalidades, mas a exploração do mais forte sobre o mais fraco.

Dizer não é uma prova de amor. Receber o não é o milagre do amor.

Publicado em UOL em 19/01/2018

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

ARTE DE SE ADAPTAR APÓS A SEPARAÇÃO

Quando a gente se separa não é para empenhar grandes planos, por mais tentadora que seja a ideia de fugir e desaparecer. Não é o momento para mudar de profissão e abandonar causas. Não é para realizar tudo o que não foi feito durante a relação, por vingança e recalque.

Trata-se de uma convalescença emocional, de silêncio forçado. Um período para se recuperar e não falar nada ainda para entender o que aconteceu.

É sobrevoar os hábitos com uma atenção mínima, flutuante, básica. Não há como se exigir muito. Basta se observar e ver como a dor se movimenta pela casa. Prepare um chá para a saudade e pergunte o que ela recorda. Lembranças agradáveis? Lembranças horríveis?

Qualquer decisão será adotada para combater uma ausência, nunca por vontade própria. É mais uma reação do que uma atitude consciente. É mais um recado a um terceiro, como demonstração de poder, do que a legitimidade pensada de uma opção.

Querendo mostrar o que a outra pessoa perdeu acabará também se perdendo.

Não se precipite a justificar o fim, mantenha-se longe das redes sociais. Versões contraditórias coexistirão em você por uns meses, vai odiar e amar alternadamente com grande facilidade.

Todo mundo que termina um namoro e um casamento tem pressa de ser feliz. Não há maior angústia do que a pressa de ser feliz. Não há maior desastre do que a ansiedade para desmanchar em alguns dias o que levou meses e anos para construir. No afã de dar a volta por cima, sempre cometerá bobagens que dificultam uma hipotética reconciliação ou um fortalecimento gradual da individualidade.

O amor é formado de tréguas . É fundamental uma pausa para se desintoxicar da convivência e reparar os defeitos.

Não saia viajando, não se tatue para oferecer indiretas, não acumule plásticas, não caia na gandaia, não prometa coisa alguma, não procure casinhos antigos, simplesmente aguarde o coração se acalmar. Parece um terremoto, mas é taquicardia.

Não elabore projetos solitários para arcar com o constrangimento de cancelar logo em seguida. Não exclua ninguém definitivamente de sua história até ter certeza, até o óbito da esperança.

Não banque a fortaleza inexpugnável. Não deixe de chorar quando bater a vontade. A fragilidade é exorcismo, é colocar para fora, previne ressentimentos e mágoas. Melhor sofrer de uma vez a maltratar a si em futuras relações.

O que é acertado por mero impulso não perdura. Investimentos numa ruptura atendem somente a uma compulsão de agradar e de se firmar, formarão dívidas reais e prejuízos morais.

Separar-se não é mudar, é a arte de se adaptar.

Publicado em O Globo em 17/01/2018
MINHA MANIA DE INVENTAR O PRATO

Sou aquela figura temida nos restaurantes. Não porque seja crítico do Michelin ou do Quatro Rodas, é que nunca concordo com o cardápio. Ele não existe para mim. Ao pedir um prato, eu penso, confabulo e chamo o garçom: quero este bife, mas pode mudar o molho vermelho, tirar o champignon e trocar por palmito.

O garçom me encara estranho:

– Você não prefere o número 5, com palmito e molho branco.

Daí medito um pouco mais e concordo em termos, tenho uma dificuldade para concordar integralmente em qualquer situação. A teimosia é a minha longevidade.

– Pode ser. Mas pode trocar o arroz e a batata palha por purê e salada.

A minha família, morta de fome, começa a se desesperar. Era para ser um simples almoço e se transforma numa batalha campal, numa negociação de troca de reféns, uma porção pela outra, uma guarnição pela outra infinitamente.

Já me encontro num pregão. O suor frio desce na esponja das sobrancelhas do garçom. Ele está encurralado pela minha conversa fiada e costuma aprovar as minhas exigências extravagantes para não se incomodar mais com o quebra-cabeça.

A minha presença em qualquer estabelecimento é suportada, nada agradável, à semelhança de um artista com manias absurdas no seu camarim.

Seria mais fácil inventar um prato, tamanhas as restrições com um tempero e uma combinação. Quem tem intolerância à lactose ou é vegano me entenderia, com a diferença de que o meu sofrimento é imaginário.

Eu entro no restaurante para me incomodar, não para relaxar. Crio uma refeição mental e não há como me demover da obsessão. Vou misturando todas as ofertas do cardápio, montando algo incomparável e incompatível. Melhor ficar em casa e cozinhar.

Só não me perturbo em galeteria e churrascaria, onde escolho o que gosto sem a obrigação de me indispor com ninguém.

E fujo, como o diabo da cruz, de restaurantes com cardápios com mais de 50 opções e ainda com batismo para cada uma delas. É muito trabalho definir o ponto de partida. Eu me esgoto intelectualmente para encaixar o resumo e o almoço termina virando jantar.

Não duvido que cuspam no meu alimento na cozinha, com um ingrediente absolutamente inesperado e indecifrável.

Publicado em Jornal Zero Hora em 16/01/2018

ERA SÓ TERRENO BALDIO!

Tenho um quebranto por uma espécie de chatice. A chatice carinhosa da memória.

Porque eu compreendo de onde que ela vem, e ela atingirá a todos, sem exceção. É o inoxerável legado da condição humana.

Depois da vaidade da aparência, da mão de obra, do sucesso e da potência etária, a única vaidade que sobrará em nós é da experiência.

Não seremos mais jovens para nos exibir, nem fortes para nos impor, a imaginação será uma operação menor em nossas faculdades mentais, restará tão somente lembrar e dizer que estávamos presentes na transformação da cidade e dos hábitos.

É a implicância natural dos amigos dos pais, que nos abraçam com susto: “não acredito que é você, eu já troquei as suas fraldas”.

Não leve a mal a observação, trate-a com a leveza da graça. Deve ser mesmo difícil rever alguém que foi bebê de colo. É ultrapassar a régua da existência, e usar a infinita fita métrica das palavras para mensurar as perdas e ganhos do amor e da amizade.

É a repetição querida de histórias do avô e da avó, que, ao me buscar em casa, novamente dirão: “eu vi esse bairro crescer, era só mato e terreno baldio”.

Se possível, arrume o melhor riso para não desampará-los no vácuo da biografia. Ficarão felizes com a audição atenta. Procuram testemunhas de seus feitos para justificar tudo o que enfrentaram em oito décadas.

É certo que, ao passar de carro pelo Beira-Rio, tecerão um comentário pela enésima vez: “lembro quando construíram o estádio sobre as águas do Guaíba”.

A conversa profética parece egressa das páginas do Antigo Testamento: eles suspiram com uma mirada funda e leem em voz alta trechos inteiros de seu diário.

Eles não repetem porque se esqueceram o que falaram um dia. Repetem pois não há como conter a estupefação de ter vivido muito. É um transbordamento incontrolável de recordações, que ultrapassa o muro da Mauá. “Nós enfrentamos a enchente de 41, quando o rio ocupou todo o centro, e andávamos de botes”.

Olhar, para eles, é sempre comparar, olhar é sempre reprisar, olhar é nunca mais ter os dois pés no presente. Os avós estão parte comigo e outra parte, remota e inacessível, lá atrás no tempo.

Escuto a história de novo como se fosse a primeira vez. Vejo que logo a mesma doença benigna da idade vai me atingir e espero que os meus netos partilhem a mesma complacência comigo.

Publicado em Donna ZH em 14/01/2018

O QUE A AMANTE PRECISA SABER

O que a amante precisa saber: se ele mente para uma mulher, mentirá para todas. Se ele destrata uma mulher, destratará todas. Se ele esconde algo de uma mulher, esconderá de todas. Se ele não se importa com que os conhecidos comentam sobre a sua mulher, nunca se importará em preservar e proteger qualquer uma outra.

Não existe verdade unilateral. Não existe conversão. Não existe aquela máxima salvadora: “comigo será diferente”. Não existe exceção, que é somente fiadora de desastres.

O infiel dificilmente pedirá o divórcio. Aliás, o caso faz com que o casamento dure ainda mais, porque confere um lazer e um entretenimento adicionais para uma rotina regrada. Não escolher é manter as opções. A aventura acaba fortalecendo a imobilidade: por que mudar se tenho tudo o que quero?

A questão central é que ele mente mal e você, amante, é generosa em ouvir e crédula em aceitar. A separação é iminente e nunca acontece, não é estranho? E os motivos para o perpétuo adiamento são sempre iguais: ou a mulher está doente ou ela depende financeiramente dele ou não encontrou o momento certo ou os filhos não aceitarão bem o desenlace ou enfrenta um momento delicado no trabalho.

É evidente que ele nunca vai se separar, desfruta de uma situação cômoda. Homem apaixonado não pensa, joga o compromisso para o alto e depois assume as consequências. Quem calcula demais fundamenta o medo e não se joga no precipício - é um estrategista do abandono de causa.

Quando a relação passa da quarta noite e não há mudança, ele não romperá nenhum vínculo. Ou ele perde a cabeça nas primeiras semanas ou jamais terá o coração dele.

Não se engane com as juras fartas. Aquele que promete acertar as contas e que reclama do casamento está faltando com a verdade: quem diz que ele não vem transando seguidamente com a esposa e se divertindo em casa? Conta apenas com a sua desinformação para seguir com a impunidade da vida dupla. Isso quando não tem segunda e terceira amantes e se arma da confusão para não amar ninguém.

Os encontros podem garantir satisfação na hora, porém desgastam a esperança, criam insalubridade emocional e arrastam personalidades fortes para a desvalia e depressão. Não dá para ser clandestino e feliz durante muito tempo.

Publicado em UOL em 12/01/2018

O RETORNO DAS TUMBAS

A provação mais severa de qualquer ex é aguentar a felicidade de sua antiga companhia. É engolir a seco que ela deu certo com outro ou consigo mesma. Exige discernimento e também elegância de não interferir onde não tem mais influência.

Como é raro encontrar alguém que entenda e respeite a despedida, que aceite o ponto final, que não seja leviano a ponto de despertar sentimentos perigosos (dos quais não acredita) prejudicando a inocência da palavra.

O que tem de ex saindo da tumba quando repara a alegria de suas outrora parceiras nas redes sociais. Ressurge quando identifica um namoro começando ou um círculo social ativo.

Nem costuma procurar em nome de amor perdido, mas por inveja e mesquinhez. Quer estragar a vida mesmo, roubar o entusiasmo, ser penetra na festa alheia e beber de graça. Pretende apenas complicar e criar dúvidas, por mera implicância. Não há o desejo genuíno de voltar, ocorre uma insaciável necessidade de competir.

Nem é saudade, e sim controle. Nem é culpa, e sim cobiça. Nem é ciúme, e sim possessividade. Nem é afeição, e sim orgulho contrariado.

Ex é criança mimada. Não valoriza o brinquedo até vê-lo nas mãos de algum coleguinha.

Não admite não ser a única fonte de carinho. Manda mensagem do além disfarçada de amizade.

De repente, o contato bloqueado no WhatsApp, o telefone riscado dos seus contatos, pisca no seu e-mail.

Parece que está preocupado, e começa a evocar lembranças enterrados da vida a dois ou de como foi bom o tempo que viveram juntos. Não resistirá e fará um auto-elogio: destacará a sua mudança por completa, um amadurecimento como nunca aconteceu e de que a distância foi importante para repensar as suas prioridades.

Engraçado que os separados sempre alegam que descobriram o equilíbrio interior.

Não caia na conversa mole. Existe um período imediatamente pós-separação para propor reparos. Desculpas atrasadas são coroa de flores.

Antes de responder, acautele-se das consequências. Toda ressurreição tem o lado perverso que é morrer de novo.

Mande a mala sem alça de volta para a esteira do aeroporto. A bagagem de sofrimento não mais lhe pertence.

Publicado em O Globo em 10/01/2018

QUANDO DEI BANHO EM MINHA MÃE

Não subestime a criança. Não deixe de contar para ela o que está sentindo. Não espere que ele fique adulta para esclarecer as sombras do passado - pode ser tarde demais, pode custar terapias e confusões inacreditáveis. É preferível que a criança enfrente a verdade do que os monstros de sua imaginação. Se você está chorando e o filho pequeno se aproxima perguntando o que foi não diga que não é nada, estabeleça claramente que não está num dia bom e narre as suas preocupações. Se fingir, a criança aprenderá a mentir e a esconder os próprios sentimentos vida afora. Demonstrará que não confia nela. E ela tampouco abrirá o seu coração quando precisar. Na adolescência, fechará a porta do quarto e de seus segredos afirmando também que não é nada.

Filho é filho não importa a idade - terá condições de absorver do seu jeito. É um telepata das emoções. Uma esponja das crises. Criança entende mais rápido o que vem acontecendo do que você imagina - entende e resolve com um abraço, entende e resolve com um beijo, entende e resolve com um cartão, entende e resolve melhor que muito marmanjo oferecendo ternura em vez de palavras ásperas de ordem, restrição e sermão.

Quando tinha sete anos, a minha mãe não camuflou a sua dor. Desabou em lágrimas na minha frente expondo que o casamento com o meu pai havia terminado. Eu era um toco de gente e ela me pediu ajuda. Não me assustei. O desespero infantiliza o outro, e de repente a senhora dos meus cuidados tornou-se a minha primeira filha.

Eu peguei a minha mãe pela mão e falei:

- Vou lhe cuidar.

Acendi algumas velas e depositei no canto da banheira, preparei um banho bem quente, despejei um pote de xampu na água, para criar espuma, e esfreguei as suas costas lentamente, enquanto ela expulsava os soluços. O escuro com as chamas tremeluzindo lhe deu alguma esperança de igreja e promessa. Escoltei a sua saída para pisar no tapete, entreguei uma toalha e ela dormiu mais cedo naquela noite. Vigiei o seu sono até que a respiração voltasse ao normal.

Nunca mais nos separamos por dentro, nunca mais nos omitimos descobertas e aflições.

O mundo continuou sendo o nosso ventre.

Publicado em Jornal Zero Hora em 09/01/2018

O HOMEM CONVERSA DA MESMA FORMA QUE DIRIGE

O que mais incomoda as mulheres não é o que o homem fala, é o que ele não deixa ser dito.

Faltou na escola no dia em que a professora disse: um de cada vez.

Sempre interrompe, sempre se antecipa e se sobrepõe a mulher no momento em que ela está se explicando. Usa o tom grave de sua voz para abafar as delicadezas e refutar qualquer sinal de contrariedade. Não precisa nem gritar para bloquear o pensamento de sua namorada ou esposa: explora a violência do timbre para calar e intimidar. Ele não quer registrar nada que o ponha em dúvida - só que viver assim, na mais completa tirania, de apenas um lado ter razão, é impossível.

Pergunte a um gago como é irritante alguém completar as palavras por ele.

A maior parte das brigas não surge de uma desavença explícita, vem da injustiça da interrupção, do jeito falhado que se conversa.

É só ausência de educação mesmo, porque não custa esperar o outro finalizar as suas ideias para, então, expor os seus comentários.

Mas o homem conversa como ele dirige: cortando os carros, atropelando os sinais, não dando pisca-alerta para mudar de pista, buzinando, abrindo o vidro para xingar, aproveitando a inexistência de radar para aumentar a velocidade. Alimenta o mesmo padrão agressivo no trânsito das palavras.

Sua indisposição de falar sério enerva o mais corriqueiro papo. Toda avaliação é vista como crítica, todo apontamento é acolhido como defeito, toda atenção é identificada como ameaça.

Como a mulher não consegue terminar o seu raciocínio, acredita que ele não escutou o que apresentou antes e busca repetir do início. A repetição demanda o dobro de tempo e paciência previstos na discussão de relacionamento. O que era para ser breve vira, forçosamente, uma maratona de soletração.

O machismo é que ele jura que sabe o que a mulher vai falar. Ele passará uma vida desconhecendo quem o acompanha, desperdiçando infinitas chances de aprender o que ela é e o que ela procura em sua vida pois nunca ouviu nenhum desabafo até o fim.

Publicado em Donna ZH em 07/01/2018

O AMOR CANSA DE SER MALTRATADO

Há pessoas que só sabem amar se separando e voltando.

Ou você se salva ou salva o relacionamento. Quem já não passou por esse duro dilema?

Entre se afogar e voltar para a margem. Entre deixar à deriva quem você gosta ou manter a sua vida dentro dos limites da sanidade.

E sempre sofrendo pela ternura desperdiçada, sempre penando por sacrificar uma manifestação sincera de apego.

Há romances que não nasceram para a felicidade. Por mais difícil que seja aceitar essa irreversibilidade. São intensos, passionais, selvagens, porém inviáveis socialmente. É como namorar com Mogli numa cidade grande e tentar usar os talheres.

Porque há pessoas que somente sabem amar pela violência das rupturas. Só sabem amar se separando e voltando. Não aceitam outra forma de dependência senão pelo grito.

Têm uma noção de amor como briga, estremecimento, discussão. Viveram na infância sob o jugo de pais quebrando os pratos e batendo boca e não entendem os laços na frequência da gentileza e da concordância. Enxergam o entendimento como submissão.

Se tudo está bem é que está mal. Se tudo está calmo é que está entediante.

Logo arrumam uma bronca para tornar a rotina mais excitante. Mesmo que seja uma suspeita inventada.

Transam unicamente com vontade após chantagens e ameaças de despedida. O sexo é uma demonstração de poder e possessividade, não de confiança e carinho. A intimidade precisa ser testada para oferecer liga. O ódio costuma vir à tona para renovar a atração.

Você tem aquela dúvida constante se vem sendo amada ou odiada, se ele lhe deseja mesmo ou recorre ao pretexto da carne para lhe ofender na cama.

Não existe jeito de contentar o tipo que se relaciona somente pela guerra. Nunca ficará saciado. Você pode fazer todos os caprichos e não será suficiente. Pois ele age por crises e surtos periódicos, usando os melhores sentimentos para justificar as piores atitudes. É treinado para a tortura psicológica, para o jogo de nervos. Não senta para discutir, não tem paciência, logo se levanta virando as costas e esmurrando as portas. Por uma banalidade, cria uma epopeia para a sua raiva.

Um ano ao lado de alguém assim é o equivalente a uma década de casado.

Não me arrisco a dizer se o amor termina, mas guardo a convicção de que ele cansa.

Publicado em UOL em 05/01/2018

A ARMADILHA QUE FAZ A MULHER RECEBER MENOS

É uma armadilha. Quando a mulher é elogiada por fazer várias coisas ao mesmo tempo está sendo condicionada a nunca reclamar do excesso de trabalho. Pois recebe o destaque pela multiplicidade e não há margem para o protesto, já que é um dom da natureza.

Assim ela é obrigada a empreender múltiplas tarefas silenciosamente, sem poder de reação. Cada tarefa custa uma grande dose de sacrifício e renúncia, mas não é valorizada por ser resultado de uma pretensa facilidade.

Trata-se de legitimar a exploração feminina. Por detrás da aparente virtude, existe um boicote organizado. Para que ela seja todos papéis ganhando economicamente por um só.

O que mais acontece é o desvio de função. Mulher termina atuando como gestora na informalidade porque dá conta do recado. De modo perverso, ela tem que provar o seu valor antes de assumir a posição de direito que ocupa na prática.

O fato de “dar conta do recado” cria absurda injustiça, atestada na disparidade salarial entre homens e mulheres no país (as mulheres recebem cerca de mil reais a menos, de acordo com o IBGE).

Ela é persuadida a suportar a insalubridade em nome de uma característica de gênero. O estigma disfarçado de qualidade censura avanços e consolida a desigualdade.

Como o homem exerce uma coisa de cada vez, por inexplicável crença cultural, precisa apenas cumprir demandas de sua área. Não é forçado a oferecer mais do que pode.

Parece até que ele é mais focado e concentrado profissionalmente, pois não é reconhecido pela polivalência e não sofre com nenhuma ordem implícita para dividir a sua atenção. No fim, não é exigido tanto quanto as mulheres para alcançar um padrão elevado na empresa.

Seguindo a linha desse raciocínio, mulheres com filhos pequenos terão menos chance de admissão concorrendo com homens com filhos pequenos. Porque a vida pessoal do homem não pesa contra, ela simplesmente não é vista pelo histórico de conduta monotemática.

Por sua vez, a mulher é posta como uma malabarista de nascença. A sociedade impõe que seja feliz como mãe, esposa, funcionária e amiga, além de cuidar da aparência, pela vantagem em relação ao público masculino. Mas a vantagem corresponde a um acúmulo de deveres, nunca traz direto benefício financeiro.

O elogio de gênero esconde o machismo das cifras.

Publicado em O Globo em 04/01/2018

MORRA DE INVEJA


Você quer sofrer no verão enquanto trabalha? A receita é facílima de decorar: dedique cinco horas de seu dia para stalkear as redes sociais das celebridades. Verá gente badalando nas principais praias do mundo, rindo e se divertindo, em iates e lanchas, com drinques coloridos. É tempo suficiente para asfixiar o seu ego.

Você, até então preocupado com o preço da gasolina, esquecerá os problemas urgentes e não tirará o olho gordo da tela: perplexo com o luxo e a irreverência das figuras, despreocupadas com as principais questões da humanidade, desfrutando de intermináveis dois meses de folga, bronzeamento e felicidade.

Se possível, pule de uma página para outra, somente seguindo as marcações das fotos. Será um hipnose regressiva: retornará à escola quando não fazia parte da turma popular que mandava no recreio, onde ninguém sabia quem você era, além dos nerds.

Após a tour digital, duvido que você ache maravilhoso o lugar onde vive ou quem você ama. Logo se sentirá pobre, impotente e invejoso - pronto para uma longa depressão.

Publicado em  02/01/2018

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

MINHA VOZINHA E SUA INFALÍVEL HORTELÃ



Quando criança, os meus pais me acordavam com a didática do grito. Não surtindo efeito, iam lá mexer nos meus ombros. Não cumprindo a sua missão ainda, puxavam as minhas cobertas. Na época, não havia celular, muito menos alarme dos aplicativos. Rádio-relógio era caro e ficava na cabeceira dos adultos (a estação preferida tocava música na hora marcada rompendo a quietude).

Eu lutava contra as táticas militares materna e paterna. Procurava uma prorrogação, uma soneca, um adiamento fingindo dormir.

Só não resistia à estratégia da avó Elisa. Ela sabia acordar as pessoas, inspirar o sonho de olhos abertos. Tinha PHD do sereno da madrugada e do galo cantando.

Ela me despertava pelo olfato. Pois não é pelo ouvido que acordamos, mas pelo nariz.

Ela recolhia um maço de hortelã da horta e espalhava perto de mim. Não soltava um pio, não falava nada. Entrava silenciosamente no quarto abafando as tiras do seu velho chinelo e largava o seu contrabando de ervas pelos travesseiros.

Com o cheiro forte do tempero, estranhíssimo naquele cenário de linho e penas de ganso, eu saia do conforto dos lençóis. Não tinha como continuar dormindo - a curiosidade se fazia mais forte do que a dormência. A hortelã berrava com o seu perfume. Ninguém consegue se defender do seu aroma forte, lembrando os assados do Natal e do Ano Novo. Provocava imediata fome e repentina avidez pelo sol.

Assim que me punha de pé, a avó zoava de mim, vitoriosa de seu jeitinho:

- Já se levantou? Podia ter dormido mais. Acordou dez minutos antes da hora.

Até hoje, no momento de pular da cama, procuro se não existe um ramo de hortelã por perto.

Minha avó não está mais aqui, o câncer a levou para longe, mas ela achou um modo todo seu de entrar para dentro de minha respiração e me dar bom-dia.

Publicado em 02/01/2018

O CACHORRO ESCUTA TUDO

O CACHORRO ESCUTA TUDO

Um cachorro escuta quatro vezes melhor que uma pessoa. Assim escuta a 8 metros o que o homem só escuta a 2 metros. Ele detecta a origem do som com precisão, em apenas 0,06 segundo.

Você nem entrou em casa e o cachorro já ouviu você chegando. Você mal acordou, pisou o pé dentro do chinelo e o cachorro já corre para a porta do seu quarto. Você vive querendo entender o que ele está descobrindo - porque ele flagra os sons de insetos, da água correndo, do vento mudando a sua direção, dos subterrâneos, das paredes. Escuta o que até aquele instante parece invisível.

De repente a cabeça dele se inclina para um lado como se ele estivesse de pé, em vigília, por um novo movimento. É um profeta do que virá surgir. Pois alcança uma frequência entre 10 a 40.000 Hz, inacessível para a escala humana, presa entre 16 e 20.000 Hz.

O cachorro prostra-se em sentinela e late para algo que não aconteceu. Só não aconteceu para você, para ele aconteceu.

Não são fantasmas, são ruídos vivos se formando em grandes distâncias.

Antes do celular tocar, ele olha para o seu celular. Antes de algum objeto quebrar no chão, ele olha para os seus braços. Antes do interfone vibrar, ele olha para o interfone.

O cão tem uma hipersensibilidade auditiva. Um relâmpago é um terremoto para ele. Uma colisão de carros ao longe é uma colisão de trens.

O cachorro escuta, inclusive, a sua lágrima antes de cair, o batimento do seu coração alterado, uma dor antes de ser palavra, e vem lamber o seu rosto e lhe oferecer conforto.

Dá para entender agora a violência que são os fogos de artifício para os cachorros?

Publicado em 31/12/2017

O PRESÉPIO DA FAMÍLIA

Não tiramos o presépio depois do Natal. Ele fica até janeiro.

Transformamos a churrasqueira em gruta de igreja - sem carne espetada no período de um mês. É nossa pia de água benta à espera de benzer a testa.

É assim desde criança. Os rituais mantém a família unida.

Somos mais do presépio do que do Papai Noel. O bom velhinho de vermelho nunca desceu pela chaminé porque tem uma criança surgindo na manjedoura.

Minha mãe me ensinou a montar o teatro bíblico, a fazer uma maquete do solo com papel especial, a colocar algodão imitando nuvens, a recolher pinhas, palha e barba de pau das árvores para compor o cenário rural. Nossos Reis Magos - Melquior, Baltazar e Gaspar - perderam as mãos e colamos com bonder. O burro e as ovelhas estão amarelados pelo tempo, mas seguem zunindo e balindo. O anjo caiu algumas vezes do prego do portal e rejuntamos as suas asas.

É a mesma turma desde pequeno. Bonita porque quebrou e se refez, humana e falível como a gente, com a história explicada dezembro a dezembro aos filhos e netos. Deixou de ser apenas esculturas, porém réplicas em miniatura da resiliência familiar. São pedras onde depositamos os nossos laços. Há a casa no sangue e a casa no espírito, que começa com o presépio.

Não valorizamos as luzes piscando, não esnobamos com decoração o pinheiro na sala, mantemos o costume de privilegiar as sombras e a simplicidade da reencenação de Cristo, criada por Francisco de Assis. 

E as crianças desfrutam do direito de colocar no presépio os seus brinquedos prediletos. Já teve Barbie ladeando a Nossa Senhora, já teve Playmobil ajudando o carpinteiro José, já teve miniaturas de Kinder Ovo puxando conversa com os pastores. 

As modas mudam, as épocas variam, e amadurecer talvez seja não evoluir no amor: preservar o olhar puro e pobre do nascimento para todo o sempre. 

Publicado em Donna ZH em 30/12/2017

QUEM DIZ QUE NÃO SE ARREPENDE DE NADA NÃO TEM AUTOCRÍTICA

Não acredito em quem diz que não se arrepende de nada na vida. Ninguém acerta sempre. Não se arrepende ou não quer admitir que falhou alguma vez? Não se arrepende ou é orgulho enrustido? Não se arrepende ou receia mexer nas feridas? Não se arrepende ou não pretende desabafar? Não se arrepende mesmo ou não deseja passar a imagem humana, honesta, defeituosa para os mais próximos?

Quem não se arrepende de nada não é que aceitou a vida do jeito que ela veio. Não é serenidade. Não é maturidade. É tão somente falta de autocrítica.

Eu me arrependo. Não sou um semideus para não ter rascunhos. Eu tropecei feio dentro de mim, eu troquei os pés pelas mãos, eu menti, eu fui desleal. E pedi desculpa, retratei-me e jamais me envaideço dos meus enganos. Não empregarei desculpas retroativas, a amnésia é uma proteção do ressentimento.

O perdão não deleta o que cometi de torto em minha trajetória, os fatos ruins continuarão existindo como um marco de meus problemas, um limite de minha sanidade, um exemplo para não repetir e magoar os outros.

Guardo um espelho dos fracassos pessoais no lado interno do armário das lembranças - espio de vez em quando para não perder o prumo.

As decepções perseverarão na memória, apesar de resolvidos todos os impasses. Não há ainda borracha para apagar o que foi escrito com o sangue.

Poderia ter sido melhor pai, poderia ter sido melhor filho, poderia ter sido melhor marido, poderia ter sido melhor amigo. Deixei gente na estrada com a pressa de andar e ser feliz sozinho, abandonei quem amava na ânsia das certezas.

Se eu pudesse voltar atrás, não faria de novo. Sei exatamente o que precisava modificar em meu comportamento, com datas e horários. O pecado também usa relógio.

Uma coisa é errar, processo natural e previsível de nossa condição sujeita a acasos e provações permanentes, uma bem diferente é não manter a consciência do erro pelo resto dos dias.

Publicado em UOL em 29/12/2017

DE CORPO E ALMA

Nesse país, se você não acredita em Deus não pode acreditar em coisa alguma. Só a crença na justiça divina para aliviar a inexistência penal brasileira. A vida aqui vale muito pouco. Não vale nada, na verdade. Você pode agredir e logo estará solto, você pode matar e logo estará solto, você pode roubar e logo estará solto. Legalizamos a impunidade. Legalizamos a imoralidade.

Há 25 anos foi assassinada brutalmente a atriz Daniella Perez, com dezoito tesouradas. Por ganância covarde.

Seus assassinos - Guilherme de Pádua (também ator e ressentido com sua pouca participação na novela em que atuava com Daniella) e esposa Paula Thomaz - já estão livres. Na prisão, cumpriram apenas sete anos de uma pena de 19 anos. Em solo americano, receberiam no mínimo prisão perpétua, pela gravidade da tocaia, detalhadamente premeditada, e pela crueza da morte, com requintes de crueldade.

Foi um dos finais de ano mais tristes de minha adolescência, porque admirava Daniella, tínhamos quase a mesma idade na época. Era um espelho de vivacidade e carisma, reconhecida como a namoradinha do Brasil.

Nunca mais confiei na Justiça desde então.

Não dá para imaginar o que ainda sofre a sua mãe, a escritora Glória Perez, talvez uma das mulheres mais fortes e resilientes que já atravessaram as minhas palavras, pois ela não baixou a cabeça, transplantou o coração para o trabalho e seguiu escrevendo e colaborando para a televisão. Qualquer um desistiria de seu ofício e de frequentar o meio profissional onde aconteceu a tragédia. Menos Glória Perez.

O tempo não passou para ela. O tempo permanece vivo dentro dela. Pelo menos, o tempo do amor ninguém pode matar.

Queria ter um por cento de sua fibra. Um por cento de sua oração. Um por cento de sua fé.

A novela em que Daniella estrelava quando morreu tinha um nome emblemático: De Corpo e Alma (1992). Exatamente o que devemos para Glória Perez. Corpo e Alma. Ambos arrancados por uma tesoura que desconhecia o longo, o difícil e o delicado bordado materno necessário para tecer uma vida.
 
Publicado em 28/12/2017